4 de março de 2001. São 21h10. O quarto pilar da Ponte Hintze Ribeiro, que liga a localidade de Castelo de Paiva a Entre-os-Rios, desaba e provoca a queda parcial da estrutura do tabuleiro da ponte. Um autocarro com 53 pessoas a bordo e três carros com seis ocupantes caem desamparados em direção ao rio Douro. As primeiras informações são alarmantes. As horas e os dias que se seguiram confirmaram o pior: morreram 59 pessoas. Logo nessa noite, em Lisboa, Jorge Coelho, então ministro do Equipamento Social, toma uma decisão: apesar da insistência de António Guterres, o único caminho é a demissão. “A culpa não pode morrer solteira“, diria. Caía assim o número dois do primeiro-ministro e um dos homens mais fortes do Governo socialista.

Mais de 16 anos depois da calamidade de Entre-os-Rios, o país enfrentou uma catástrofe que trouxe ecos daquela noite fatídica. Os incêndios de junho resultaram na morte de 65 pessoas na região de Pedrógão Grande e 41 (contabilidade até ao momento) nos fogos deste fim-de-semana, por todo o país. Logo depois da primeira tragédia, Constança Urbano de Sousa terá colocado o lugar à disposição — informação que a própria sempre desmentiu, apesar das notícias em sentido contrário. António Costa tentou segurar a ministra da Administração Interna, tal como Guterres fez com Jorge Coelho, em 2001. Mas, ao contrário de Jorge Coelho, a ministra ficou.

Desde aí, a ministra tem-se desdobrado em declarações públicas. Esteve no terreno, comoveu-se e defendeu-se no Parlamento. Enquanto a oposição exigia a sua demissão, disse e repetiu que se recusava a fazer o mais fácil e o mais fácil seria demitir-se. As deste fim de semana deixaram a ministra numa situação ainda mais frágil. António Costa disse que era uma “infantilidade” sugerir a demissão da ministra. Que não resolvia nada. Constança Urbano de Sousa, por sua vez, voltou a recusar a fazer o que era “mais fácil”. “Eu ia-me embora, ia ter as férias que não tive. Isso resolvia o problema?“, respondeu, exasperada, aos jornalistas. Em 2001, Jorge Coelho teve outro entendimento: apesar de todos as pressões para que ficasse, apesar das tentativas de António Guterres, apesar de ser o número dois do primeiro-ministro, sair, considerou o socialista, era a única decisão digna possível.

As memórias desse dia são relatadas no livro Jorge Coelho, o Todo-Poderoso, uma biografia não autorizada assinada pelo jornalista Fernando Esteves, que dedica um capítulo inteiro aos bastidores políticos dessa noite fatídica. Nele são relatadas as pressões de Guterres para Coelho continuar, a tentativa da família de o dissuadir, os dilemas do ministro sobre o que poderia dizer às famílias das vítimas e o último telefonema a um António Guterres perplexo: “Sou o responsável político pela pasta, alguém tem de dar a cara pelo que aconteceu. Eu sou o ministro, tenho mesmo de me demitir“. Com esta resposta, chegava ao fim a carreira política de Jorge Coelho.

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As primeiras informações sobre o que tinha acontecido em Entre-os-Rios chegaram às 22h, quando Jorge Coelho jantava com um grupo de amigos num restaurante do Bairro Alto, em Lisboa. O assessor de imprensa ligara-lhe a contar o que tinha acontecido. Ninguém sabia ainda a exata dimensão da tragédia, mas tudo fazia prever o pior. O ministro interrompeu o jantar e ligou imediatamente a António Guterres. O diálogo é citado no livro de Fernando Esteves:

António, temos aqui um problema.
— O que foi?
— Uma ponte caiu em Entre-os-Rios. Ainda não sei muitos detalhes, mas temos de estar atentos. Estou agora a ir para o Ministério.
— Acompanha a situação e quando souberes mais detalhes liga-me.

As primeiras horas depois da queda da ponte confirmaram o que todos já suspeitavam: havia mortes. Ainda longe de saber todos os detalhes do que acontecera, Jorge Coelho decidiu ligar novamente a António Guterres com uma decisão a formar-se na cabeça: é preciso retirar consequências políticas.

— António, isto é uma tragédia brutal. Há mortos, pá! As pessoas vinham de um passeio e a ponte ruiu. Já dei instruções aos meus dois secretários de Estado [Luís Parreirão e José Junqueiro] para seguirem para lá.
— Fizeste bem, eles que nos mantenham informados.
— E eu acho que temos de retirar consequências políticas disto, pá! A culpa não pode morrer solteira!

