“Vá, pessoal. Os americanos não querem uma guerra de comida, querem ouvir-nos dizer como vamos pôr-lhes comida na mesa”. Foi assim que a senadora da Califórnia Kamala Harris pediu calma, a dada altura, no debate do segundo grupo de 10 pré-candidatos do Partido Democrata. Era o debate mais esperado, já que contava com dois dos principais candidatos à corrida para eleger o adversário de Donald Trump em 2020: Joe Biden, que foi vice-presidente de Obama e que lidera as sondagens, e Bernie Sanders, que tem uma grande base de apoio depois de em 2016 ter falhado por pouco a nomeação dos democratas. Mas as estrelas da noite, num debate descrito como caótico, não foram nem um nem outro. Foi Kamala Harris, a senadora californiana e ex-procuradora-geral daquele Estado, que deu mais nas vistas, tendo conseguido pôr Biden a jogar à defesa e Sanders sem margem para brilhar.

De acordo com a imprensa norte-americana, Kamala Harris destacou-se pelas suas denúncias “sucintas e eficazes” das políticas da Administração Trump, desde o tratamento dado às crianças migrantes até às desigualdades dos preços das rendas, que fizeram o nome de Trump ser muito mais citado desta vez do que tinha sido no debate da noite anterior, em que o atual Presidente foi poupado. Mas o momento mais tenso foi quando a ex-procuradora da Califórnia perguntou a Joe Biden se ele se arrependia de ter estado contra uma medida conhecida como “busing”, usada nos anos 70 para combater a segregação racial das escolas, identificando-se a si própria como uma das crianças negras que, nos anos 70, foi diretamente afetada por essas políticas. Trata-se de um conjunto de políticas que, se fossem aprovadas, teriam impedido as crianças das minorias de estudar em escolas públicas de distritos de maioria-branca.

“Nessa altura, havia uma menina em Oakland, California, que ia todos os dias de autocarro para a escola pública, e essa menina era eu”, disse a senadora, num discurso emotivo que deixou Biden à defesa, apesar de negar todas as acusações de racismo. “Vice-Presidente Biden, eu não acredito que seja racista, e acredito em si quando diz que se compromete com os valores e a missão de encontrar um bem comum, mas acredite também, e isto é pessoal, que foi doloroso para mim ouvi-lo falar sobre a reputação de dois senadores norte-americanos que construíram as suas carreiras com base na segregação racial deste país”, disse. Foi, sobretudo, o seu discurso apaixonado que pôs Biden à defesa, e essa foi a principal marca do debate.

Já Bernie Sanders, ao contrário do que seria de esperar, apesar de não ter saído como derrotado da noite, também não emergiu como vencedor: com um discurso mais à esquerda do que alguns dos seus adversários internos, Sanders limitou-se a replicar a linha argumentativa que já tinha há três anos, nas primárias de 2016, que passa pela defesa de um sistema de saúde públido para todos (Medicare Para Todos), acabando com os seguros de saúde privados, e por fazer frente às farmacêuticas e aos gigantes de Wall Street, defendendo mais impostos para os mais ricos.

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Ainda assim, a CNN pôs Sanders, assim como Biden (que se limitou a puxar do galão Obama), no leque dos perdedores da noite, afirmando que o senador do Vermont não brilhou, não foi apaixonado, e que tem de perceber que há uma diferença entre debater contra a candidata do regime (Hillary Clinton) e debater com 9 outros candidatos que estão praticamente na mesma posição do que ele.

No leque dos vencedores, aparecem Kamala Harris, descrita como “calma, conhecedora e com uma postura presidencial”, mas também Pete Buttigieg, o autarca de South Bend, no Indiana, de apenas 37 anos, que “mais parecia um senador ou um governador com vasta experiência política”. O seu ponto de vista sobre a religião foi um dos momentos altos:  “Devemos nomear a hipocrisia quando a vemos. Para um partido [republicano] que se associa com o Cristianismo, dizer que Deus sorriria perante a divisão de famílias nas mãos de agentes federais, que Deus aprovaria colocar crianças em gaiolas, perderam todo o direito de alguma vez voltarem a usar a linguagem da religião”, disse, referindo-se à separação de famílias na fronteira.

O debate desta quinta-feira à noite envolveu 10 candidatos, tendo na quarta-feira subido ao palco outros 10. Para terem direito a subir ao palco, bastou terem 1% em sondagens nacionais ou terem recebido mais de 65 mil dólares em doações individuais. Os 20 democratas foram misturados aleatoriamente, mas à condição de que os dois debates tivessem alguns dos candidatos mais populares. Uma estratégia diferente daquela que foi adotada pelos republicanos há três anos, em que os candidatos com menos popularidade fizeram um debate à parte, antes do confronto entre os principais candidatos.

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