No caminho de António Costa para o Conselho Europeu decisivo para o fundo de recuperação europeu multiplicaram-se encontros de preparação, uns mais previsíveis do que outros. A reunião desta terça-feira com o homólogo húngaro apareceu na agenda à última. Resultou numa declaração de conforto com a posição da Hungria na reunião de sexta-feira e sábado, mas que afinal parece que não será bem assim. Sentaram-se à mesa — sem surpresas — duas delegações com fortes currículos em assuntos europeus, mas com algumas curiosidades que se revelaram numa fotografia de família final.
Por exemplo? Na ponta esquerda aparece o conselheiro de Costa, Vítor Escária, que abandonou essas funções por causa das viagens da Galp mas que continua a exercê-las na mesma a partir de outro ponto. E na ponta direita está o português Mário David, pelo lado… húngaro.
São ambos figuras incontornáveis junto ao ouvido dos dois primeiros-ministros que debateram, em Budapeste, a União Europeia de perspetivas diferentes: a de Costa, de um socialista comprometido com os valores europeus mas empenhado num acordo rápido para que Portugal possa aceder ao fundo de recuperação europeu a tempo de evitar uma hecatombe económica; e a de Orbán, um nacionalista conservador de direita, eurocrítico, desafiador do norte e de todos os que o querem sancionar devido ao incumprimento de preceitos democráticos e que está sentado em cima de uma economia bem mais robusta — e por isso com menos urgência nesta negociação — do que a portuguesa.
Contamos aqui a história desta imagem, através de cada um dos presentes.
1. Vítor Escária, consultor do Governo, com vínculo à Agência para o Desenvolvimento e Coesão.
Foi assessor económico do primeiro-ministro António Costa no primeiro ano do Governo anterior e já tinha desempenhados as mesmas funções junto de outro primeiro-ministro socialista, José Sócrates. Deixou de estar oficialmente no gabinete de Costa na sequência do pedido de exoneração aceite pelo primeiro-ministro depois de ter ido a um jogo do Euro2016 com bilhetes oferecidos pela Galp. O antigo assessor não se manteve longe das funções de conselheiro de Costa por muito tempo, como noticiou o Observador em 2018.
Entretanto, foi acusado no caso dos bilhetes do Euro2016 por recebimento indevido de vantagem. Sendo um profundo conhecedor do dossier dos fundos comunitários, o seu input não foi prescindido pelo primeiro-ministro, que continua a ouvi-lo nesta matéria incluindo-o na delegação portuguesa que o seguiu à Hungria. Escária coordena atualmente uma equipa do Instituto Superior de Economia e Gestão (onde é professor auxiliar) que está a prestar assessoria ao Governo, através de um contrato celebrado com a Agência de Desenvolvimento e Coesão, no processo de negociação do Quadro Financeiro Plurianual da União Europeia.
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2. Patrícia Cadeiras, conselheira do primeiro-ministro António Costa para os Assuntos Europeus
Nos últimos anos de governos socialistas andou entre os gabinetes do primeiro-ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros. Neste momento presta funções de assessoria no gabinete de António Costa, onde está desde o Governo passado. Antes disso tinha passado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros — pela direção geral de política externa, entre agosto e novembro de 2015. No tempo de Sócrates, no Governo que tomou posse em 2005, Patrícia Cadeiras, 43 anos, já tinha sido adjunta diplomática do primeiro-ministro. É atualmente conselheira de Costa na área dos Assuntos Europeus.
3. Ana Paula Zacarias, secretária de Estado dos Assuntos Europeus
Sucedeu a Margarida Marques, atualmente eurodeputada, no cargo de secretária de Estado dos Assuntos Europeus. É diplomata desde 1983 e chegou a ser vice-presidente do Instituto Camões. Veio da Colômbia, onde era representante diplomática da União Europeia, para as Necessidades, em Lisboa, para assumir o cargo em 2017, com o Brexit a fervilhar e um dossier de problemas para resolver com os portugueses a viver no Reino Unido depois da desvinculação britânica.
