Barack Obama, agosto de 2012, sobre o conflito sírio: “Temos sido muito claros para o regime de Assad de que uma linha vermelha para nós é quando começarmos a ver muitas armas químicas a serem movimentadas ou utilizadas. Isso alteraria o meu cálculo. Isso mudaria a minha equação.”

Obama recuaria em toda a linha em agosto de 2013, depois de um ataque com gás sarin em Ghouta, na Síria, que matou centenas de pessoas. O Presidente francês à altura, François Hollande, estava pronto para uma ofensiva militar quando recebeu uma chamada de Obama: “O Presidente americano explica-lhe que decidiu consultar o Congresso. E assim, adiar os ataques. O golpe dói a Hollande”, lembra o jornal Le Monde nas suas “Crónicas sírias” que recordam esses dias. “Barack Obama justificou a sua reviravolta dizendo: ‘Não há coligação internacional para uma intervenção na Síria, não há maioria no Conselho de Segurança, não há apoio na opinião pública. Eu preciso pelo menos da aprovação do Congresso, porque não sou o George W. Bush.” Obama explicava assim que não queria tornar a Síria no seu Iraque.

Barack Obama, antigo Presidente dos Estados Unidos. (Jim Watson/Getty Images)

Emmanuel Macron, junho de 2017, sobre o conflito sírio: “Tenho duas linhas vermelhas: armas químicas e acesso humanitário. Já disse claramente a Vladimir Putin que serei intratável nestas matérias. E que a utilização de armas químicas provocará réplicas, e estas incluirão a França.”

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No domingo passado, um ataque com armas químicas em Douma matou dezenas de pessoas. Emmanuel Macron é agora confrontado com a sua linha vermelha, como em tempos Obama também foi. Só que, ao contrário do que fez o antigo Presidente americano, parece disponível a cumprir a sua palavra. E a pergunta impõe-se: o que leva um Presidente que criticou a estratégia intervencionista dos seus antecessores a mergulhar de cabeça num ataque à Síria?

Da política “nem contra Assad, nem pela sua reabilitação” ao “sinal de que a França não tolerará armas químicas”

Macron prometeu uma decisão “nos próximos dias” sobre o que irá fazer relativamente à Síria. Garante que “não quer uma escalada” de violência, mas irá continuar “a troca de informações técnicas e estratégicas” com os parceiros. Nos Estados Unidos, Donald Trump já prometeu mísseis. E, a provar-se que este ataque químico ocorreu e foi realizado pelas tropas de Bashar al-Assad, Macron não terá alternativa a não ser avançar com uma intervenção militar.

Isto se quiser cumprir a sua palavra, é claro. Em junho do ano passado, tinha garantido que não seria como Obama no que toca à Síria: “Quando se fixam linhas vermelhas, se não as respeitamos então decidimos ser fracos. Essa não é a minha escolha. Se for verdade que as armas químicas são utilizadas naquele território e sabemos qual é a sua proveniência, então a França procederá a ataques para destruir os stocks de armas químicas identificadas.”

“Este é portanto um compromisso firme, total e claro. Se o Presidente francês não o respeitar, irá definitivamente ver a sua credibilidade internacional afetada, bem como o valor da palavra de França. Por isso, ele não tem escolha“, explica ao Observador Nicolas Tenzer, presidente do Centro de Estudos e Reflexões para Ação Política e professor de Políticas Públicas na Sciences Po.

Nas Nações Unidas, esta segunda-feira, o embaixador francês afirmou que só o regime sírio teria meios e um motivo para levar a cabo um ataque químico na região. “Não há dúvidas sobre quem são os autores”, disse François Delattre.

O Governo de Macron parece cada vez mais alinhar por uma estratégia de ataque ao território sírio juntamente com os EUA, mesmo sem apoio na ONU — a Rússia tem vetado repetidas vezes reações a ataques químicos, alegando que não é possível provar que aconteceram nem quem os levou a cabo. Mas este não parecia ser o caminho desde que o Presidente centrista tomou posse. Crítico da postura intervencionista dos seus antecessores, Macron chegou a usar palavras duras relativamente à ação francesa e internacional na Líbia: “Coletivamente, mergulhámos a Líbia, desde aqueles anos, em anomia.”

Relativamente à Síria, Macron não quis seguir as pisadas de Hollande, que se opunha abertamente a Assad. “Depois da sua eleição, o Presidente Macron tem tentado que a França seja um parceiro credível na crise síria. Por isso, recebeu visitas oficiais de Donald Trump e Vladimir Putin, enquanto construía um discurso de intermediário: a política da França não deveria ser nem a luta contra Assad, nem a sua reabilitação”, resume ao Observador Mannon-Nour Tannous, investigadora da Fundação para a Pesquisa Estratégica e autora do livro “Chirac, Assad et les autres” (“Chirac, Assad e os outros”, sem edição em português), que analisa as relações franco-sírias desde 1946.

“Só que a questão do uso de armas químicas tornou-se uma questão de princípio para a França”, acrescenta a politóloga, destacando o facto de a França ser depositária do protocolo de 1925 de Genebra contra as armas químicas, bem como a posição conhecida de Macron contra o uso deste tipo de armamento e a “linha vermelha” que invocou como Obama.

