É um relato na primeira pessoa sobre os bastidores das negociações em Bruxelas. No livro Adults In The Room: My Battle With Europe’s Deep Establishment, o ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, conta a sua versão da história e de como tentou vencer as guerras que foi mantendo com os falcões europeus. Uma história que tem como antagonistas o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, e a sua claque de apoio, onde se incluíam, aos olhos do grego, a então titular da pasta das Finanças portuguesas, Maria Luís Albuquerque.

Numa passagem particular do livro, que o jornal Público recupera em detalhe, Varoufakis conta como Angela Merkel se bateu pelos interesses da Grécia, isolando, inclusivamente, o seu próprio ministro das Finanças e homem todo poderoso do Eurogrupo. O grego fala ainda do papel determinante do então ministro francês da Economia — e hoje Presidente –, Emmanuel Macron, e de como Maria Luís Albuquerque e o seu homólogo espanhol, Luis de Guindos, se aliaram a Schäuble quando os gregos se batiam por uma revisão mais suave do memorando de entendimento.

Depois de assumir funções, conta Varoufakis, Alexis Tsipras tentou a todo custo rever as condições do acordo com a troika, mas esbarrou sempre na intransigência de Schäuble. Com as contas gregas no vermelho, com o país perto da falência, Tsipras tentou um último gesto de aproximação e telefonou a Angela Merkel para tentar convencer a chanceler alemã sobre a urgência de rever os termos do memorando de entendimento. À revelia do seu ministro das Finanças, Merkel terá então dito que sim.

O ministro das Finanças grego desenhou um rascunho do novo acordo, propondo, à cabeça, a extensão do prazo do financiamento à Grécia. Se Bruxelas concedesse, havia condições para trabalhar num novo memorando. Na véspera do Eurogrupo, conta o Público, citando o relato de Varoufakis, o grego recebeu, por “canais reservados” a luz verde de Berlim. Era “uma boa base” para um acordo “construtivo”, diziam os alemães.

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A 20 de Fevereiro de 2015, dia da reunião do Eurogrupo, Varoufakis encontrou-se em Bruxelas com o presidente do Eurogrupo, Jeroem Dijsselbloem, para acertarem os termos do comunicado final — o holandês já estaria ao corrente dos planos de Merkel. Acabaria por fazer algumas alterações apenas — a extensão do programa duraria quatro meses e não os seis que os gregos pediam –, nada que deitasse por terra o acordo.

“[Se o conseguisse], constituiria um triunfo dos países mais fracos da zona euro. Seria a primeira vez que seria concedido a um Governo manietado por um programa de resgate o direito de substituir o memorando da troika por uma agenda de reformas da sua própria autoria”, escreve Varoufakis.

A reunião do Eurogrupo seria quase um pró-forma. “Foi a mais fácil de todas“, conta o grego. “Um monumento à ambiguidade calculada, que confirmou também o poder da chanceler alemã para usurpar o controlo do Eurogrupo, ainda que momentaneamente, ao homem que geralmente o domina – o seu próprio ministro das Finanças”.

Nos bastidores, Emmanuel Macron esforçava-se por resolver o diferendo. Pouco antes da reunião do Eurogrupo começar, o francês enviara uma SMS a Varoufakis, assegurando que tudo ia correr como previsto. O então ministro da Economia francês tinha estado a almoçar com Angela Merkel e teve a garantia de que a chanceler dera “instruções diretas a Dijsselbloem para acabar com a saga grega“. Um esforço muito mais significativo do que François Hollande alguma vez fizera, regista Varoufakis.

Relata o grego: “Em todas as reuniões do Eurogrupo, logo que se abria o período de intervenções dos ministros, ocorria o mesmo ritual. Primeiro, a claque de apoio do dr. Schäuble, constituída por ministros das Finanças dos países do Leste, competiria entre si para ver que é mais pro-Schäuble que o próprio Schäuble. Depois, os ministros dos países submetidos a resgates como a Irlanda, a Espanha, Portugal e Chipre – os prisioneiros-modelo de Schäuble – acrescentariam a sua bagatela Schäuble-compatível imediatamente antes de, por fim, Wolfgang, o próprio, vir a terreiro para finalizar com alguns retoques a narrativa que controlava desde o início”. Dessa vez, no entanto, não foi assim.

“Libertado do feitiço de Wolfgang pelas instruções diretas da chanceler alemã, Jeroem [Dijsselbloem] leu o esboço do comunicado e chamou-me para o defender.” Nenhum dos restantes ministros das Finanças se inscreveu para falar. Apenas um “silêncio constrangedor”. Temendo Schäuble, “ninguém defendeu o comunicado, mas também não se atreveram a criticá-lo”, até porque o novo acordo tinha o apoio de Christine Lagarde, do FMI, e Mario Draghi, do Banco Central Europeu.

Schäuble resistiu e e interveio várias vezes. “Perdi a conta ao número de intervenções dele – mas devem ter sido mais de vinte”, escreve Varoufakis, que adianta um outro detalhe: “Os únicos ministros que o apoiaram foram a portuguesa [Maria Luís Albuquerque] e o meu vizinho do lado, o ministro espanhol Luis de Guindos, que falou mais de dez vezes – seguramente reflectindo o medo do seu Governo por qualquer êxito do Syriza que pudesse suscitar apoio para o Podemos nas eleições que se avizinhavam em Espanha.”

Contactada pelo jornal Público, Maria Luís Albuquerque recusou fazer “qualquer comentário” sobre o livro de Varoufakis ou sobre episódio em concreto.

Seria uma vitória de pirro para os gregos, que continuaram asfixiados pela crise económica que o país atravessava. O acordo alcançado serviria de pouco para um país a braços com um problema estrutural daquela natureza. Encostado à parede, Varoufakis não queria assinar o novo memorando — Tsipras também não e, por isso, convocou o referendo, cujo resultado acabaria por ignorar. O ex-ministro das Finanças grego não deixa, ainda assim, de contar um detalhe curioso sobre a convivência atribulada com Schäuble.

Já perto do fim, pouco antes de abandonar o cargo, o grego conta uma das últimas conversas que manteve com o alemão, em Berlim. Schäuble tentava convencer Varoufakis a assinar o memorando, que, por sua vez, tentava convencer o ministro das Finanças de Merkel da irrazoabilidade daquele acordo. Varoufakis terá então perguntado: “Pode fazer-me um favor, Wolfgang? Assinaria o memorando se estivesse no meu lugar?“.

O relato termina assim: “Estava à espera que me respondesse previsivelmente – que dadas as circunstâncias não há alternativa – usando os mesmos argumentos comuns e destituídos de sentido. Ele não o fez. Em vez disso, olhou pela janela, para a rua. Para os padrões de Berlim, estava um dia quente e ensolarado. Depois voltou-se e espantou-me com a sua resposta. ‘Como um patriota, não. É mau para o seu povo’”, terá respondido o alemão, em quem Varoufakis deixara de ver como um “ditador maquiavélico”, mas um homem que se sentia “impotente para fazer o que achava que devia ser feito”.