Leonard Lauder chamou-o de Lipstick Index, ou Índice do Batom. Quando nos anos 2000 a economia titubeou até entrar em recessão, um artigo em particular, afastado da prateleira dos bens de primeira necessidade, não só gozava de saúde como acusava um pico na procura. Em tempos turbulentos, as pequenas embalagens destinadas a colorir os lábios cumpriam a categoria de pequena mas acessível compra de luxo, um acessório de cosmética capaz de guindar os ânimos em tempos cinzentos. Mas várias décadas depois desse batismo servido pelo presidente do império da beleza Estée Lauder, um inesperado vírus redefiniu o look de milhões, vai deixando o seu lastro nas compras, e parece apostado em destronar a popularidade do batom. Afinal, face ao imperativo da máscara, quem se preocupa com a cor dos lábios e incómodas marcas?

Será este o arranque de uma nova dinastia, a das máscaras (agora para pestanas) e dos eyeliners, não fossem estes os mais expostos ao contacto com o próximo e o alvo de todas as atenções? Em jeito premonitório, há vários meses a série Euphoria lançou a corda à ousadia e levou-nos a repousar atenções no poder do olhar, com um sem fim de soluções gráficas que hoje parecem bem apetecíveis. Mais ou menos afoitos nas escolhas, preparados para arriscar em soluções extremas ou fiéis a ritos tão clássicos como infalíveis, a geometria dos próximos tempos é certamente outra. Esta semana, o The Washington Post resumia a questão: “As máscaras mudaram a forma como vemos ou outros, e como nos vemos a nós próprios”. E  se qualquer tutorial no YouTube já percebeu que um investimento localizado a sul do nosso nariz tem um retorno praticamente nulo, também a forma como comunicamos se encontra em mudança.

Discussion about introducing Tracking App to limit the Spread of Coronavirus

Protegida pela omnipresente máscara, a boca perde protogonismo nesta equação de beleza. Hidratação é a palavra possível quando todos os olhos se voltam para o papel do olhar © Getty Images

A redefinição de prioridades na beleza começou a ser traçada desde logo no começo da fase de isolamento. Afastados temporariamente do espaço de trabalho, convidados a descontrair, várias muletas habituais do quotidiano — do uniforme ao leque de produtos escalados para a rotina de beleza — ficaram pelo caminho. Pelo contrário, outros pretendentes da nossa atenção entraram em cena. “Desde o início do confinamento notamos uma procura muito grande pelos produtos de tratamento de beleza especialmente cremes de rosto e máscara de tratamento. Também houve um verdadeiro fenómeno em relação aos produtos para cabelos: coloração, shampôs, tratamentos específicos para prolongar a cor e manter o aspeto bonito do cabelo. A impossibilidade de ir ao cabeleireiro aumentou a procura destes produtos”, enquadra Isabel Costa Cabral.

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Não por acaso, pequenos dramas como umas raízes demasiado visíveis ou umas unhas à espera de salvação compuseram a lista de dúvidas das últimas semanas, até à aguardada reabertura dos salões.

Sobre os principais eleitos no capítulo da cosmética, a Diretora de Marketing da Perfumes & Companhia confirma a toada: “A maquilhagem e em especial os batons caíram muito. Ao estarem em casa e com uma vida social limitada as pessoas sentem menos necessidade deste tipo de produtos”. E se é um facto que o uso de máscara tapa a prestação do batom, “por outro lado, vemos uma maior procura e interesse por produtos e dicas de maquilhagem de olhos. Ao usarmos máscara os olhos ganham um protagonismo maior e são os melhores aliados para transmitir a nossa beleza neste momento”, acrescenta, sublinhando a tendência.

Da China, o epicentro da pandemia, vão chegando os ecos do reestabelecimento no consumo, com items como sombras, eyeliners ou escovas de sobrancelhas a caírem no goto, a avaliar pelos números registados na Tmall, a plataforma de compras online do grupo Alibaba.

Essenciais, sim. Testers, nem por isso

É um facto que a indústria se vai adaptando a novos desafios. Ainda da Ásia, chegou esta semana a novidade de um sistema virtual gratuito que permite aos utilizadores testar produtos de maquilhagem, uma forma de contrariar as quebras abruptas na procura impostas pela Covid-19. Graças à ferramenta de realidade aumentada da tecnológica chinesa Meitu, é possível em segundos ver como nos fica aquele gloss, sombra ou até uns óculos de sol.