Esteve em Belém, na equipa do Presidente da República Mário Soares, como consultora para as Relações Internacionais, no final da década de 80. Na carreira diplomática passou por vários países, como os EUA, França, Estónia (onde foi a primeira embaixadora residente de Portugal, em 2005) e Bélgica. Representou a União Europeia no Brasil, Colômbia e Equador. Formou-se em Antropologia Cultural, na Universidade Nova de Lisboa, em 1983, só depois disso é que se candidatou à carreira diplomática, onde o seu primeiro cargo foi como adida de embaixada no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa. Em 2017 passou a responsável pelos Assuntos Europeus e é incontornável nestas viagens que têm Bruxelas na agenda, representando mesmo Portugal nas reuniões preparatórias dos Conselhos Europeus.
4. Jorge Roza de Oliveira, embaixador de Portugal na Hungria
Nos últimos dez anos foi embaixador de Portugal na Índia e mais tarde passou a representar o país na Hungria. É um diplomata experiente, que já exerceu o cargo de assessor diplomático num gabinete de primeiro-ministro, o de José Sócrates. O seu nome apareceu em 2010 nos documentos divulgados pela organização WikiLeaks, numa troca de mensagens, em 2007, nos tempos do gabinete, com o então embaixador dos EUA em Lisboa, Alfred Hoffman.
A conversa teria sido sobre a passagem de voos da CIA, com prisioneiros de Guantánamo, pelo espaço aéreo nacional. Negou tudo, menos (pelo menos não totalmente) a parte em que, nessa conversa, se referia a Ana Gomes, então eurodeputada socialista que deu origem ao inquérito do Ministério Público a estes voos ilegais, como “uma senhora muito excitada que é pior que um rottweiler solto”. “Posso ter dito antes que a diferença entre um rottweiler e a eurodeputada Ana Gomes é que o rottweiler ladra”, detalhou entretanto.
5. António Costa, primeiro-ministro de Portugal
Passou pela Hungria, no périplo para preparar o Conselho Europeu, já no roteiro dos difíceis. Primeiro, o representante dos frugais do norte, o liberal holandês Mark Rutte, e depois o representante de parte importante do leste, o nacionalista húngaro Viktor Orbán. De um lado as condições a la troika, que Costa recusa, do outro a rejeição de condições relativas a valores democráticos. Mas em Budapeste, a ideia do primeiro-ministro português foi mesmo tomar o pulso ao grupo de Visegrado, composto por Hungria, Polónia, Eslováquia e República Checa, ao comando dos quais não existe um único socialista. E tentar serenar ânimos de Orbán que ameaça travar um acordo se o Conselho mantiver na proposta em análise a condição do Estado de Direito no acesso aos fundos europeus — o que permitiria aos frugais não terem de dar a cara pelo fracasso das negociações.
Saiu tremido na fotografia, até no contexto internacional, ao defender que a questão dos valores não estivesse na mesa dos fundos, mas sim noutro processo à parte. Não misturar dinheiro com valores e princípios, disse, com esta argumentação a ser interpretada como uma cedência a Orbán em nome de um acordo rápido. Tentou esclarecer as suas intenções por várias vias, acabando com o país a assumir afinal, na reunião preparatória do Conselho, que aceita essa condição. Mas em solo húngaro, depois da reunião com o homólogo húngaro, manteve-se nessa separação de águas que agradou ao interlocutor daquele dia.
6. Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria
Foi uma figura carismática e enaltecida pela direita europeia no pós-queda do muro de Berlim, pelo combate que travou contra o comunismo. Trinta anos depois, mantém o carisma, mas nem toda a direita europeia olha para Orbán embevecida — aliás, há mesmo quem dentro da sua família política europeia, a do PPE, nem queira sequer olhar.
