A fotografia falava por si. A partir dos Açores, Carlos César aproveitava um domingo insuspeito de agosto (dia 16) para ir à sua conta pessoal do Facebook e, com um clique, avivar a memória dos protagonistas políticos da ala esquerda: cada um, de Jerónimo de Sousa a Catarina Martins, passando por Heloísa Apolónia e culminando em António Costa, de caneta em riste a assinar aquilo que, em 2015, daria vida à primeira, e até ver última, edição da geringonça. A fotografia é repartida — na verdade, não é mais do que uma colagem de várias fotografias numa só –, já que, na altura, a delicadeza do assunto levou a que os parceiros inéditos do PS não quisessem ser vistos a posar numa mesma fotografia, que seria, como a montagem foi, eternizada.
No texto que acompanhava a imagem, o presidente do PS fazia eco do que António Costa já tinha dito em pleno Parlamento no último debate do Estado da Nação e pedia um novo acordo escrito com os parceiros da esquerda. Mas carregava nas tintas. Se Costa tinha dito desafiado o PCP, o BE e os Verdes a alinharem num “roteiro de ação para o médio e longo prazo” no “horizonte da legislatura”, César pressionava agora para que se assinasse um “enunciado programático” e que se fizesse isso “de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”.
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A publicação até pode ter sido escrita na tranquilidade de uma mesa de café na ilha Graciosa, como veio a revelar esta terça-feira o ex-líder parlamentar socialista, mas soou a ultimato. Pelo menos, o Bloco de Esquerda não gostou e Francisco Louçã apressou-se a reagir. A verdade é que, nem a propósito, César tinha poupado (ou ignorado) o Bloco de Esquerda nas considerações de domingo, ao dizer que foi a “recusa do PCP” em assinar um acordo para a legislatura que impediu a reedição da geringonça. Para trás ficava outra versão da história — a de que o BE tinha apresentado condições duras ao PS, de mexer nas leis laborais dos tempos da troika, e que, por isso, não tinha sido possível chegar a um acordo. A versão de César é, pelo contrário, de que foi a recusa desde logo do PCP que “prejudicou a coerência e a utilidade de um acordo com o BE”.
A pandemia, segundo o socialista, obriga os dirigentes políticos a novas responsabilidades e a estabilidade política deve estar à cabeça. Daí que, num calmo domingo de verão, a partir da ilha Graciosa, nos Açores, César tenha ultimado: “É tempo de dizer ao BE, PCP e PEV, ou mesmo ao PAN, se são ou não capazes de reunir esses consensos num enunciado programático com o PS, suficiente mas claro, para a Legislatura…ou se preferem assobiar para o ar à espera dos percalços”.
Carlos César desafia BE, PCP, PEV e PAN a reunir consensos com o PS
A maior ou menor graciosidade das palavras de Carlos César não caiu bem no seio do Bloco de Esquerda. José Manuel Pureza acusou o toque, também no Facebook, e inverteu o ónus da “intimação”: “Quem agora intima a esquerda a fazer consensos com o PS ‘de uma vez por todas e sem demoras’ é quem teima em manter tudo como está nas PPP na saúde, nos direitos dos trabalhadores ou na complacência para com os desmandos do Novo Banco. Mudar isto e muito mais é fundamental. De uma vez por todas e sem demoras”, escreveu. Mas coube a Francisco Louçã fazer a defesa da honra e o contra-ataque, num artigo publicado no Expresso e intitulado “A pressa Facebookiana é má conselheira”, onde o ex-líder bloquista diz que o presidente do PS naquele post no Facebook não faz mais do que chantagem em véspera de arrancarem as negociações à esquerda para o Orçamento do Estado 2021.
https://www.facebook.com/carlosvcesar/posts/2135384486606526
“A meio de agosto e antes de começarem as negociações detalhadas sobre os temas do Orçamento, este ‘de uma vez por todas e sem mais demoras’ soa ao que é. O problema é que para fazer chantagem se exige algum saber e basto sentido de oportunidade. Ambos escasseiam neste ‘de uma vez por todas'”, afirma Francisco Louçã no artigo de opinião, onde procura repor a verdade da história da não-reedição da geringonça e onde termina a pedir mais ação e menos proclamação, agora que estão prestes a voltar a sentar-se à mesma mesa.
Para Louçã, “o problema é que o governo ainda não fez as suas escolhas para apresentar as suas propostas orçamentais; que o plano Costa e Silva ainda não foi concretizado em projetos de médio e longo prazo; e que as discussões detalhadas entre o governo e os partidos de esquerda ainda não avançaram, estando agendadas para as próximas semanas”. Segundo apurou o Observador, o retomar das negociações está neste momento em “stand by“, com os bloquistas a aguardarem novas datas da parte do Governo para se sentarem à mesa. Ou seja, a bola está do lado do Governo. Explicando que as negociações não se podem “concluir” antes sequer de “começarem”, Louçã remata dizendo que a “intimação facebookiana de César só tem uma leitura e não lhe é lisonjeira”. “Era preferível mais prudência e menos calculismo. Sair da gritaria no Facebook e sentar-se em reuniões de trabalho. Evitar truques de retórica e estudar propostas”, diz ainda.
Carlos César, contudo, não se ficou. À “gritaria” e “pressa facebookiana” respondeu com a “calma graciosense” e aos que se “acham acima de tudo e todos” respondeu com “humildade” e “cordialidade”. “Pressa facebookiana? E que tal uma calma graciosense? Devolve humildade, ou pelo menos devia ajudar à cordialidade mesmo dos que se acham acima de todos e de tudo. É bom estar aqui, nesta ilha. E acrescento: olhamos, desta quietude, a Política e o País de outra forma”, escreveu no Facebook.