Por cá, podemos ainda estar longe de tanta parafernália, mas a procura, crescente, está longe de abrandar. “Há um grande interesse de há cinco anos para trás, com qualquer blogger ou influencer a dar dicas de maquilhagem. Foi um crescendo. Foram também aparecendo uma série de marcas acessíveis, que ajudaram muito ao crescimento do mercado. Dantes só havia alta perfumaria e era tudo um balúrdio. A maquilhagem tornou-se mais acessível e começou-se a falar do tema nas redes sociais. Despertou alguma curiosidade”, descreve Inês Franco.

É online, agora às terças e sextas, que a maquilhadora esclarece da forma mais breve e descomplicada possível as dúvidas que assombram utilizadores, perdidos entre múltiplas marcas e soluções de beleza, para não falar de uma série de mitos urbanos. “Às vezes um produto de 30 euros não é melhor que um de 8. Agora, a grande dúvida das pessoas é como escolher, daí a procura de aconselhamento junto dos profissionais. Não se falava de primer, iluminador, modelador, bronzer, nem havia nada disto. Usavam apenas os profissionais. Hoje no Instagram há imensa informação”.

Fiel a um estilo “muito prático” e pronto a ensinar “pequenos detalhes”, Inês admite que os últimos meses ditaram uma revisão das preocupações, com muitos a deixarem a maquilhagem em segundo plano. Em todo o caso, o fascínio mantém-se. “Ainda não me questionam muito sobre maquilhagem por causa da máscara. Talvez tenho umas 10 perguntas sobre como fazer aguentar mais com a máscara mas em geral continuam a querer aprender a fazer maquilhagem de tudo. Querem saber de iluminadores, modeladores, coisas que não se veem atrás da máscara”.

Avessa a modas passageiras, prefere apostar em clássicos e produtos que ofereçam garantia de qualidade. Afinal de contas, “a pessoa não tem que andar na moda, tem que se sentir bonita, estar bem. A cara é uma identidade. Não sou muito de seguir tendências. Podem adaptar a tendência, ok. Um smokey eye com cores muito fortes pode ser adaptado à necessidade da pessoa e ao seu gosto”.

Street Style - New Zealand Fashion Week 2019

Recuando a esta imagem de 2019, as máscaras estão longe de ser uma novidade. Então uma extravagância ao nível do streetstyle, afirmam-se hoje como um novo símbolo de expressão de identidade, para lá das imposições sanitárias © Getty Images

Durabilidade é um valor seguro no qual muitos consumidores poderão refugiar-se por agora, e uma das três tendências de consumo que provavelmente verão o seu trajeto consolidado, apesar do risco de “fazer grandes futurologias”, lembra Isabel Costa Cabral. “A nível de tipo de produtos vemos uma concentração nos produtos que chamamos “pilares”, produtos conhecidos, com resultados demonstrados em detrimento das novidades. As pessoas procuram comprar valores seguros e, no nosso caso, procuram especialmente produtos de tratamento de beleza”.

Para a responsável, há outros dois aspetos essenciais no processo de compra. Por um lado, o crescimento do mercado digital — “muitos clientes compraram pela primeira vez via online; acredito que muitos vão ficar fãs e manter-se neste canal” — por outro, o reforço do comércio de rua — “a tendência ‘comprar local’, na ausência de grandes superfícies comerciais abertas, de dificuldades de mobilidade e, especialmente, pela proximidade e baixa concentração de pessoas muitos de nós redescobrimos o comercio local, a loja de rua”.

Uma coisa é certa, pelo menos entre os principais gigantes do setor: esqueça os testers nas lojas. A Sephora é uma das cadeias onde deixará de encontrar estes providenciais dispensadores comunitários. E acredite que só temos a agradecer, em especial nesta altura. A Business Insider recorda como em 2017 uma cliente acusou o grupo de apanhar herpes na sequência da utilização de um destes batons, apenas uma pista sobre o poder de atração de vírus que estes sticks relevam e podem ajudar a propagar. No ano passado, aliás, um estudo citado pelo mesmo órgão notava que 70% destes produtos que rodam pelos clientes acusaram níveis de contaminação que nos deixam tudo menos seguros.

Sobre as preferências para esta primavera-verão nada usual, já em abril a mesma publicação virava agulhas para a subida na procura por cremes hidratantes, máscaras à prova de água e outros potenciadores do olhar.

Entre o minimalismo, a exuberância e o surgimento de novas microcategorias

Austeridade e recato ou efusiva celebração do regresso a uma certa normalidade? Há gostos para tudo, como em quase todas as áreas. Em abril, a Time afugentava eventuais vergonhas e mostrava como o uso de maquilhagem, mesmo em tempo de pandemia, é uma opção tão válida como qualquer outra — podendo até desempenhar um papel altamente terapêutico em fase de incerteza. De resto, a cosmética já se afirmou em alguns casos como chão fértil para uma urgente militância, testemunhando como um ritual aparentemente frívolo pode dizer mais sobre nós e o mundo do que inicialmente pensamos.