Foi, no entanto, na altura em que a direita o admirava sem condições que fundou o Fidesz, que foi inicialmente um partido liberal, mas os maus resultados eleitorais no final da década de 90 fizeram com que se reposicionasse mais à direita, tornando-se num partido conservador e nacionalista, que voltou ao poder em 2010. Tem endurecido uma linha autoritária onde se enquadram decisões que vão contra a liberdade de expressão, a livre circulação de capitais, o direito à educação, a independência judicial (como a reforma antecipada de vários juízes e procuradores, pela redução obrigatória da idade de reforma), ou os direitos dos refugiados e imigrantes. Traçou no país uma nova Constituição e uma nova lei eleitoral, que a oposição se queixa de ter diminuído os seus poderes. Decisões que chocaram alguns líderes europeus, até na sua família política, o PPE. O próprio Rui Rio já admitiu que “faz sentido que esteja em cima da mesa” a suspensão do Fidesz.
A economia húngara tem crescido nos últimos anos, com a OCDE a justificar esse salto com o forte aumento das exportações e da procura interna. Em 2018, a Hungria foi o país que mais cresceu na União Europeia: 4,9%. É incontornável na mesa de negociações, ainda que tenha estado muitas vezes na linha de eventuais sanções comunitárias pela sua ação política (o procedimento por colocar em risco valores europeus ainda está em aberto). Orbán tem contestado as críticas e com Costa, nesta reunião, foi veemente no ataque a que o cumprimento do Estado de Direito seja uma condição para que os Estados membros acedam a fundos europeus. Desafiou-o até, segundo apurou o Observador, a levar a votação durante a Presidência portuguesa do Conselho (o próximo ano) o procedimento contra a Hungria parado desde 2018.
7. Levente Magyar, ministro do Comércio Externo e dos Negócios Estrangeiros da Hungria
Foi conselheiro no grupo parlamentar do Fidesz nos primeiros anos depois de se ter especializado em relações internacionais. Mais tarde, em 2010, integrou o Ministério da Economia, como secretário de Estado para as Relações Exteriores. Dali seguiu para mais perto do primeiro-ministro, tornando-se seu conselheiro nestas matérias em 2012, desempenhando as funções de subsecretário de Estado para os Negócios Estrangeiros e para a Diplomacia Económica. Em outubro de 2014, passou a ministro que acumula as duas áreas de governação.
8. Miklós Halmai, embaixador da Hungria em Portugal
Assumiu o cargo de representante da Hungria em Portugal recentemente, no final de 2019. Em setembro, mal chegou a Lisboa, uma das primeiras iniciativas que teve foi reunir-se com operadores turísticos nacionais. Veio com o objetivo de firmar a Hungria como um destino de turismo de lazer para os portugueses.
9. Peter Gottfried, assessor do primeiro-ministro húngaro para os Assuntos Europeus
Desde 1990 que Gootfried tem trabalhado com os governos húngaros, sempre com a pasta europeia, tendo naturalmente acompanhado de perto, como responsável, todo o processo de adesão do país à União, em janeiro de 2004. Nessa altura foi, aliás, secretário de Estado para a Integração na União Europeia. É uma figura que Orbán ouve sempre que em cima da mesa estão Assuntos Europeus.
10. Mário David, assessor principal do primeiro-ministro húngaro
Conheceu Viktor Orbán na década de 80, logo após a queda do muro de Berlim, quando o Fidesz e o PSD ainda pertenciam à família política dos liberais. Depois foi a Budapeste convencê-lo a passar, tal como tinham feito os social-democratas (em 1996), para o lado do PPE. Têm uma relação tão estreita que o antigo eurodeputado do PSD e secretário de Estado dos Assuntos Europeus (em 2004, no curto Governo de Santana Lopes) desempenha funções de conselheiro principal no gabinete de Orbán. Vai com frequência a Budapeste.
Não foi a primeira vez que apareceu do lado oposto a Portugal numa mesa negocial. Aconteceu o mesmo em 2016, quando foi tido como uma das figuras principais na preparação da candidatura da búlgara Kristalina Georgieva a secretária-geral da ONU, contra o português António Guterres. Na altura deu polémica, sobretudo entre socialistas portugueses. Mário David respondeu: “Não recebo lições de patriotismo de ninguém”.
É especialista em assuntos do Leste europeu, tendo sido conselheiro no processo de alargamento da União Europeia aos países da antiga União Soviética, chamado por Durão Barroso de que, em 2004, foi também peça chave na candidatura à presidência da Comissão Europeia.