A hipótese de um referendo sobre a eutanásia foi um dos temas do Congresso do PSD deste fim de semana. E o partido marcou uma reunião de todos os deputados para esta quinta-feira, 13 de fevereiro, para discutir a despenalização da eutanásia, confirmou a direção da bancada ao Observador. O encontro será feito uma semana antes da votação na generalidade, a 20 de fevereiro, mas para o PSD — que dará liberdade de voto a todos os deputados — este é um processo e um debate que está ainda a começar. Alguns sociais-democratas esperam até que, neste primeiro momento, os diplomas desçam à especialidade sem votação — o que dará mais tempo aos deputados para refletirem. E esta é só a primeira batalha: mesmo que seja aprovado no Parlamento, o PSD ainda poderá liderar um movimento por um referendo sobre o assunto. Rio quer separar bem os dois momentos e está em contra-ciclo com a maior parte do partido em ambos.

Adão Silva, vice-presidente da bancada do PSD, confirmou ao Observador a reunião e diz que os deputados poderão “fazer todas as intervenções que entenderem” durante o encontro. Independentemente do que discutam, já está tomada a decisão da bancada de não tomar posição e de não impor disciplina de voto, como é habitual nas questões de consciência. “Nesta matéria haverá liberdade de voto, liberdade de pensamento e de consciência”, antecipa Adão Silva.

O deputado, que é apontado como sucessor do atual presidente na bancada social-democrata, diz que é um “raro privilégio” ter o líder do partido a liderar os deputados, o que garante que a discussão chega à direção do PSD. Só que há um detalhe: Rio é a favor da eutanásia.

Os sete dias que separam a reunião de quinta-feira do dia da votação são, para Adão Silva, suficientes para os deputados refletirem sobre a posição a tomar “caso haja votação” no dia 20 de fevereiro. Apesar disso, o dirigente da bancada social-democrata diz que “o mais provável é que, como existem cinco ou seis iniciativas legislativas, o diploma baixe à especialidade sem votação”. Ora, até à votação final global, haverá mais tempo para reflexão e debate.

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Adão Silva — embora reforce que esta sua posição é pessoal e não vincula o PSD — não é a favor do referendo mas entende que a legalização da eutanásia pode ser aprovada no Parlamento “sem prejuízo que mais tarde se realize um referendo”. Para o vice-presidente da bancada, “neste momento o que há a discutir são os diplomas em cima da mesa, mas um referendo pode ocorrer sempre, nos termos em que a Constituição permite, e até já existe uma petição assinada por milhares de pessoas para que isso aconteça”. Mas avisa: “Cada coisa a seu tempo”.

Já Ricardo Baptista Leite, um dos nomes do PSD que está contra a despenalização da eutanásia, atira aos partidos que, diz, “querem acelerar a votação sem permitir o devido esclarecimento da população e dos partidos”. O deputado, que também é médico, deixa críticas aos partidos que “não tiveram coragem de assumir no programa eleitoral” o tema da eutanásia, numa crítica ao PS, que já tinha votado a favor em maio de 2018 (com as excepções de Miranda Calha e Ascenso Simões), mas não colocou nada no programa eleitoral às legislativas de outubro.

Mas, mais do que pensar num eventual referendo semelhante ao de 1998, o deputado frisa o tempo que irá decorrer entre a votação na generalidade e a votação final global do projeto de lei sobre a eutanásia. “Haverá tempo para uma reflexão profunda do próprio partido [PSD] e para a sociedade civil se fazer ouvir”, afirma ao Observador.

E, além do trabalho no Parlamento, Baptista Leite ainda lembra — discretamente — o papel de Marcelo Rebelo de Sousa. Afirma que “o primeiro passo de um processo legislativo é dado no Parlamento”, recordando que após esse trabalho ainda há lugar para o Presidente da República se pronunciar sobre as leis.

Comparando a atual composição do Parlamento com a de maio de 2018 (quando o projeto do Partido Socialista recebeu 110 votos a favor, 115 contra, e 4 abstenções) esta parece ser mais favorável à aprovação da despenalização da eutanásia. Na bancada socialista, um dos dois deputados que votou contra em maio já não se senta no hemiciclo. Caso não haja mais nenhum deputado a votar contra, o PS poderá contar com 107 ‘sim’, somando-se as bancadas do PEV (dois deputados) e do Bloco de Esquerda (mais 19 ‘sins’), os quatro ‘sins’ dos deputados do PAN, o ‘sim’ do deputado do Iniciativa Liberal, número mais que suficiente para fazer passar um dos quatro projetos de lei que serão debatidos no dia 20.

Isto não contando, claro, com deputados das outras bancadas que poderão somar-se aos partidos que apresentaram projetos de lei para a despenalização da eutanásia e que, não tendo disciplina de voto imposta pelo partido, poderão votar também ‘sim’ no debate na generalidade.

No PSD, há vários deputados que ainda não decidiram o seu voto. Um desses casos é o candidato à liderança da JSD, Alexandre Poço, que durante o Congresso disse ao Observador que ainda não tinha decidido como votar no dia 20, embora destacasse a legitimidade do Parlamento para tomar uma decisão sobre o assunto.

