O Conselho de Segurança das Nações Unidas voltou a discutir a situação na Síria esta quarta-feira, ao mesmo tempo que decorre a 71ª Assembleia Geral das Nações Unidas e, mais importante, poucos dias depois de um novo falhanço de um cessar de hostilidades — o segundo a ser rapidamente quebrado desde que a guerra começou, em março de 2011.
A sessão foi marcada pela assertividade do Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, que teve uma resposta lacónica e por vezes irónica do seu homólogo russo, o ministro dos Negócios Estrangeiros Sergei Lavrov. Por fim, falou Bashar Jaafari, representante da Síria nas Nações Unidas.
No centro da discussão esteve a quebra de facto do acordo de fim das hostilidades na Síria — da qual estaria excluído o combate contra as organizações terroristas do Estado Islâmico e da Al-Nusra, que é o ramo da Al-Qaeda na Síria — e que rapidamente foi violado. Entre as várias ocorrências, duas estiveram em destaques na reunião desta quarta-feira: o bombardeamento de 17 de setembro, alegadamente acidental, da Coligação Internacional (liderada pelos EUA) perto do aeroporto de Deir Ezzor resultando na morte de pelo menos 62 soldados sírios; e o ataque na segunda-feira a um armazém e a um conjunto de camiões de apoio humanitário do Crescente Vermelho da Síria, que resultou na morte de mais de 20 pessoas.
Se o primeiro incidente levou a um pedido de desculpas imediato do Pentágono (“as forças da coligação pensavam que estavam a atingir uma posição do Estado Islâmico que tinham estado a monitorizar durante uma duração significativa antes do ataque”, disse aquela agência”), o segundo caso tornou-se num jogo de passa-culpas que esta quarta-feira conheceu um novo episódio.
“No mesmo dia, na mesma área, na estrada de Ramussa [perto de Aleppo], um ataque muitíssimo agressivo foi levado a cabo pela Al-Nusra e pelos seus aliados contra as forças do Governo”, disse Lavrov. “Eu não tenho nenhumas provas, mas estou certo de que coincidências deste tipo requerem uma análise e uma investigação sérias”, referiu, acrescentando que o incidente deu-se apenas “a não mais do que cinco ou sete quilómetros” de uma zona dominada por “terroristas”. “É muito evidente quem está a cumprir o acordo e quem não está”, sublinhou. Leia-se, Lavrov rejeita a hipótese de aquele ataque ter sido levado a cabo pela Rússia ou pelo exército sírio, ao qual Moscovo se aliou formalmente em 2015.
Ao tom lacónico de Lavrov, Kerry respondeu de forma assertiva. “Ouvi o meu colega da Rússia e senti-me como se estivesse num universo paralelo”, disse, argumentando que o acordo de fim das hostilidades foi quebrado por “aqueles que não querem o cessar-fogo”. Sobre o ataque ao Crescente Vermelhor Sírio, do qual resultou a morte do seu diretor, Urum al-Kubra, o líder da diplomacia norte-americana falou em “factos”. “Sim, a coligação atingiu pessoas no sábado. Nós fizemo-lo. Foi um acidente terrível”, concedeu. “Mas eu tenho de dizer-vos: ver pessoas a fugirem com armas no terreno a partir do ar é uma coisa muito diferente de camiões com marcas enormes das Nações Unidas em cima”, contrapôs. “Toda a gente tem o direito de ter as suas opiniões, mas ninguém tem o direito de ter os seus factos.”
John Kerry referiu ainda o relato de uma “testemunha ocular”. “Disse que estava no terreno e que de repente tudo se transformou num inferno, com os aviões de combate no céu”, referiu. “Há muitos mais [testemunhos], mas eu não vou entrar nisso, porque o que eu quero realçar aqui é a [necessidade] de aceitarmos a responsabilidade de mudar esta equação.”
