O compositor e maestro italiano Ennio Morricone, autor de algumas das mais celebradas, premiadas e populares bandas sonoras da história do cinema — como claro exemplo, o tema principal de “Era Uma Vez na América“, de Sergio Leone — morreu na madrugada desta segunda-feira, aos 91 anos, numa clínica em Roma, depois de complicações devido a uma fratura no fémur causada por uma queda, esclareceram os jornais italianos como o La Repubblica.

O funeral será privado “em respeito pela humildade que sempre caracterizou a sua existência”, informou o advogado da família, acrescentando que o compositor “esteve totalmente lúcido e manteve uma grande dignidade até ao último momento”.

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O maestro “preservou até aos últimos momentos a completa lucidez e grande dignidade. Agradeceu à sua amada esposa Maria, que o acompanhou com dedicação em todos os momentos da sua vida pessoal e profissional e esteve perto dele até ao seu último suspiro. Agradeceu aos filhos e netos pelo amor e carinho que lhe deram. Dedicou uma lembrança emocionante ao seu público, de cujo apoio ele sempre extraiu a força da sua criatividade”, escreveu ainda o advogado.

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Ennio Morricone foi autor de mais de 500 músicas para cinema e 100 peças clássicas, entre as quais melodias como a que criou para o filme “O Bom, o Mau e o Vilão” (1966), também de Sergio Leone, protagonizado por Clint Eastwood. Até hoje, vendeu mais de 70 milhões de discos.

A sua estreia no cinema foi em 1961, com o filme “Il Federale”, de Luciano Salce, e, ao longo da sua vida, trabalhou em filmes dos mais variados géneros, como “Os Intocáveis”, “O Bom, o Mau e o Vilão”, “A Missão”, “Cinema Paraíso” ou “Aconteceu no Oeste”, e algumas das suas composições são até mais famosas do que os próprios filmes.

Foi com Sergio Leone, antigo colega de escola e realizador com quem manteve uma importante e frutuosa colaboração, que conquistou reconhecimento e construiu o título de compositor fundamental da história do cinema. A dupla estará para sempre associada ao género western spaghetti, não apenas pela música mas também pela sonoplastia que supervisionava. Todos os elementos juntos criaram um ambiente sonoro de rara sintonia com a imagem, tornando a ação e o cenário maiores, mais densos e mais próximos do espectador (com o privilégio de ter cenas mais longas e demoradas apenas para poder extender as usas composições durante mais tempo e à sua maneira). Uma abordagem que haveria de explorar durante uma extensa e gloriosamente criativa obra.

A “Trilogia dos Dólares”, como ficou conhecida — que inclui “Por um Punhado de Dólares” (1964), “Por Mais Alguns Dólares” (1965) e “O Bom, o Mau e o Vilão” (1966), todos protagonizados por Clint Eastwood — transformaram-se em clássicos absolutos e sucessos de bilheteira. O últimos dos três é o filme que revelou ao mundo “The Ecstasy of Gold”, uma das composições de maior sucesso de Morricone, adaptada e apropriada inúmeras vezes: provavelmente as mais conhecidas são da responsabilidade dos Ramones e dos Metallica, bandas que usavam (no caso dos segundos, ainda usam) o tema como fecho e abertura de concerto, respetivamente.

[“Ecstasy of Gold” em “O Bom, o Mau e o Vilão”:]

Trabalhou com diferentes realizadores, com os maiores da arte: Hitchcock, Nino Rota e Fellini, Bertolucci, Brian De Palma, Rolland Joffé ou Pasolini, Terrence Malick, Barry Levinson, Mike Nichols ou Quentin Tarantino. Foi, aliás, um filme deste último, “Oito Odiados”, que lhe deu a oportunidade de escrever a obra que lhe garantiria um Óscar da Academia, em 2016, para Melhor Banda Sonora Original, nove anos após ter recebido o Óscar Honorário das mãos de Clint Eastwood.

Outras distinções da galeria de prémios recebidos por Morricone inclui três Grammys, quatro Globos de Ouro, seis BAFTAS, 10 prémios David di Donatello, 11 Silver Ribbons, dois European Film Awards, um Leão de Ouro de carreira e um Polar Music Prize. Já este ano, o compositor foi distinguido com o Prémio Princesa das Astúrias das Artes, juntamente com o norte-americano John Williams, “por terem enriquecido centenas de filmes com o seu talento”, segundo o júri.

Compositores Ennio Morricone e John Williams recebem Prémio Princesa das Astúrias das Artes

Ennio Morricone tinha o hábito de compor na mesa em que habitualmente trabalhava e não ao piano. Sempre viveu e escreveu em Roma, cidade onde nasceu a 10 de novembro de 1928, um de cinco filhos de Mario Morricone e Libera Ridolfi (foi aliás o pai, trompetista, que primeiro o ensinou a ler música). Nunca aprendeu a falar inglês e durante anos evitou sair de Itália para dirigir orquestras ao vivo. Hollywood foi provavelmente o seu maior palco (à parte das produções italianas de Sergio Leone) mas só em 2007 é que Morricone se apresentou num palco americano. Foi-lhe mesmo oferecida uma casa no famoso bairro de Los Angeles, mas o compositor recusou, agradecendo.

Depois de várias décadas de criação, o “maestro”, que continuou a compor, decidiu retirar-se dos palcos, atuando pela última vez em Portugal em maio de 2019, num concerto integrado na digressão mundial de despedida.

Ennio Morricone fez-se jovem no último concerto em Portugal

O primeiro-ministro italiano reagiu à morte, utilizando a rede social Twitter para homenagear o compositor. “Iremos recordar sempre, com infinita gratidão, o génio artístico do Maestro #EnnioMorricone. Fez-nos sonhar, emocionar e refletir, escrevendo notas memoráveis que permanecerão indeléveis na história da música e do cinema”, escreveu Giuseppe Conte.

Em declarações à Rádio Observador, o maestro António Vitorino D’Almeida afirmou que morreu um dos maiores da música e do cinema. “Foi realmente muito importante e era muito difícil não reconhecer o estilo dele e a [sua] forma de fazer música”, disse.

“Ennio Morricone é um dos grandes expoentes da música de cinema”

Foi experimentalista (sobretudo nos anos 60) e grandioso, mais romântico e mais violento, fez referências ao que alguns compositores do século XVIII lhe deixaram como influência, mas foi um dos que mais escreveu a música que deu tempo e ritmo ao século XX. Fez mais do que música para cinema, mas foi como maestro do cinema, “o maestro”, que ficou conhecido, foi seguindo essa tarefa que compôs história.

Em 2016, no ano em que finalmente lhe foi atribuído o Óscar para Melhor Banda Sonora, Ennio Morricone disse em entrevista ao jornal britânico Guardian: “Ainda aqui estou e ainda atuo. Quando tinha 35 anos, disse à minha mulher Maria. ‘OK, quando tiver 40 paro de escrever música para cinema e passo a escrever música absoluta’. Mas ainda aqui estou a escrever música para cinema, portanto nunca sabemos quando vamos parar”.