Ao início da noite desta quinta-feira, 7 de março, uma mulher de 41 anos e a sua filha de dez anos foram encontradas mortas no interior de um carro carbonizado junto à Lagoa de Albufeira, em Sesimbra. Ainda não se sabe ao certo o que se passou, mas as autoridades investigam a possibilidade de um homicídio seguido de suicídio, até porque a mulher terá deixado um bilhete de despedida que fez o marido alertar as autoridades, avançou o Correio da Manhã e confirmou o Observador junto de fonte policial. As autoridades adiantam que “não há nenhum indício que sugira homicídio por terceiros” e que o bilhete de despedida da mãe já indicaria um cenário semelhante ao que acabou por acontecer. A mulher discutiria regularmente com o marido devido a problemas financeiros, admitiu inclusivamente o próprio à polícia.

Mulher encontrada morta com a filha em carro carbonizado deixou carta de despedida

Se vier a confirmar-se a hipótese de homicídio seguido de suicídio, para já apenas equacionada pelas autoridades, será mais um caso de vários nesta década de pais que arrastam os filhos consigo para a morte. O fenómeno não é fácil de explicar, mas a pedopsiquiatra Ana Vasconcelos dá algumas pistas ao Observador: “Os casos em que algo assim acontece e se confirma, em geral, são reveladores de uma situação de desespero brutal, de alguém que sente que deixou de haver esperança tanto para ela — quer como mulher quer como mãe — quanto para a criança que dela depende“.

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Quando um caso desses acontece, é como se a pessoa sentisse que o que a ensombra também ensombraria a filha ou o filho futuramente. Uma mãe que faz isso está com um pensamento fora da realidade, daí nunca percebermos as associações que faz, que motivações racionais ela acha que tem”, refere a pedopsiquiatra.

Pela experiência de Ana Vasconcelos, quando uma mulher se suicida e mata um filho está “isolada ou em situação de paranóia face às figuras que lhe são afetivamente importantes”, sejam “os filhos, os pais dos filhos ou outros familiares próximos”. Casos destes acontecem geralmente com pessoas que “sentem que não há esperança nem mundo para elas, que o mundo já não lhes está a dar nada, que é um ato misericordioso acabar com o seu sofrimento e com o sofrimento dos filhos“.

Não é fácil ver antecipadamente sinais de que alguém possa vir a cometer um ato destes, até porque “a solidão em que as pessoas andam e o egocentrismo disfarçam esses sinais”. Acresce que “numa situação de desespero tão grande, as mulheres que os cometem estão muitas vezes completamente isoladas e sem diálogo com os outros”, o que também dificulta antecipar algo tão extremo.

Em alguns casos, falamos de mulheres que estão ” no fundo de desemprego”. Habitualmente, estão “em situação de rutura profunda com a sociedade” e quase sempre “sem amparos humanos”. Nesses momentos, “o instinto de maternidade fica completamente alterado, enlouquecido. Entram em ações completamente antagónicas com o que é esperado uma mãe fazer em relação aos filhos”.

“São pessoas que enlouqueceram, saíram da realidade”

Quem comete um crime como o mencionado tem “traços de fragilidade emocional” que são exponenciados em situação de desespero, aponta a pedopsiquiatra. “Muitas vezes situações dessas acontecem a pessoas que são muito impulsivas, o que não quer dizer que não tenham planeado a situação com bastante cuidado. Muitas vezes são pessoas que sentem um desconforto tão grande que não se conseguem libertar dele, só se afundam mais por causa das suas fragilidades, dos seus traços de personalidade e dos contextos sociais difíceis em que estão”.

Estamos sempre a conversar connosco próprios, temos todos narrativas internas. Mulheres que fazem coisas dessas têm narrativas internas extremamente angustiantes, pensam recorrentemente que não existe ninguém que as possa ajudar, tal é a situação limite de desespero e desamparo. São pessoas que enlouqueceram porque enlouquecer significa sair fora da realidade”, afirma Ana Vasconcelos.

O sofrimento psicológico e mental destas pessoas é tal que “perdem a liberdade de serem mães, de serem quem são. São apenas sobreviventes que pensam que fazer algo tão extremo é um ato de misericórdia“, refere a pedopsiquiatra. Ana Vasconcelos alerta os pais para terem cuidado a comentar notícias de homicídios de pais a filhos, quando os descendentes são ainda crianças e pré-adolescentes: “Devem dizer-lhes que é uma coisa rara e que a pessoa que fez aquilo está muito doente da cabeça. Há miúdos de 7, 9 ou 12 anos, por exemplo, que parece que estão alheados mas estão a ouvir e ficam muito aflitos. Quando a [princesa] Diana morreu no túnel, lembro-me de lidar com miúdos que não queriam que as mães andassem no túnel do Campo Grande”.

Para os familiares ou amigos próximos que lidam com casos tão extremos, “é preciso estar-se muito atento às memórias traumáticas. O impacto que uma coisa dessas tem depende também da idade da pessoa e da afinidade que tem com quem se suicidou e com quem matou. Porém, é preciso cuidar sempre das narrativas internas que as pessoas vão construindo sobre a situação em que estava a pessoa em questão”.