Uma das últimas pessoas a falar com o representante da Síria nas Nações Unidas, que disse que o recurso de Kerry a “testemunhas oculares” era “risível”. “Como é que um indivíduo numa área populada por milhares de pessoas consegue dizer por si só que havia aviões no local quando outros, milhares, que vivem na área não viram esses bombardeamentos aéreos?”, disse, desvalorizando ainda outros testemunhos que apontavam para o uso de armas químicas por parte do regime de Assad. “‘Havia fumo laranja no ar’. Foi isto que disse a geneticamente modificada oposição síria”, ironizou.
Sobre o bombardeamento da coligação liderada pelos EUA de sábado nas imediações do aeroporto de Deir Ezzor, Jaafari referiu que esta representou uma quebra de um compromisso que lhe tinha sido feito pessoalmente. “Quando a administração dos EUA decidiu intervir unilateralmente no meu país com ataques aéreos, representantes americanos vieram ter connosco e disseram-nos que Washington se comprometia que os aviões americanos não iriam atingir o exército sírio ou infraestruturas vitais”, disse. Jaafari referiu ainda que o bombardeamento que matou pelo menos 62 pessoas (outras contagens apontam para 83) e fez mais de 100 feridos foi “precedido por voos de reconhecimento feitos por drones durante dois dias”, insinuando que estes seriam suficientes para perceber que aquela posição não era ocupada pelo Estado Islâmico.
Mais do que um problema de semântica
Nem o mais otimista dos otimistas poderá encontrar na reunião desta quarta-feira uma luz ao fundo do já longo túnel da guerra da Síria, à medida que as forças envolvidas na região se dividem cada vez mais. Aos incidentes recentes, juntam-se as questões em torno das quais nunca conseguiram reunir total consenso. Entre estas, destaca-se os rótulos atribuídos aos vários grupos que disputam a guerra na Síria, com a discussão centrada em quais são, ou não, organizações terroristas. Apenas o Estado Islâmico e a Al-Nusra, que funciona como um ramo da Al-Qaeda na Síria, reúnem consenso entre os 15 países representados no Conselho de Segurança da ONU e o Grupo Internacional de Apoio à Síria.
“Acredito que chegou a altura de revermos a lista de organizações terroristas”, atirou Lavrov. Em resposta, Kerry tornou a insistir na exigência norte-americana de que o espaço aéreo da Síria seja fechado — tornando-se naquilo a que se tem chamado de uma no-fly zone. “Eu tenho dito à Rússia muitas vezes que é muito difícil diferenciar pessoas [que são terroristas e outras que não são] quando estamos a bombardeá-las indiscriminadamente”, disse. “Temos de chegar a uma proibição dos voos, meus amigos. Isso iria prevenir a Síria de fazer aquilo que tem feito com tanta regularidade no passado, que é atacar alvos civis com a desculpa de que estão a ir atrás da Al-Nusra.”
Falou-se do futuro, sim, mas aqui nada de novo. Todas as partes falaram na necessidade de “conversas entre todas as partes da Síria”, embora com nuances, mas o problema surge quando se discutem as maneiras de chegar a essa mesa de negociações. “Como é que as pessoas se podem sentar à mesma mesa com um regime que bombardeia hospitais e lança gás de cloro uma vez, e outra, e outra, e outra, e outra, e outra, e age com impunidade?”, lançou Kerry. Minutos depois, Jaafari sublinhou que “nenhum comité, nenhuma reunião ou conferência organizada para resolver esta crise poderá suceder enquanto alguns agentes internacionais, com ou sem intenção, procuram exlcluir o Governo sírio e marginalizá-lo”.
O desentendimento entre as várias partes é tal que estas nem chegam a acordo em relação a designação do conflito que assola a Síria há mais de cinco anos. Se várias delegações falaram em “guerra civil”, o representante da Síria nas Nações Unidas tratou de reafirmar a legitimidade do Governo de Bashar Al-Assad e a narrativa de que o combate do regime é contra grupos terroristas. “Não nos devíamos enganar ao ponto de acreditarmos que a situação na Síria é uma guerra civil”, disse Jaafari, a fechar.
Guerra civil ou não, certo é que, desde que começou em março de 2011, o conflito na Síria já matou cerca de 400 mil pessoas e já levou a que mais de 6 milhões de pessoas fugissem das suas casas, procurando refúgio sobretudo noutros países da região e também na Europa.