A atribuição dos fundos europeus deve ou não depender do cumprimento pelos Estados membros dos valores da dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de Direito e direitos humanos que estão no Tratado da União? Na terça-feira, na Hungria, depois de ter estado reunido com o homólogo nacionalista Viktor Orbán, António Costa disse que os dois temas não devem misturar-se e que os valores europeus eram para ser debatidos noutro fórum, que não a mesa orçamental da UE, ou seja, neste Conselho Europeu. Mas nesta quarta-feira, na reunião de responsáveis pelos Assuntos Europeus de cada um dos 27, Portugal defendeu que a atribuição de fundos esteja condicionada ao cumprimento dos valores consagrados no Tratado.

A secretária de Estados dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, fez uma “intervenção” na reunião que preparou o Conselho Europeu (o Conselho de Assuntos Gerais) de sexta-feira e sábado onde “reiterou que para Portugal o Estado de Direito é um tema central do projeto europeu e reiterou também a concordância genérica de Portugal com a negotiating box apresentada pelo Presidente do Conselho Europeu“, confirmou o Ministério dos Negócios Estrangeiros ao Observador quando confrontado com a informação de um posicionamento favorável de Portugal à questão específica que incomoda a Hungria.

Nesta grelha de negociação (a tal negotiating box) a que Ana Paula Zacarias deu “concordância genérica” em nome de Portugal e que vai a debate no Conselho Europeu, consta (ainda que seja já uma revisão da proposta inicial da Comissão) a mesma condição para a distribuição dos fundos europeus: a avaliação do rule of law, ou seja, da defesa do Estado de Direito pelos Estados-membros que acedam aos fundos. Em 2018, o Parlamento Europeu já tinha considerado que países como a Hungria e Polónia estariam a violar esses mesmos valores, mas falta ainda a decisão final do Conselho sobre o assunto (ver mais abaixo).

Costa visita Orbán e defende que Estado de Direito não deve ser critério para fundos europeus

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Ora, na terça-feira, depois da reunião com o primeiro-ministro húngaro, na preparação do Conselho, António Costa referiu-se, numa entrevista à RTP, ao “problema particular da Hungria” no debate que vai ter lugar. “Tem a ver com a questão do Estado de Direito e a relevância que deve ter nas condicionalidades”, disse, para aceder aos fundos europeus que vão ser negociados nessa reunião (o quadro financeiro plurianual e o fundo de recuperação pós-Covid). Posição do primeiro-ministro português sobre este assunto, à saída da reunião com o homólogo Viktor Orbán? “Estas são questões — de liberdade e democracia e Estado de Direito — centrais, que devem ser resolvidas nos termos próprios do Tratado, com base no artigo sétimo. Não se trata de discutir simultaneamente valores e dinheiro, porque os valores não se compram“.

“Se há um problema de valores, deve ser tratado como está previsto no artigo sétimo, como uma condicionante à participação na própria União. Outro tema é a discussão relativamente a este programa de recuperação financeira, onde o que importa assegurar é o adequado controlo do uso dos fundos europeus, o que é razoável e todos aceitamos. E creio que a Hungria também aceita”. A citação do primeiro-ministro é longa, é tudo o que disse sobre o assunto naquela entrevista, sem cortes. E correu mundo, com a imprensa internacional a dar conta de uma cedência do primeiro-ministro português à Hungria, em nome de um acordo financeiro, uma vez que Orbán já fez saber que não aprovará a proposta do Conselho Europeu se lá constar esta condição — e a unanimidade é exigida para a aprovação do envelope financeiro de 750 mil milhões de euros. Perante a proposta revista que está agora em cima da mesa, o Governo húngaro reconheceu que a condição foi atenuada, mas não considera isso suficiente para mudar de posição, já que se mantém como condição na mesma.

O que o primeiro-ministro português disse foi que, quando se discutem valores como o Estado de Direito, isso tem de acontecer no quadro do artigo sétimo do Tratado da União. E não quando se debatem fundos comunitários. Tendo em conta que o primeiro-ministro fez declarações públicas no sentido contrário à posição defendida pela secretária de Estado, qual será afinal a posição de Portugal no Conselho Europeu? “O pressuposto da pergunta é falso. A posição de Portugal no Conselho Europeu é apresentada pelo primeiro-ministro, que é quem é membro do Conselho Europeu”, respondeu o MNE à pergunta do Observador.

O entendimento do Governo é que neste Conselho o que irá a votação será a proposta global sobre fundos comunitários e de recuperação e não uma avaliação do cumprimento de valores. Isso terá de ser debatido noutro fórum, havendo um procedimento concreto para isso. Isto, ainda que a condição do Estado de Direito conste da proposta que está em discussão e que Portugal já tenha dado acordo a que permaneça lá.

Críticas também por cá e esclarecimentos em todos os formatos

Entretanto, em Portugal, a direita aproveitou a deixa do primeiro-ministro — ainda que timidamente, já que foram poucos a surgir — para vir dizer que para Costa “tudo se negoceia”, como escreveu no Twitter o ex-ministro do PSD Miguel Poiares Maduro. Uma crítica partilhada também pelo eurodeputado Paulo Rangel, ainda antes da reunião e depois dela. “Onde estão os anti-Fidesz portugueses? Não seria altura de fazer do rule of law um critério de repartição dos fundos?”, questionou o social-democrata.

À esquerda, foi o ex-eurodeputado Rui Tavares, do Livre, que escreveu sobre o assunto no Público, defendendo que “quem acha que pode concentrar no dinheiro e esquecer os valores faz um ‘discurso repugnante no quadro de uma União'” — aproveitando uma expressão antiga de Costa sobre o ministro das Finanças holandês.

