Marcelo pisca o olho à esquerda ao admitir votar em Marisa se não fosse candidato (“depende”), e Marisa hesita antes de dizer que não votaria em Marcelo em circunstância alguma. Aliás, até consegue antever um cenário (“mas que não se vai colocar”) em que se via a votar no atual Presidente: o cenário em que Marcelo defrontaria André Ventura. Um debate morno, onde Marcelo procurou valer-se da sua experiência e colar a adversária às políticas e decisões do Bloco de Esquerda e onde Marisa procurou colar Marcelo à direita e às falhas na saúde, que acabou com a challenger a reconhecer a vitória inevitável de Marcelo: “Muito provavelmente, o próximo Presidente está sentado à minha frente”.
Numa imagem, o frente a frente desta noite que inaugurou a maratona de debates presidenciais, foi um cordial chá das cinco entre dois candidatos que pouparam nos decibéis. Foi, pelo menos, esta a imagem que quiseram passar, num frente a frente onde Marcelo procurou concordar mais do que discordar, mas sempre tentando colar a adversária ao partido a que pertence — um partido que não esteve ao lado da “estabilidade” no Orçamento do próximo ano –, e onde Marisa quis expor as diferenças “ideológicas” entre os dois.
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Marisa Matias (sobre a morte do cidadão ucraniano): “Não era justificável o silêncio”.
Marcelo Rebelo de Sousa: “Que não houve. Eu falei logo no começo em Abril”.
Marisa Matias: “Mas o contacto com a família”.
Marcelo: “Isso foi, de facto, uma opção de Estado. Admito que seja uma opção criticável, mas achei que não devia ser o Presidente a substituir-se ao SEF, ao Governo, a toda a hierarquia do Estado”.
Marcelo Rebelo de Sousa começou o debate, de resto, com um elogio desarmante a Marisa Matias sobre o que tem feito “na Europa” em áreas como as migrações ou a defesa do estatuto dos cuidadores informais, e o elogio foi repartido: “Marcelo teve um papel importante na visibilidade da questão dos trabalhadores informais”. Mas depois veio o ataque, subtil: “Tenho pena que o Orçamento para 2021 não tenha sido aprovado com um entendimento mais alargado à esquerda”, disse, depois de Marisa ter deixado claro que, enquanto Presidente, se iria bater por “estabilidade” e “entendimentos duradouros à esquerda”.
A estratégia de Marisa era clara: enquadrar-se no plano da moderação e empurrar Marcelo para as políticas de direita e as falhas do SNS; e a de Marcelo Rebelo de Sousa também: mostrar que Marisa Matias é do Bloco de Esquerda, e que o Bloco de Esquerda está longe da social-democracia que tanto gosta de dizer que preconiza. Foi o que aconteceu quando Marisa Matias tentou colar o Presidente da República ao falhanço da aplicabilidade da nova Lei de Bases da Saúde e ao privilégio dos “negócios” dos privados (“a saúde não pode ser um negócio”), e Marcelo rematou dizendo que “o Bloco de Esquerda opôs-se às parcerias de gestão, às PPP, na área da saúde; opôs-se e ficou sozinho”.
Marcelo critica polémica do procurador europeu e admite que decisão de não contactar família de ucraniano é “criticável”
O tema dos dados falsos fornecidos pelos serviços do Ministério da Justiça ao Conselho da União Europeia sobre o procurador europeu também chegou ao primeiro debate presidencial e Marcelo não poupou a ministra: “Lamentável” e “desleixo numa nota interna numa matéria que é importante”. Marisa Matias foi mais cautelosa. Disse que era uma situação “muito grave”, mas escusou-se a comentar mais por não ter ouvido as explicações da ministra minutos antes na RTP.
Questionada sobre os momentos mais baixos do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, Marisa Matias elegeu o “silêncio” do PR sobre a morte do cidadão ucraniano às mãos do SEF. E foi esse o momento mais acutilante da bloquista — o único, na verdade. Marcelo começou por rebater neste, dizendo que se manifestou logo em abril, mas admitiu depois que foi opção sua não se sobrepor ao SEF na hierarquia do Estado para o contacto com a família. “É criticável, mas foi a decisão que tomei”, disse.
Marcelo ainda vestiu o fato de Presidente da República para confirmar aquilo que o Observador já tinha avançado: vai prorrogar o estado de emergência com “o mesmo regime” por oito dias, já que não há dados suficientes relativamente ao período natalício, ganhando assim tempo para “encontrar uma solução que aponte para um mês”.
E acabou com Marisa Matias a desfazer o “tabu”, admitindo que “provavelmente o próximo Presidente está sentado à minha frente”. Mesmo que para isso, o PSD e o CDS tenham de “tomar sais de frutos” para votar nele. Pode não ser o “ideal”, mas Marcelo considera-se “o melhor possível”. E Marisa não parece discordar. Ou se discorda, não o mostrou neste debate.