Seria precisamente essa frase que Jorge Coelho utilizaria para justificar a sua demissão. Antes de o fazer, no entanto, as horas que seguiram à queda da ponte foram de angústia. Escreve o autor:

As notícias continuavam a chegar. Mais mortes confirmadas. Ainda mais corpos por encontrar. Sentado sozinho no seu gabinete, Jorge Coelho pensava nas famílias das vítimas. Como explicar-lhes uma fatalidade daquela dimensão? O que poderia ele fazer para atenuar a dor de mulheres que ficaram sem maridos, de crianças que ficaram sem pais? Perdera o seu pai com apenas seis anos; sabia o que é crescer sem um. Tinha de tomar uma decisão radical. Telefonou pela enésima vez naquela noite a António Guterres.”

— António, vou-me demitir.
— Não faças isso, Jorge. Não tens culpa nenhuma do que aconteceu.
— Não, tenho de sair. Sou o responsável político pela pasta, alguém tem de dar a cara pelo que aconteceu.
— Vamos abrir um inquérito e apuramos responsabilidades. Depois vemos o que fazer. Não te vás embora assim!
— Eu sou o ministro, tenho mesmo de me demitir. A minha decisão está tomada.

Depois deste telefonema, Jorge Coelho foi para casa. A mulher e a filha ainda o tentaram dissuadir. Repetem que ele não tinha culpa. Em vão. Acabariam por apoiar a sua decisão. “O meu pai estava devastado pelo que acontecera àquelas pessoas; estava inconsolável”, contou a filha, Maria João, ao autor. O ministro, a horas de deixar de o ser, saiu de casa quando já passava da uma hora da manhã. Precisava de “pensar”. Escreve Fernando Esteves:

Estava na iminência de tomar a decisão política mais importante da sua vida. Naquele instante era claro para si que o sonho que projetara com o seu amigo António Guterres estava para si prestes a terminar. Atravessou a escuridão das ruas de Oeiras. Fez um flashback da sua vida política. As memórias eram entrecortadas pelas imagens da ponte destruída. Era um fardo demasiado pesado. Tinha de tomar uma decisão definitiva.”

Jorge Coelho decide então pedir ao seu assessor que convoque os jornalistas para uma conferência de imprensa. Só devia informar a comunicação social de que o assunto era importante, nada mais. Faltava fazer um último telefonema a Jorge Coelho para comunicar a sua decisão definitiva.

— António, acabo de convocar uma conferência de imprensa para anunciar a minha demissão.
— Jorge, pela última vez: não tens de fazer isso. É um exagero da tua parte, garanto-te!
— Eh pá, andamos nisto os dois há vinte anos. Tenho de sair para salvar o que já construímos, temos de defender o projeto. Vou fazer isto não só por mim mas também por ti, pá, pelo projeto, por tudo.
— Mas não tem de ser assim, Jorge…
— Não há outra forma. Uma coisa desta dimensão exige uma tomada de posição radical. São muitos mortos, pá. Temos de dar o exemplo. Se não sai, isto vira-se contra ti.

A comunicação ao país chegaria já depois das duas. Jorge Coelho começa por apresentar as condolências às “famílias das vítimas enlutadas”. A seguir, repete o que já tinha dito por telefone a António Guterres: “(…) o conceito que tenho do exercício do poder político faz com que a culpa não possa morrer solteira e perante uma situação como esta têm de se tirar consequências políticas”. A consequência política seria uma: a demissão.

Depois da comunicação ao país, Jorge Coelho regressa a casa. É atingido por uma insónia, que não lhe permite pregar olho. Passa a madrugada agarrado à televisão. Fernando Esteves descreve aqueles momentos assim:

Não dormiu, claro. Sentou-se no sofá com o comando de televisão na mão. Foram horas de zapping, de canal em canal, sempre à procura de novidades sobre o acidente. Sentia-se derrotado. Tantos anos de luta, tantas centenas de milhares de quilómetros percorridos, tantos jantares, tantos comícios, tantos apertos de mão, tantos compromissos e tantos discursos depois, olhava para si, afundado naquele sofá, e sentia que não merecia ter acabado assim. Sim, estava de consciência tranquila; sim, tinha tomado a única decisão digna possível. Mas nada apagava o facto de terminar daquela forma, vergado perante uma tragédia.”

Bofetadas, viagens, anedotas ou corninhos. Por isto já se demitiram ministros