Longe vai o tempo em que um estojo com 12 canetas de feltro Molin equivalia a um kit de iniciação à pintura amadora. Com o aperfeiçoar da técnica, crescia também a ambição. Era tudo uma questão de papel, porque no que dependesse das cores da marca portuguesa, nunca a criatividade conheceria limites.

Daí em diante, a evolução era feita com sucessivos ritos de passagem. O primeiro conjunto de 22 cores, as 25 e as 50 – degraus lógicos numa época em que, de norte a sul, os miúdos passavam horas esquecidas a colorir. No chão ou em cima da mesa, nenhuma outra caneta era como aquelas. Na parede? Muito provavelmente, embora a tinta lavável seja uma invenção do início dos anos 90.

E havia mais: os instrumentos de medição, os lápis e esferográficas. A fábrica de Vila Nova de Gaia chegou mesmo a produzir estiradores. A empresa fechou portas em 2001, deixando um vazio nas prateleiras de supermercados e papelarias, mas também nos estojos, mochilas e secretárias lá de casa. A nostalgia falou mais alto e fez com que um empresário concorrente quisesse reanimar a velha marca. Victor Pais tem estado a preparar o regresso da Molin e os primeiros artigos – réguas, esquadros e transferidores – devem voltar às lojas ainda este ano.

Da madeira ao acrílico: 53 anos de marca

Para contar a história da Molin é preciso recuar mais de 70 anos, quando o período do pós-guerra estava a ser especialmente generoso para Portugal e a corrida ao volfrâmio e os efeitos positivos na economia fomentavam a indústria e a produção nacional. Em 1948, nasciam Marcelo Rebelo de Sousa, o Estado de Israel e uma fábrica na rua General Torres, em Vila Nova de Gaia. Escrever, medir, guardar e trabalhar eram as necessidades do cidadão comum que a nova marca se propunha a satisfazer, sob a orientação de Mário Lino, o ilustre fundador.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Alguns dos antigos objetos da marca.

Muito antes das famosas canetas de feltro e do plástico dito inquebrável, eram os pequenos utensílios em madeira as estrelas da linha de produção. Hoje, réguas, esquadros, compassos, réguas T e transferidores fazem as delícias de colecionadores e saudosistas. Numa outra escala, os famosos estiradores, também eles inicialmente fabricados na mesma matéria-prima natural, populam plataformas como o OLX. Do aluno da primeira classe ao estudante de geometria descritiva, do professor ao engenheiro civil, a Molin tornou-se um selo transversal a todas as idades e profissões. Em 1965, a já famosa fábrica deixou o centro de Vila Nova de Gaia e instalou-se em Canelas, uma freguesia do concelho. Uma relocalização cheia de boas intenções, afinal a empresa estava a crescer (em procura, logo, em volume de produção) e a ceder ao advento tecnológico. Na nova casa, abriram-se as portas à produção automatizada e a maquinaria de grandes dimensões. A modernidade acabaria por deixar a madeira de lado e por fazer a marca abraçar um novo material – um plástico injetável em moldes, cujo resultado final era resistente e flexível.

A matéria das novas réguas e esquadros até podia ser vista como menos nobre, mas a Molin não descurou os cuidados a ter com os seus artigos. As embalagens chegaram a incluir conselhos de limpeza, escritos em português, espanhol e inglês: “Para limpar, utilize um pano molhado em água com um pouco de detergente. Nunca use álcool, diluente celuloso ou produtos similares.”

O negócio ia de vento em popa. Além de produzir, a empresa chegou a importar artigos da Alemanha para comercializá-los em solo português. Sempre a explorar novos métodos e tecnologias de fabrico, chegou aos anos 80 no auge da sua vitalidade – foi nessa década que as famosas canetas de feltro chegaram ao número recorde de cores: 100. Um espírito inovador que contagiou a década seguinte, altura em que, a par da tinta lavável, são introduzidas as primeiras embalagens reutilizáveis e as tampas ventiladas, para aumentar a segurança de canetas e marcadores.

