Uma coisa é a política, outra coisa é a lei. E o Bloco de Esquerda não quer confundir as duas. “O BE está neste processo com seriedade, queremos alterar as regras de nomeação do governador do Banco de Portugal, e é isso que pretendemos fazer nos termos constitucionais. Mas não vamos, nem queremos, participar num processo apressado em nome de uma batalha política que tem de ser travada num terreno político — e não legislativo”. Foi assim que Mariana Mortágua expressou, esta segunda-feira em conferência de imprensa, a posição do Bloco de Esquerda sobre a eventual nomeação de Mário Centeno para o cargo de governador do Banco de Portugal (que fica vago no dia 7 de julho) e o projeto de lei do PAN, que aperta a malha às incompatibilidades e aumenta o poder da Assembleia da República nessa nomeação, que já foi aprovado na generalidade mas que ainda tem um longo caminho em sede de especialidade antes de chegar — se chegar — às mãos de Marcelo Rebelo de Sousa, para promulgar.
António Costa já tem o argumentário na ponta da língua: a lei que foi aprovada na semana passada no Parlamento (na generalidade) pretende apenas atingir Mário Centeno, ad hominem, e, de resto, Mário Centeno “não cometeu crime nenhum”. Mas não é esse o entender dos partidos que a viabilizaram. Aliás, Cecília Meireles, por exemplo, em declarações à Rádio Observador, disse inclusive que não percebe porque é que o anúncio da saída de Centeno das Finanças aconteceu precisamente no mesmo dia em que o Parlamento tinha agendado o debate sobre iniciativas legislativas relativas à forma como é feita a nomeação de cargos como os do governador do Banco de Portugal. “Se há coincidências, a coincidência é a saída de Mário Centeno ter sido anunciada nesse dia, porque o debate no Parlamento foi marcado muito antes de o ministro das Finanças sair”, argumentou, rejeitando qualquer “pessoalização” da lei uma vez que o CDS já defende “desde 2009” um modelo diferente de nomeação daquele cargo: deve ser o Presidente da República a nomear os presidentes dos reguladores, depois de um parecer da Assembleia da República e da proposta do Governo.
Na passada terça-feira foram debatidos no Parlamento projetos de lei apresentados por CDS-PP, PAN, Iniciativa Liberal e PEV, com o objetivo de alterar as regras de nomeação dos membros da direção do Banco de Portugal e também das entidades administrativas independentes, tendo sido aprovado o projeto do PAN e o do PEV, que fixam um período de “nojo” de cinco anos na nomeação do governador do Banco de Portugal para quem tenha desempenhado funções no Governo, na banca ou em consultoras que tenham trabalhado com aquele regulador.
O projeto de lei do PAN foi aprovado pelo PAN, PSD, CDS, Chega, BE, IL e Joacine Katar Moreira, tendo tido a abstenção do PCP e PEV. Ou seja, só o PS votou contra. Segundo a líder parlamentar do PAN, o que está em causa “não é pessoalizar” a lei, como acusa o primeiro-ministro. Em declarações à Rádio Observador, Inês Sousa Real defende que o objetivo é que “as nomeações sejam o mais isentas possíveis deste tipo de ingerência”. “E quem há bem pouco tempo estava a ditar as regras do jogo, a nomear o Conselho de Administração do BdP, não deve poder ir agora instalar-se naquela que é uma tutela que deve ser o mais equidistante possível”, disse. Além de que, se não houver qualquer período de nojo e se o Governo avançar com o nome de Centeno, será o ex-secretário de Estado de Centeno, que agora subiu a ministro, a nomear Centeno para o lugar — “depois de ter estado este tempo todo sob a alçada dele”.
Para o PSD, é “claro” neste momento que existe uma “maioria no Parlamento que se opõe a esta nomeação”, e isso devia ser suficiente para a nomeação não ocorrer — além da questão “jurídica” de não dever ser o ex-secretário de Estado (agora ministro) a indicar o seu antecessor para o lugar de governador. Mas, segundo afirmou o deputado Duarte Pacheco em declarações à Rádio Observador, o “arranjinho” já estava feito há muito, uma vez que era “ambição pessoal” de Centeno ir para aquele cargo, e essa ambição servia na perfeição a Costa que, segundo Duarte Pacheco, se rege por “uma lógica de governação de querer controlar tudo e todos, inclusive as entidades independentes”.
Este aparente consenso em torno da não nomeação de Centeno para o lugar que Carlos Costa se prepara para deixar, contudo, não se antevê duradouro em sede de especialidade.
