A polémica dura há oito meses, e foi inaugurada por uma resposta fora de tempo da ministra da Justiça sobre a recondução de Joana Marques Vidal à frente da Procuradoria-geral da República. Nesse tempo, o tema não desapareceu e continua quente. Só esta semana, ouviu-se o presidente do PS rejeitar a “eternização” de um procurador-geral da República (PGR) no cargo, e o PSD a responder em dose dupla: nesta sexta-feira, o eurodeputado Paulo Rangel disse que seria “incompreensível” a não recondução e o secretário-geral do PSD considerava não haver “nenhum motivo” para o afastamento da magistrada. António Costa e Rui Rio até podem continuar a gerir o silêncio sobre a escolha da principal figura do Ministério Público, mas é cada vez mais claro que o dossier “Marques Vidal” colocou os dois maiores partidos em lados opostos da barricada — e Marcelo está atento a esse embate. Belém continua em silêncio sobre o assunto, Marcelo Rebelo de Sousa a dizer apenas que não há “razão nenhuma para a dramatização”, mas o Observador sabe que o Presidente da República considera “absurda” a partidarização do tema.
Até outubro, a sucessão de Joana Marques Vidal é um “não assunto” para Marcelo, que tem a última palavra na indigitação de um PGR e que deixou claro, logo em janeiro, que só falaria sobre o tema em Outubro, quando o primeiro-ministro lhe apresentar um nome para liderar o Ministério Público nos próximos seis anos. O problema é que o “não assunto” tem vindo à tona em vagas mais ou menos regulares desde esse momento e a discussão acabou por transformar-se numa novela político-jurídica com vários protagonistas de um e do outro lado do debate e uma discussão em crescendo.
Rangel defende recondução de Marques Vidal e denuncia “fake constitution” do Governo
Nas pouquíssimas vezes que falou sobre o assunto, Marcelo tentou sempre baixar a temperatura. É isso que tem feito esta semana, na entrevista para o podcast “Perguntar Não Ofende” de Daniel Oliveira, na quinta-feira, e foi também isso que voltou a fazer, já esta sexta-feira, “sem dramatizações” sobre o tema.
Não há razão para nenhuma dramatização. A democracia é natural, as instituições funcionam, ainda há menos de um ano tomei uma decisão sobre a nomeação do presidente do Tribunal de Contas, vou tomar agora relativamente a chefias militares por proposta do Governo, faz parte da vida das instituições, sem dramatizações”, disse o Presidente da República.
Silêncio — o silêncio possível — é a regra de ouro, até porque, no Palácio de Belém, é visto como “absurdo” partidarizar a escolha da liderança do Ministério Público e fazer disso tema de combate político.
Por um lado, porque esse combate valida a ideia de que os processos na justiça avançam (ou estagnam) ao ritmo dos ciclos eleitorais; e porque, no final do dia, a credibilidade da investigação judicial sai fragilizada. Marcelo também considera que o facto de haver um debate politizado sobre o futuro do representante máximo da investigação judicial dramatiza a decisão (qualquer que ela seja) que o primeiro-ministro terá de apresentar. Independentemente do sentido da decisão, quem for escolhido corre o risco de ficar colado a um dos lados da barricada.
Problema: Marcelo pode deixar todos os avisos que entender, pode tentar sensibilizar os responsáveis políticos para os riscos deste debate, mas esse comboio está em marcha há meses e é difícil pará-lo neste momento.
Futuro do MP deixa PS e PSD em confronto
No final de agosto, o conselheiro de Estado Luís Marques Mendes disse na SIC que a não recondução de Marques Vidal ficaria colada a uma “leitura perigosa” de tentativa de condicionamento da investigação judicial. A meio desta semana, aos microfones da TSF, no programa “Almoços Grátis”, Carlos César — uma voz alinhada com as posições do primeiro-ministro — assinalou a “preferência” por um mandato único. Já esta sexta-feira, o eurodeputado Paulo Rangel voltou a subir o tom — e a elevar também a pressão sobre Rui Rio — ao defender que uma eventual substituição da PGR significaria “um motivo de perturbação institucional” do trabalho do Ministério Público.
Horas depois, no mesmo sítio — a Universidade de Verão do PSD — foi a vez de José Silvano, primeiro membro da direção de Rui Rio e porta-voz do partido, a tornar publica a sua posição “pessoal”: a favor da recondução. Silvano considera que não há “nenhum motivo” para a escolha de outro nome para a liderança da Procuradoria-geral da República. Em Castelo de Vide, Silvano defendeu a ideia de que “quem normalmente faz bom trabalho e quem tem o apoio das pessoas nesse trabalho tem de ser reconduzido”. No caso de Marques Vidal, o secretário-geral do PSD diz que os últimos anos do Ministério Público são registo de um “trabalho meritório” da PGR e que é “consensualizado por toda a opinião pública e por todos”.
