Ainda não eram 19h em ponto, hora marcada para o encontro, e junto ao edifício da Casa da Música, na Boavista, já se encontravam dezenas de homens e mulheres vestidos de preto, com uma máscara no rosto e com um cartaz na mão onde se liam expressões como “Recibo Verdi”, Precário e bem há pouco quem”, “Responsabilidade social já” ou “Espetáculo da precariedade”.
A vigília silenciosa organizada por trabalhadores precários e dispensados das duas instituições portuenses chamou a atenção dos que passavam a pé ou de carro por ali e coincidiu com a reabertura da Casa da Música esta segunda-feira, marcada por um concerto da orquestra barroca. Enquanto um segurança, de máscara e viseira no rosto, orientava os espetadores para as escadas que davam acesso à entrada, o deputado do BE José Soeiro tirava fotografias ao aparato e os habituais skaters daquele local contornavam os que se faziam notar, mesmo em silêncio.
Hugo Veludo, assistente da Casa da Música, era um deles. No seu cartaz lia-se “tratar uma percárie” e sem vínculo laboral há dois anos e meio é um dos 43 assistentes que, segundo ele, “vivem uma situação de falsos recibos verdes”. “Fomos descartados, é este o termo, como se fossemos um material obsoleto. A partir do momento em que a Casa fechou, deram-nos a justificação que não iríamos receber mais nada”, conta em entrevista ao Observador.
Ao abaixo assinado enviado a 18 de abril para a instituição, do qual faziam parte 90 trabalhadores, a administração nunca deu resposta. “Essa questão chocou-nos”, recorda Hugo, admitindo que algumas das pessoas que assinaram o documento “foram contactadas individualmente pela sua chefia direta com algumas propostas falaciosas”. Uma das propostas prende-se com uma banco de horas, uma solução que considera “uma falsa questão que acaba por empurrar o assunto para um futuro próximo”.
Hugo Veludo diz estar na Casa da Música por gosto, mas não esconde a situação “complicada” que tem vivido nos últimos dois meses. “Além da Casa, trabalho por conta de outrem, isso fez com que não fosse elegível aos apoios da segurança social. Estes apoios foram a única opção que a administração nos deu” explica.
A intenção da iniciativa, da qual Hugo é uma das caras principais, é que a direção se pronuncie e que a mensagem chegue também até à ministra da Cultura. “Aos nossos colegas de Serralves foi-lhes dito que eram poucos e por isso o seu caso não seria relevante. Decidimos dar-lhes a mão e puxá-los para esta vigília. Esta é uma vigília silenciosa porque até agora foi o silêncio que tivemos por parte da direção.”
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Ao seu lado, Teresa Aguiar, guia na Casa da Música há 13 anos, não recusa falar através de uma máscara preta a condizer com a indumentária. Diz representar uma equipa de 17 pessoas que viu os seus serviços suspensos desde o dia 12 de março, data em que a Casa fechou portas devido à pandemia da Covid-19.
O silêncio que tem recebido por parte dos responsáveis encara-o como “um total desrespeito por todos os trabalhadores que fazem da Casa aquilo que ela é”, e sublinha não existir “qualquer justificação para a ausência de diálogo”. Arquiteta de formação, Teresa viu suspenso grande parte do seu rendimento mensal e não tenho qualquer perspetiva de retomar a sua atividade. “Ainda não tive que pedir ajuda, mas estou quase lá”, admite ao Observador.
André Silva, técnico de palco na área da produção da Casa da Música há 15 anos, veste literalmente uma camisola com o símbolo da instituição. “A totalidade do meu rendimento vem desta instituição”, começa por dizer, recordando a proposta de bolsa de horas por parte da instituição. “Calculavam um valor médio relativo aos últimos seis meses, adiantavam me esse dinheiro, mas depois teria que diluir esse valor em trabalho gratuito ao longo de um período de um a três anos, ou seja, ia trabalhar de borla. Não passava de um crédito.”
O abaixo assinado coletivo de meados de abril, foi “encabeçado por funcionários solidários com a causa, pois têm vínculo com a Casa e estavam a receber 100%”. No entanto, o técnico viu colegas a receberam telefonemas por parte da administração com pressões, o que acabou por levá-los a retirar as suas assinaturas “por medo de represálias”. “Apelavam que tínhamos um casamento com a Casa da Música, mas como em todos os casamento há divórcios. Em algumas situações, de forma pouco digna, evocaram até motivos familiares, como o terem filhos e casa para pagar. Não é digno falar sobre isso.”
Atualmente, com a reabertura de portas, os colegas que retiraram as assinaturas do documento foram chamados para trabalhar. “Só eu e um colega meu, que mantivemos os nossos nomes, ainda não fomos chamados. Digo isto porque temos acesso à escala através de uma plataforma online.”
Sente-se tratado de forma “desumana” pela instituição e deixa farpas à ação demorada da Autoridade das Condições de Trabalho (ACT). “Ainda hoje reunimos com um inspetor da ACT, mas só nos podem ajudar caso apanhem o meu caso em flagrante, ora eu não estou a trabalhar e é impossível. Há indumentária, há emails, há escalas de trabalho, transferências bancárias, há tudo e mais alguma coisa. A ACT não atua, por isso vamos recorrer para o Ministério Público e para tribunal.”