BE não quer Centeno, mas não alinha em processo legislativo “apressado”
Além do PCP e do PEV que se abstiveram (não votaram a favor) do projeto de lei do PAN, também o Bloco de Esquerda veio hoje esclarecer a sua posição sobre a lei-travão. Apesar de o BE concordar que o governador deve ser nomeado por parecer da Assembleia da República, como pede o PAN, e concordar que deve haver regras mais claras para a AR ter uma palavra a dizer quanto à destituição do governador, como pede o PAN, bem como concordar que deve haver paridade na Administração e que as regras de incompatibilidade entre público e privado devem ser reforçadas, como pede o PAN, há uma coisa com a qual o Bloco não concorda que é o impedimento de que titulares de cargos públicos ocupem cargos de regulação (ou seja, para o BE, o ponto não está no período de nojo).
Assim sendo, não é por essa via que o BE vai dar a mão ao PAN (e à direita) para travar, pela via legal, a nomeação de Mário Centeno para o cargo de governador do banco central do país. Para o BE, o problema está nas incompatibilidades entre privado e público (quem passa da banca privada para o regulador) e não entre público e público. “Não existe um conflito de interesses aí, existe sim uma avaliação política que se faz através de um parecer vinculativo da AR”, disse Mariana Mortágua aos jornalistas.
Ou seja, é noutra frente que o BE vai batalhar: se António Costa faz gala de querer ouvir os partidos sobre a nomeação para este cargo, ao contrário do que fez, por exemplo, o seu antecessor, então não pode apenas ouvir os partidos e, se a maioria for contra, ignorar essa vontade. Para o BE, a vontade da maioria parlamentar deve prevalecer. Mas não é isso que diz atualmente a lei.
Se a atual lei não for alterada em tempo útil, o aval dos partidos não é necessário, já que o governador é nomeado por resolução do Conselho de Ministros, sob proposta do Ministro das Finanças e após audição por parte da comissão competente da Assembleia da República. Ainda assim, António Costa prometeu ouvir os partidos no final deste mês, sendo que o mandato de Carlos Costa termina a 7 de julho. É isto que o BE vai dizer a António Costa quando for chamado a São Bento — mas não servirá de muito se a lei não for alterada de forma a que o parecer da AR seja vinculativo. E pressa para alterar a lei, o BE não tem. “Este processo legislativo, para ser legal e constitucional, deve decorrer nos normais termos e prazos do Parlamento. Não será ele a determinar os termos da substituição do atual Governador do BdP. Não colaboraremos portanto para que seja empatado nem apressado por meras razões de circunstância política”, disse Mariana Mortágua.
Assim sendo, de pouco servirá ao BE dizer que não quer Centeno como governador pela forma como conduziu os processos de venda do Banif e Novo Banco enquanto ministro das Finanças. “Entendemos que Mário Centeno não reúne as condições políticas para ser nomeado Governador do Banco de Portugal e que o primeiro-ministro não deverá nomeá-lo se a sua proposta não obtiver apoio maioritário no Parlamento. Para o Bloco, esta deveria ser uma regra legal, tornando-se uma escolha imperativa neste contexto”, disse ainda a deputada bloquista. E esta vai ser a posição do BE até ao fim.
Um processo demorado. No limite, Marcelo poderia demorar 20 dias a promulgar lei
Mário Centeno saiu do Governo neste dia 15 de junho e o mandato do atual governador termina a 7 de julho. São 22 dias de diferença entre os dois cargos. A margem é curta, mas isto não quer dizer que Mário Centeno — se for o escolhido — tenha mesmo de assumir funções no dia 8 de julho. A verdade é que ainda é preciso o nomeado ser ouvido em sede parlamentar (ainda que sem caráter vinculativo) e isso pode atrasar tudo, uma vez que o Parlamento não tem uma grande margem para agendamentos agora que está no sprint final até às férias, e com um orçamento retificativo a ter de ser aprovado pelo meio. O Parlamento encerra trabalhos em julho e só retoma em setembro, pelo que Carlos Costa poderá ter de manter-se mais uns meses em funções e, nesse caso, Centeno teria umas férias entre um cargo e outro.
Quanto ao projeto de lei sobre o período de nojo, que vai decorrer de forma paralela, também precisa de tempo. Com o PS com ordens precisas para atrasar o processo (pode convocar audições em sede de especialidade), e com o BE a dizer que não vai apressar as coisas e que o debate deve ser sério, tudo indica que será difícil aprovar a alteração legislativa em tempo útil (pelo menos antes de 7 de julho). “A ideia de fazer um processo legislativo que não seja geral e abstrato é um risco”, defende o BE, que alerta para eventuais problemas inconstitucionais.
Mesmo que fosse aprovado em votação final global ainda nesta legislatura, o diploma ainda teria de seguir para Belém para promulgação e, nesse cenário, Marcelo tem 20 dias para tomar uma decisão sobre ele. Pode decidir num dia, como pode decidir em 20. Ou seja, no limite, pode decidir sobre as novas regras de nomeação do governador do Banco de Portugal já depois de Mário Centeno estar em funções.