As críticas fizeram o primeiro-ministro vir esclarecer a sua posição (em português e em inglês) através da sua conta oficial de Twitter, queixando-se de um título da Agência Lusa que “pode ser equívoco ou gerar interpretações erradas” e sublinhou que defende “que quem não partilha os valores da UE deve sair ou ver o seu direito de voto suspenso e não poder comprar com cortes orçamentais a violação desses valores”.

Não ficou por aqui e durante a tarde, também no Público, respondeu a Rui Tavares, dando sinal claro do desconforto com a interpretação generalizada das suas palavras, quando separou as águas e disse que valores fundamentais se discutem no âmbito do artigo sétimo e não quando se discute dinheiro. Voltou a isto mesmo, argumentando que a sua posição “é simples”: “O procedimento para tratar de violações ao Estado de Direito, às Liberdades, à Democracia é o previsto no art.º 7.º. Não é a discussão do Quadro Financeiro Plurianual ou do Plano de Recuperação”.

Escreveu mais. Que “discutir valores contra dinheiro não é defender os valores, é monetizá-los, reduzi-los a mero meio de troca”. E ainda que “esta é uma questão de princípio e não uma posição negocial à mesa do Orçamento”. E também que “querer transferir do quadro do art.º 7.º para o debate orçamental a avaliação do rule of law como condicionalidade do acesso aos fundos só tem um efeito prático: transferir para o grupo de Visegrado [Polónia, República Checa, Hungria e Eslováquia] o ónus de bloquear a criação do Fundo de Recuperação e Resiliência, aliviando as boas consciências frugais [Holanda, Dinamarca, Suécia e Áustria]”.

Uma posição que não fazia antecipar a aceitação desta condição nesse debate, mas acabou por ser mesmo essa a posição portuguesa na reunião preparatória do Conselho: a secretária de Estado mostrou-se favorável à existência dessa condição, apurou o Observador durante a tarde desta terça-feira, confirmando a informação ao final do dia. O Ministério dos Negócios Estrangeiros confirmou a posição, mas rejeita que exista uma contradição com o que diz o primeiro-ministro.

António Costa responde a críticas após visita a Orbán. “Discutir valores contra dinheiro não é defender os valores, é monetizá-los”

Processo contra a Hungria parado e Orbán pressiona Presidência portuguesa

Há um processo que decorre contra a Hungria desde setembro de 2018, acusando o seu Governo de corrupção. oligarquia, substituição de juízes independentes por magistrados “ligados ao regime”, controlo dos meios de comunicação social, atentar contra os direitos das mulheres, dos imigrantes, dos refugiados, de atacar a liberdade de culto religioso, proibir organizações não governamentais. E isto ainda antes de Viktor Orbán ter conseguido a 30 de março, por aprovação do Parlamento dominado pelo seu partido, aumentar os seus poderes no estado de emergência, uma posição que exasperou os eurodeputados que aguardam uma conclusão para o que iniciaram em 2018.

O procedimento foi, nessa altura, aprovado no âmbito do famoso (de tão citado por Costa) artigo 7º do Tratado da União, que define os termos em que um Estado membro pode ser sancionado por violar os princípios europeus da dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e da defesa dos direitos humanos. É preciso o entendimento de um terço dos Estados membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia para “verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores” da União por parte de um Estado.

Mas é preciso unanimidade do Conselho para “verificar a existência de uma violação grave e persistente, por parte de um Estado Membro” desses mesmos valores referidos. Em caso de violação, basta uma maioria qualificada do órgão onde se reúnem os líderes dos Estados membros da União para “decidir suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação dos Tratados ao Estado membro em causa, incluindo o direito de voto do representante do Governo desse Estado membro no Conselho”.

A Comissão Europeia ativou este procedimento contra a Hungria e também a Polónia, mas desde então nada aconteceu. É preciso que o Conselho Europeu agende a discussão do assunto, mas ninguém ainda tomou essa iniciativa. A necessidade de uma posição unânime e a existência de dois países na linha de sanções ameaça a intenção do Parlamento Europeu. A Hungria não votará no seu processo, mas no da Polónia sim, pelo que basta chumbá-lo para receber na mesma moeda quando for a Polónia a votar o seu processo. Os dois países salvavam-se mutuamente.

Orbán quer que essa votação avance, convicto de que não passará e que, assim, se livra desta sombra e motivo de ataque frequente dos seus opositores. O Observador sabe que até fez pressão junto de António Costa para que ela possa ser resolvida na Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, que começa em janeiro de 2021. Isto se a Alemanha não abordar o assunto até lá. Na reunião que manteve com o primeiro-ministro português, Orbán foi veemente no ataque a quem defende que se utilize a questão do Estado de Direito para condicionar o acesso a fundos. E de Costa recebeu a resposta que o primeiro-ministro deu em público: uma coisa é negociar dinheiro, outra é aferir o cumprimento de valores base. O húngaro registou com agrado a posição do português.

E, nessa mesma terça-feira em que se encontrou com Costa, viu o Parlamento húngaro, onde o seu partido Fidesz é maioritário, aprovar uma resolução que o impede de aprovar uma proposta no Conselho Europeu que inclua (como inclui a atual) como condição a avaliação do Estado de Direito nos Estados membros para poder receber financiamento comunitário. Ou seja, esta sexta-feira segue para Bruxelas reforçado por uma posição do Parlamento do seu país para a cimeira onde os líderes querem tentar fechar um acordo sobre o Fundo de Recuperação europeu e o orçamento plurianual da União para o período 2021-2027.