Donald Trump fez vida a vender coisas — prédios, casas, programas de televisão, até bifes e, claro, um ideal político. Por isso, conhece como poucos a importância de um bom slogan. Em 2016, prometeu “tornar a América grande de novo”. Em 2017, pegou num país à beira de uma “carnificina americana” — e no ano seguinte, depois de 12 meses de liderança, já falava de um “novo momento americano”. Por isso, esta quarta-feira, no seu discurso do Estado da União de 2019, não foi por surpresa que Donald Trump tentou ensaiar uma nova ideia: “Uma nova oportunidade para a política americana”.

Foi nessa ideia, de convite ao diálogo entre os Partido Republicano (em maioria no Senado) e o Partido Democrata (que desde 3 de janeiro domina a Câmara dos Representantes), que Donald Trump procurou assentar as traves-mestras do seu discurso.

“Se tivermos coragem de aproveitá-la, há uma nova oportunidade para a política americana. Vitória não é vencermos para o nosso partido, vitória é vencermos para o nosso país”, sublinhou Donald Trump.

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“Temos de rejeitar a política da vingança, da resistência e da retribuição, e abraçar o potencial ilimitado da cooperação, dos compromissos e do bem comum”, disse o Presidente, arrancando uma reação peculiar à líder da maioria democrata na Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, protocolarmente sentada atrás do Presidente. Primeiro, a democrata mordeu o lábio para não rir — mas sem sucesso. Já munida de um esgar irónico, levantou-se para bater palmas àquela tirada de Donald Trump, numa postura algo teatral.

Ao longo do discurso, a líder dos democratas na Câmara dos Representantes foi reagindo ora com espanto, ora com ironia, a frases do discurso de Donald Trump (JIM WATSON/AFP/Getty Images)

Foi ali, naqueles poucos segundos, que ficou sintetizado o atual estado da política norte-americana. De um lado, está um Presidente comprometido com o cumprimento de uma promessa eleitoral que nem no seu partido reúne consenso e que sabe precisar dos democratas para fazê-la avançar. Do outro lado, a oposição democrata, numa postura resoluta de bloqueio ao Presidente menos convencional desde Richard Nixon, não demonstra disponibilidade para um entendimento ou concessões. Cada lado permanece entrincheirado na sua posição, agarrando-se aos seus pontos de honra.

Por enquanto, o maior deles é o tema do muro que Donald Trump quer construir ao longo da totalidade da fronteira entre os EUA e o México. Ao todo, Donald Trump utilizou a palavra “muro” onze vezes e disse “barreira” outras quatro.

“No passado, muitos de vocês, que estão aqui nesta sala, já votaram a favor de um muro, mas um muro como deve ser nunca foi construído. Eu vou construi-lo”, sublinhou.

Não é claro como é que isso irá acontecer num futuro próximo. Enquanto as palavras de Donald Trump ecoavam pelas paredes do Capitólio, era impossível não recordar que entre dezembro e janeiro, num total de 35 dias, os EUA tiveram o maior shutdown parcial do governo federal por falta de entendimento entre o Presidente e os democratas no tema do muro. Donald Trump viria a suspender o shutdown a 26 de janeiro, mas deu a até 15 de fevereiro para haver uma solução. Caso contrário, o shutdown pode voltar, tornando a deixar 800 mil funcionários públicos sem salário.

Donald Trump apresentou-se, pois, como um Presidente ciente de que precisa de dialogar com a oposição para governar eficazmente — e que, por isso mesmo, sabe que tem de construir pontes. No entanto, a cada ponte metaforicamente erguida, o homem forte da Casa Branca tratou de acenar com um barra de dinamite. O seu longo discurso — com 82 minutos de duração, foi o terceiro mais longo de sempre, empurrando o seu discurso do Estado da União de 2018, que durou 80 minutos, para quarto lugar — foi por isso pautado por várias explosões momentâneas.

A maior de todas — e que fez Nancy Pelosi revirar os olhos — foi em menção à investigação do procurador especial Robert Mueller, responsável pelo caso do alegado conluio entre a campanha de Donald Trump e o Kremlin. Gabando-se de haver um “milagre económico” sob a sua administração, o Presidente dos EUA disse que “a única coisa que o pode parar são guerras absurdas, política ou investigações partidistas ridículas”.