Referendo: o passo seguinte, que é incómodo para Rio

O assunto até podia ter passado discretamente do Congresso do PSD que decorreu no último fim de semana, mas os congressistas aprovaram a moção “Eutanásia: cuidar e referendar” com várias vozes do partido a saírem em defesa da realização de um referendo. Quando as moções foram reveladas, no final de janeiro, pouca gente se importou com a moção de António Pinheiro Torres. Por duas razões: primeiro, o assunto era incómodo para Rio (por ser a favor da despenalização da eutanásia e contra o referendo) e, tendo o líder uma boa parte dos delegados, a proposta não passaria; segundo, porque as moções temáticas são muitas vezes atiradas para debaixo do tapete e colocadas em banho-maria sem que nada aconteça.

Mas Rio foi cercado neste assunto. Logo na manhã de sábado foi noticiado que uma antiga líder do PSD e uma das suas maiores apoiantes, Manuela Ferreira Leite, assinou a petição do movimento “#simavida”  que propõe uma Iniciativa Popular de Referendo sobre “a (des)penalização da morte a pedido”.

Depois, a meio da tarde, no Congresso do partido em Viana do Castelo, foi a vez de Paulo Rangel subir ao palco e defender que é necessário um referendo, uma vez que “não tem havido um debate sobre esta matéria”. Para o eurodeputado, é “preocupante que se vá fazer um voto sobre a eutanásia sem um amplo debate nacional”.

Rangel dirigiu-se a Pinheiro Torres, autor da moção, e disse que antes não estava convencido com a ideia de um referendo mas mudara de ideias: “Não era propriamente um partidário, um adepto, do referendo, vejo que hoje é a única solução para promover um debate do qual as pessoas possam sair mais esclarecidas”. E dramatizou: “Estou muito preocupado. Temos esta notícia da Holanda da pílula sem dia seguinte. Todas as pessoas que fazem 70 anos receberão como prenda de aniversário um comprido com o qual podem suicidar-se. E depois quem é que controla o destino destes comprimidos? Às tantas vamos ter gente a matar gente”.

Paulo Rangel arrancou muitos aplausos quando falou da eutanásia. Só não parece ter convencido (ainda) o líder do partido, Rui Rio, que se mostrou algo desconfortável com aquilo que o eurodeputado social-democrata ia avançando no palco do congresso. Segundo congressistas que repararam nesse momento, Rio não aplaudiu essa parte do discurso de Rangel. Confrontado depois pelos jornalistas com essa hipótese, Rio ainda disse que “não há nada a fazer” e que “não haverá referendo na próxima semana”. A ideia de Rio é a de Adão Silva: um problema de cada vez. A estratégia do líder do partido é, para já, colocar toda a discussão no plano parlamentar.

Mas no fim de semana ainda teria mais uma pressão: a moção de António Pinheiro Torres — que propõe um referendo sobre a eutanásia — foi aprovada por larga maioria e com aplausos.

Referendo poderia vir depois da aprovação. Já aconteceu em 1998

Mesmo em caso de aprovação da eutanásia, haveria a possibilidade de avançar para um referendo. Não seria a primeira vez que os deputados portugueses veriam uma decisão sua suspensa no tempo por um referendo. A 4 de fevereiro de 1998, o parlamento aprovou na generalidade o então projeto de lei do Partido Socialista, que teve como cara principal Sérgio Sousa Pinto, que previa o aborto por vontade da mulher até às 10 semanas de gestação. No dia seguinte, António Guterres — primeiro-ministro e secretário-geral dos socialistas na altura — chegou a acordo com o então líder dos sociais-democratas, Marcelo Rebelo de Sousa, para que a matéria aprovada no dia anterior fosse sujeita a referendo.

O referendo acabaria por ocorrer a 28 de junho de 1998. Depois de uma campanha com slogans como “não matem o zezinho”, o “não” ganhou por pouco: 1.356.754 de votos no “não” contra 1.308.130 que votaram “sim”. Mas um referendo, para ser vinculativo, tem de ter uma participação de pelo menos 50% do universo eleitoral. O que não aconteceu: houve 68,1% de abstenção.

A aprovação no Parlamento e os eleitores a decidirem o contrário foram os ingredientes certos para deixar o assunto em banho-maria durante quase 10 anos. Entre governos do PS e do PSD, o assunto foi sendo adiado até que, no novo referendo de 2007, mais de 59% dos portugueses votaram ‘sim’. O primeiro referendo depois da decisão tomada na Assembleia da República valeu quase 10 anos de adiamento da entrada em vigor da despenalização do aborto.

Com a atual configuração do hemiciclo a ser mais favorável à despenalização da eutanásia, a estratégia do PSD poderia passar pela realização de um referendo pós-aprovação. Numa entrevista à RTP este fim de semana, Rio disse que, nesse caso, respeitaria a decisão dos militantes: “Eu pessoalmente tendo a dizer que não, se o partido entender que esta matéria um dia deverá ser decidida por referendo, também não é antidemocrático”.

Certo é que Marcelo Rebelo de Sousa é uma das variáveis que se repete na equação, agora na condição de Presidente da República, com António Costa a ocupar o lugar de primeiro-ministro e de secretário-geral dos socialistas. O chefe de Estado já disse que só se pronunciará sobre o tema depois de o Parlamento se manifestar.