Street Style - Paris Fashion Week - Womenswear Fall/Winter 2020/2021 : Day Six

Do “no make up make up look”  às criações mais rebuscadas, a imaginação e audácia são o limite © Getty Images

Claro que todos os cuidados são poucos quando nos recomendam distância suficiente do rosto, daí que as questões existenciais tenham chegado a planos como “qual é a melhor forma de limpar os pincéis”? Não estranha também que uma modalidade como o “no make up make up look” vá fazendo escola, com a frescura e hidratação a ganharem terreno a artifícios extra. Um bom creme, o providencial toque do concealer, uma pitada de blush e hidratante labial et voilá–andará por aqui a fórmula da quarentena para quem não eliminou várias camadas dos seus hábitos mas não prescindiu dos mínimos olímpicos nesta matéria.

Para Sharon Kwek, baseada em Singapura e analista de inovações ao nível da beleza e cuidado pessoal na Mintel, há toda uma janela de oportunidade que se abre para a esfera da cosmética. “A indústria pode esperar o aparecimento de micro-categorias ao nível das cores, paletes de sombras, eyeliners, máscaras e concealers”, destaca, apontando ainda para novos acabamentos e texturas.

Apesar deste potencial, Inês Franco acredita que a chegada de novidades como estas possa demorar. Ainda que marcas e influencers prometam respostas eficazes a cada novo dilema. #maskproofmakeup será uma das mais preciosas garantias para as indefetíveis da cosmética e sua infindável oferta.

Não se atreve mesmo a sair sem base? Então siga estas dicas

Se o minimalismo total não a/o convence, nem tudo está perdido, mesmo que só os olhos fiquem à vista. “É apostar para ficar com um olhar bonito” sintetiza Inês Franco. “O que vai dar é as máscaras de pestanas, eyeliners. Batom, esqueça, nem vale a pena pôr. Até podem ser mate mas é sempre um risco, fica húmido”. Para a maquilhadora nada melhor que o ajuste à realidade para evitar “um susto” no momento em que retiramos a máscara. “É apostar no hidratante, aplicar a base e trabalhar os olhos”.

Se não prescinde da base, é preferível apostar nas de longa duração, mais secas, para aguentarem mais tempo. Mas antes deste passo, há um outro bem relevante. E depois dele, também uma nova etapa, decisiva no resultado final. “Usar o primer antes da base e usar fixador em spray, que parecem uma laca, para finalizar a maquilhagem e ir retocando ao longo do dia, senão não há hipótese, com algo a esfregar-lhe na pele”, recomenda a maquilhadora, frisando que os fixadores produzem até mais milagres que os primers.

Catwalk - International Hairdressing Awards

© Getty Images

E se pensa que é tarde para se iniciar neste admirável mundo novo, dê uma segunda oportunidade. Segundo Inês, que mantém um atelier onde dá workshops, 70% das pessoas que a procuram “nunca se maquilharam, não são pessoas que vêm à procura de se aperfeiçoar, querem começar”. Mais uma vez, há interessados para todas as idades, incluindo homens em busca de disfarçar as olheiras, com muitas alunas a partir dos 40 anos mas também desde os 14. “As próprias mães vão lá levá-las. Elas devem começar a maquilhar-se, carregam muito, as mães não acham muita piada, e então devem levá-las para ao menos aprenderem com quem sabe”.

Falando de base e de eyeliner, são estas as duas maiores dúvidas e hesitações de quem procura conselhos, antes ou depois de qualquer pandemia e consequentes restrições. Sobre a eleição da primeira, Inês dá uma ajuda extra, que nunca é demais lembrar. “Comprar a base é um processo, é dos produtos mais caros, portanto não se deve gastar dinheiro em vão. Quando escolhemos, deve ser adequada ao tipo de pele. Se for oleosa, deve ser oil free, se for seca deve ser hidratante. Depois de aplicar devemos ir para a luz natural, esperar duas horas e ver como é que a base reagiu na pele. Costumam comprá-la na perfumaria, longe da luz natural, e quando se veem no espelho do retrovisor, altera completamente”.

Em todo o caso, se puder dar uma folga à sua pele, verá que agradece. Privada de respiração pelo uso acrescido da máscara, hidratação é a palavra chave. Ah, e não menospreze o velho e fiel amigo, o corretor de olheiras.