O mercado português não era o único destino destes produtos. A marca chegou a exportar para vários países europeus e ainda para os Estados Unidos, Canadá e América do Sul, a instalar sucursais noutros continentes e a ter uma fábrica e um armazém na África do Sul. Acredita-se que os avultados investimentos em mercados internacionais possam ter contribuído para a falência da Molin, a 11 de julho de 2001. A verdade é que a marca não sobreviveu ao século XXI. Na altura em que fechou portas, empregava 165 pessoas e, a partir daí, foi só fazer contas, nessa altura, já em euros – uma faturação anual superior a 8,5 milhões, dez milhões em dívidas e mais de um milhão em indemnizações para pagar aos trabalhadores. Estas só viriam a ser saldadas 11 anos depois.

Patente vai, patente vem. Molin volta às prateleiras

Com a falência, marca e equipamento foram vendidos em lotes. Estávamos em 2006 e nenhuma das tentativas para salvar a Molin – Materiais de Desenho de Mário Lino SA (o nome oficial da empresa) tinham surtido efeito, nomeadamente as injeções de capital por parte de eventuais investidores romenos, angolanos, espanhóis, líbios, brasileiros e sul-africanos. Nunca a Molin, um dos dez maiores fabricantes do mundo neste setor, tinha sido tão cobiçada, embora nenhum dos negócios tenha chegado a concretizar-se.

Ilustração de Marta Teives feita com canetas de feltro.

A solução foi avançar para leilão, onde todo o património da empresa foi apresentado com um valor mínimo de quatro milhões e 50 mil euros, incluindo imóveis, mobiliário, moldes, matrizes e patentes. O processo arrastou-se durante anos. Atento, Victor Pais, proprietário da concorrente Maber, acabou por comprar máquinas e moldes, inicialmente com o objetivo de reforçar a capacidade produtiva da própria fábrica. No final, sem ambições financeiras e movido apenas pelo gosto de reerguer um nome quase extinto, ficou com os meios necessários para voltar a produzir os artigos da histórica marca portuguesa.

Paralelamente, desde 2006, a Iberopartners – empresa detida por Jorge Armindo, ele próprio antigo administrador da Molin – permanecia como proprietária do registo da marca. De um lado, o património industrial. Do outro, uma marca reconhecida por todo o país. Com estas duas partes da Molin em diferentes mãos, restou aos dois empresários portugueses chegarem a um entendimento. Em julho de 2017, Victor Pais chegou mesmo a ir ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial para pedir a caducidade do registo da marca, recurso legal sempre que uma marca não seja objeto de uso sério durante cinco anos consecutivos. Foi quando esbarrou no nome de Jorge Armindo. “Chegámos a ter reuniões e ele propôs-me uma sociedade. Eu disse que não. Passaram dois anos. Em outubro do ano passado, voltou a propor-me um negócio. Em novembro, comprei-lhe a marca”, explica o novo proprietário.

Victor Pais nunca esteve tão próximo de fazer regressar os artigos da Molin às prateleiras de papelarias e supermercados. À procura de um espaço para pôr a maquinaria a funcionar, incluindo máquinas específicas para trabalhar com os moldes criados pela marca e outras para fabricar os bicos das esferográficas, o empresário quer começar pelas réguas, esquadros e transferidores, os primeiros produtos a chegar ao mercado. Do outro lado do Atlântico, também continua a existir Molin. A marca começou a ser comercializada no Brasil em 1995 e autonomizou-se após a falência. O logótipo mantém sérias semelhanças com o original, o catálogo soma centenas de referências.

Em Portugal, o desenlace está longe do fim, já que o imbróglio ganhou, entretanto, uma proporção ibérica. Em Espanha, a catalã Estilográfica SA produz atualmente dezenas de artigos escolares, e não só. A empresa não se limita a usar o nome Molin, como exibe, desde o início dos anos 2000, os direitos do logótipo original – o “o” inclinado, o “L” maiúsculo e o “i” sem pinta. Artigos que se encontram à venda também em Portugal, impedindo Victor Pais de comercializar os novos produtos com a genuína imagem gráfica ou no mercado europeu. Essa será a próxima batalha do empresário, que pretende avançar judicialmente ainda este ano, de forma a devolver à renascida Molin o que é seu por direito: o grafismo original.

Artigo publicado originalmente na revista Observador Lifestyle nº 7 (março de 2020).