Ora, no mesmo dia, no programa “Bloco Central”, da TSF, Rui Rio defendeu que esse “problema” tem de ser lançado pelo primeiro-ministro e deixou claro que não vai ser ele a tomar a iniciativa de liderar o debate. “A partidarização deste tema, acho errado”, disse defendendo “sentido de Estado” sobre a questão. Rio concorda assim com a posição de Marcelo Rebelo de Sousa, e não abre o jogo.
Governo abre porta à saída da Procuradora-geral Joana Marques Vidal
Por seu lado, António Costa tem mantido a reserva sobre o assunto e o calendário joga a favor do silêncio do primeiro-ministro. O mandato da procuradora-geral da República começou a 12 de outubro de 2012, estende-se por mais mês e meio e nada obriga Costa a dizer uma palavra sobre o tema durante esse período. Nem lhe convém: tem visita marcada para daqui a uns dias Angola, para formalizar a normalização das relações entre Lisboa e Luanda, que ficou chamuscada precisamente por questões judiciais. Sobram assim outras figuras de relevo nos partidos e alguns líderes partidários que já puseram as cartas na mesa sobre o prazo de validade de Joana Marques Vidal na Procuradoria-geral da República.
Presidente do PS rejeita “eternização” dos mandatos
Costa quer ouvir Rui Rio, garante Carlos César. Mas esse não é um exclusivo dado ao líder do PSD. “O Governo ouvirá todos os partidos parlamentares, o PSD não é uma raridade nacional”, dizia esta quarta-feira César numa resposta à intervenção em que Luís Montenegro (ex-líder parlamentar do PSD) defendia um diálogo entre os dois maiores partidos. Costa ouvirá todos, “é normal que assim aconteça”, e isso “permitirá municiar o Governo para uma melhor decisão sobre esse tema”, sublinhou César no programa da TSF.
A escolha cabe a António Costa. “Cumpre ao primeiro-ministro decidir a proposta a apresentar ao Presidente da República” e “quem tem a responsabilidade de decidir deve decidir, independentemente das consequências, procurando que a sua decisão seja a melhor possível”, diz o também líder da bancada parlamentar do PS. Fica por saber se Marcelo Rebelo de Sousa levantará obstáculos ao nome que o primeiro-ministro apresentar em Belém.
No mesmo programa, Carlos César voltou a defender que “não existe obrigatoriedade de mandato único” e que “há claramente uma tendência para que se pondere o mandato único como a opção preferencial, se não não se teria introduzido na revisão constitucional de 1997 a delimitação dos mandatos”. Mesmo que a “apreciação” que faz dos seis anos de Marques Vidal na liderança da investigação judicial seja “positiva”.
Esta foi a única posição conhecida de António Costa sobre o assunto. Num debate quinzenal, logo no arranque do ano, o primeiro-ministro foi confrontado com as declarações polémicas de Francisca Van Dunem, e mesmo empurrando uma decisão para Outubro, admitiu estar a discutir-se a opinião da ministra, que estava “em linha com a leitura que o primeiro-ministro faz da lei.”
À direita, Assunção Cristas já assumiu uma posição favorável à recondução de Marques Vidal. À esquerda nem PCP, nem BE se querem envolver no assunto antes do tempo. Jerónimo de Sousa falou do assunto esta semana, para elogiar o legado de Marques Vidal, mas a garantir que não se vai envolver no processo. também já puseram as cartas na mesa: ambos defendem a continuidade de Marques Vidal. Catarina Martins, também já disse que considera o tema PGR como um não assunto.
Falta saber apenas o que pensa a procuradora-geral da República sobre a recondução. Joana Marques Vidal, recorde-se, também já falou sobre o tema. Muito antes de o seu futuro estar em discussão, a PGR lembrou que o magistrado que desempenha essas funções “tem mandato de seis anos” e que esse mandato “tem duração única”. Essas declarações, Marques Vidal fê-las em Cuba, em 2016, numa conferência sobre ciências penais. Quatro anos antes, também já tinha dito que, “por alguma razão, o mandato do procurador-geral da República é de seis anos, não renovável”, na leitura que já então fazia da Constituição. “E bem, na minha perspetiva”, rematou na altura.