“Essa posição, que apareceu como uma questão secundária durante a sua eleição, impõe uma reação hoje. Mas, ao contrário do que estava previsto em 2013, agora não se trata de inverter o equilíbrio de forças no terreno, mas sim de enviar um sinal.” Ou seja, Macron não quer impedir Assad de ganhar a guerra, quer apenas enviar um sinal de que as armas químicas não serão toleradas. Mas, num conflito que se tornou palco de guerras por procuração entre potências, será possível manter um propósito assim tão simples?

A caminho do reconhecimento internacional ou de um Iraque 2.0?

Numa guerra onde os interesses geoestratégicos determinam alianças militares inusitadas, não é de admirar que uma decisão francesa de se envolver no conflito — aliada muito provavelmente aos EUA — tenha outro tipo de repercussões. Mohammed bin Salman, o princípe saudita que esteve no Eliseu há alguns dias, mostrou-se automaticamente disponível para apoiar Macron em possíveis ataques aéreos: “Se a nossa aliança com os nossos parceiros exigir isso, responderemos ‘presente’.”

É claro que a ação saudita não é desinteressada — não será por acaso que, na mesma conferência de imprensa com o Presidente francês ao lado, o príncipe saudita falou na necessidade de combater o “expansionismo iraniano”. O Irão, recorde-se, é aliado de Bashar al-Assad na Síria e adversário dos sauditas no Médio Oriente.

Outra repercussão numa destas decisões pode relacionar-se com o próprio peso da aliança franco-americana. Macron tem pressionado Trump a intervir, ao contrário do que o norte-americano preferia, mas o Presidente dos EUA acabou por abraçar por completo os desejos do homólogo francês, prometendo enviar mísseis para combater um “animal que mata com gás”.

O facto de França estar a assumir a dianteira nesta questão pode fortalecer o eixo Paris-Washington. Isso mesmo previu Jacob Heilbrunn, da revista norte-americana National Interest, dizendo que os britânicos estão “desaparecidos em combate nesta matéria” e que os franceses podem ocupar esse lugar na relação com os EUA. “Theresa May nunca conseguiu conquistar a afeição de Trump. Por exemplo, não conseguiu transmitir a pompa militar que impressionou tanto Trump no Dia da Bastilha”, aquando da sua visita a Paris, escreve Heilbrunn. “Talvez os britânicos se venham a juntar aos ataques aéreos ao ‘animal Assad’, como Trump lhe chamou, para punir o déspota sírio pela sua última atrocidade; mas é Macron quem, sem dúvida, segue no lugar do condutor.”

O estado das relações entre Trump e Macron poderá ser observado de perto ainda este mês, quando se realizar a visita do líder francês a Washington, onde será recebido com honras de banquete de Estado. Só não poderá, como relembra a Bloomberg, voar demasiado perto do rei-sol Trump, correndo o risco de se queimar perante a opinião pública francesa, que está longe de adorar o Presidente norte-americano.

Donald Trump e Emmanuel Macron nas cerimónias do Dia da Tomada da Bastilha (Thierry Chesnot/Getty Images)

Ao assumir-se como o arquiteto de uma série de ataques aéreos que provam ao mundo que a França não tolerará o uso de armas químicas, Macron poderá, portanto, provar que é um ator de peso na cena internacional. “Este é o primeiro teste à escala real de Emmanuel Macron no cenário internacional”, resumiu Tenzer.

Mas o Presidente francês também pode ser arrastado para uma guerra pela qual ainda pode vir a pagar um alto preço político. “Uma aventura militar seria o pior erro”, vaticinou Didier Billion, especialista no Médio Oriente e diretor-adjunto do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, ao Le Parisien. “Com o veto estratégico dos russos, a ONU nunca validará tal retaliação. E, de qualquer forma, isso não vai resolver a crise síria.”

Mesmo entre aqueles que, como Tenzer, defendem que uma intervenção em território sírio tem “os seus méritos”, não há consensos sobre que tipo de ação deve ser tomada. Tenzer considera que existem três categorias entre os que defendem uma ação militar: os que pensam que se deve restringir às questões das armas químicas; os que consideram que é preciso combater militarmente Assad e os seus aliados noutras áreas; e os que defendem que, para além das ações militares, é preciso pôr um ponto final à ação do regime sírio e pensar num plano a longo prazo que “não deixe a Rússia, a Turquia e o Irão como donos do jogo, como são hoje”.

“Macron faz certamente parte da primeira categoria, talvez da segunda, mas não necessariamente da terceira. Trump parece estar a aproximar-se da terceira, mas sabemos que não tem qualquer plano para a Síria — ele há uma semana andava a dizer que ia sair”, analisa o especialista ao Observador. “Isto parece-me perturbador.”

Macron tem por isso uma importante decisão a tomar nos próximos dias — ou talvez até nas próximas horas. As consequências de uma intervenção, contudo, podem revelar-se sérias. Entre os que apoiam uma intervenção, como Tenzer, pede-se uma ação mais “forte” do que “simbólica”. Mas uma intervenção militar na Síria não seria consensual entre os franceses e os adversários políticos de Macron sabem-no.

Não é por acaso que Marine Le Pen, da Frente Nacional, que foi derrotada por Macron na segunda volta das presidenciais, foi das primeiras líderes partidárias a pronunciar-se sobre este tema: “Queremos mesmo seguir os americanos e os belicistas irresponsáveis para um bis do Iraque?”, perguntou no Twitter. Consigo trouxe o fantasma de uma guerra que levou meio milhão de franceses às ruas em protesto em 2003.