André Silva recebia uma média de 1400 euros brutos, recorrendo ao apoio da segurança social conseguiu receber esse valor em dois meses e meio, no entanto tem de continuar a contribuir com o imposto. “Num mês recebi 600 euros, mas tive que pagar 200 e pouco à segurança social, e recebi menos de 400. Chama-se segurança social, mas podíamos chamar de insegurança social.” Nos últimos dois meses, o técnico, com um filho de 8 anos, diz ter conseguido pagar a renda e a alimentação com as poucas poupanças que tem, mas pedir ajuda não está fora dos seus planos. “Vivo na corda bamba, no limite.”
O Observador tentou um esclarecimento por parte da administração da Casa da Música, mas a mesma diz não prestar qualquer declaração.
Serralves: um caso semelhante
“Serralves: não é a mesma casa, é a mesma causa” lia-se em alguns cartazes segurados por educadores daquela instituição que se juntaram ao protesto. Inês Soares é uma delas. Tem 27 anos e trabalha há cinco da Fundação. Conta ao Observador que em fevereiro, os trabalhadores anteciparam-se ao estado de emergência nacional e, ao ver parte das suas atividades serem canceladas, contactaram a fundação para saber o que tinha planeado. “Um dia antes da decisão do encerramento, ainda existiam atividades previstas, eu própria tinha uma oficina para famílias e não recebi nada por isso.”
Após enviarem um documento coletivo onde avaliavam os prejuízos que tiveram, a propor valores compensatórios e atividades alternativas, a administração “limitou-se” a dizer que “não tinha condições para nos colocar em regime de teletrabalho, o que é mentira”. Com o lançamento do SOLE – Serralves Online Experience, Inês acredita que algumas das propostas poderiam ser desenvolvidas pelo serviço educativo, o que não chegou a acontecer. “Alguns educadores foram contactados para desenvolver umas oficinas no início da pandemia, mas que os restantes foram deixados em suspenso.” Sobre soluções apresentadas, a resposta é sempre a mesma. “Empurraram os trabalhadores independentes para os apoios sociais. Questiono a integridade destas instituições a quem dá a cara por elas todos os dias.”
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A educadora, e ilustradora de formação, sente-se uma privilegiada por ter conseguido um apoio de segurança social de 438 euros, mas admite que fazia cerca de mil euros nesta época do ano. “Gostamos do que fazemos, mas queremos mudar o nosso vínculo e a nossa condição.”
A sua colega, Andreia Coutinho, integra o serviço educativo em Serralves há 7 anos e defende a mesma causa. Tem um emprego alternativo a esta função, pois a precariedade não lhe deu outra alternativa. “A nossa situação é muito parecida com a Casa da Música. Há precariedade, falta de resposta e tratam-nos como se fossemos invisíveis. Mas a precariedade não é de agora.”
Mais do que financeira, Andreia diz que a consequência deste corte é emocional. “Sinto-me bastante afetada emocionalmente”, admite. Para esta educadora, “Serralves tem um potencial incrível” e nas duas horas em que segurou este cartaz na rua, diz ter ouvi pessoas a dizerem: “Serralves é nosso”. “Parte do financiamento da fundação são dinheiros públicos, por isso é normal que as pessoas sintam aquela casa como se fosse a casa delas. Serralves tem de ter uma responsabilidade social.”
Raquel Sambade está há mais de 10 anos em Serralves como educadora e afirma que mais de 97% do seu trabalho na última década foi dedicado aquela instituição. “É evidente que há uma responsabilidade, mais que não seja ética. Se isto não é uma situação de falsos recibos verdes, então não sei o que é.”
A resposta dos responsáveis às reuniões pontuais ficou das suas expetativas. “Foi-nos dito que não está definida uma estratégia para a serviço educativo se adequar a esta nova normalidade. Ora, temos consciência que o nosso maior público são as escolas e elas não vão voltar a estar presentes no próximo ano letivo, por isso há que trabalhar em alternativas à distância.”
Para a educadora existem muito modelos que poderiam ser adotados e copiados de outras instituições. “Tal como alguns museus, devemos aproveitar este momento para alterar a estratégia do serviço educativo.” Raquel é também professora numa escola e isso não lhe permitiu obter o apoio de segurança social. “Serralves foi informada sobre o impacto que isto tinha e até agora propôs serviços pontuais a alguns colegas em condições também elas precárias.”
A ausência de resposta por parte da fundação fê-la sair esta segunda-feira à rua. “Há que perceber o nível a formação académica e experiência profissional desta equipa, que é muito significativo, por isso, é ainda mais grave e mais triste sermos tratados como substituíveis, invisíveis e dispensáveis.” Com a tristeza na voz, Raquel lamenta a situação, que apesar de não ser nova, ganhou outro peso em tempos de pandemia. “Fiz muitas escolhas, abri mão de muitas outras coisas e ao fim de 10 anos não vejo nenhum reconhecimento.”