As congressistas democratas, essenciais para que este seja o Congresso mais feminino de sempre, foram vestidas de branco em homenagem ao movimento sufragista (MANDEL NGAN/AFP/Getty Images)

De resto, Donald Trump seguiu uma linha previsível, onde procurou chamar a atenção para os feitos dos seus dois anos de governação, com uma economia a crescer 3,4% (dados do terceiro trimestre de 2018, os mais recentes); um desemprego estável e baixo, atualmente nos 4%; e uma baixa generalizada dos impostos para a maior parte dos cidadãos e empresas.

Na política externa, Donald Trump deu a entender mais uma vez que a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão e da Síria estão por perto — passando por cima do facto de o Senado, entre republicanos e democratas, ter chumbado essa possibilidade. Além disso, sublinhou o facto de se ter encontrado com Kim Jong-Un em junho de 2018 — e também referiu a aparente acalmia de Pyongyang, que não realizou nenhum lançamento de teste de mísseis nucleares no ano passado. “Se eu não tivesse sido eleito Presidente dos EUA, neste momento, na minha opinião, estaríamos numa enorme guerra com a Coreia do Norte”, disse. Sobre este tema, deu ainda uma notícia: o encontro com Kim Jong-Un previamente anunciado para fevereiro vai acontecer no Vietname, nos dias 27 e 28.

Donald Trump discursou ao longo de 82 minutos, fazendo deste o terceiro discurso do Estado da União mais longo de sempre. Os dois mais longos pertencem a Bill Clinton (MANDEL NGAN/AFP/Getty Images)

A fechar o capítulo da política externa norte-americana, Donald Trump referiu ainda o reconhecimento de Juan Guaidó como líder do “legítimo govenro da Venezuela”. Sem especificar mais quanto a este assunto — a mensagem da Casa Branca quanto à Venezuela é, já desde 2017, a de que “todas as opções estão sobre a mesa”, inclusive a militar —, Donald Trump aproveitou ainda assim para mandar uma alfinetada à nova geração dentro do Partido Democrata que assume o rótulo de “socialista” com orgulho.

“A América foi fundada sob os valores da liberdade e independência, e não da coerção, do domínio e do controlo do governo. Nascemos livres e vamos continuar livres. Esta noite, renovamos a determinação de que a América nunca vai ser um país socialista”, disse Donald Trump.

Aqui, até Nancy Pelosi bateu palmas.

Stacey Abrahams responde pelos democratas — e manteve o “não” ao muro

Momentos depois de Donald Trump ter terminado o seu discurso, as transmissões televisivas cortaram para imagens ao vivo desde o estado da Georgia. A partir dali, a candidata democrata que foi derrotada por apenas 54 mil votos num universo de quase 4 milhões de eleitores, tratou de dar a resposta democrata ao discurso do Presidente Donald Trump.

A escolha de Stacey Abrams foi uma grande mudança em relação à escolha do ano passado, em que a réplica democrata ficou a cargo de Joe Kennedy III, sobrinho-neto do Presidente John F. Kennedy — uma jogada que mereceu várias críticas, a maioria apontando o facto de o jovem político então com 37 anos ser pouco conhecido e de ter um perfil socio-económico privilegiado e em tudo distante do norte-americano comum. Com Stacey Abrams, o caso já muda de figura — e a democrata fez questão de garanti-lo contando histórias da sua família, como uma em que o seu pai, debaixo de uma chuvada, acabou por dar o seu único casaco a um sem-abrigo.

Depois de evocar aquela e outras estórias, Stacey Abrams partiu enfim para a política. E, ao fazê-lo, deixou ainda mais claro o que já era evidente: os democratas não estão dispostos a ceder a Donald Trump no tema da imigração e do muro. “Nós podemos partir de diferentes lados da barricada política, mas o nosso compromisso conjunto com os ideais desta nação não pode ser negociável”, disse.

“Sabemos que o bipartidarismo pode desenhar um plano para a imigração do século XXI, mas esta administração prefere enjaular crianças dividir famílias.”

Ao contrário de Donald Trump, a democrata fez menção direta ao shutdown, contando que fez voluntariado naquele período. “Ainda há poucas semanas, juntei-me a outros voluntários para distribuir refeições a funcionários públicos dispensados. Faziam fila à espera de uma caixa com comida e uma réstea de esperança”, Stacey Abrams contou ter visto. E que, pelo andar das coisas, vai voltar a ver.