Artigo em atualização ao longo do dia
— “Na minha casa vai tudo votar na senhora para ficar em segundo lugar.”
— “Em segundo lugar?”
— “O primeiro a gente sabe que não apanha.”
— “Olhe que eu acho que não… Se todos formos votar…”
— “Vamos ver, até pode ser que sim, a gente não sabe. Mas pelo menos o Ventura que fique em último, que ele é um racista. A esquerda toda é que havia de se unir para votar em si, que aquilo é o Hitler.”
Quanto mais passos dava para dentro do Bairro dos Navegadores, em Porto Salvo, Oeiras, mais a comunidade cigana se aproximava para dar ‘vivas’ a Ana Gomes. Todos sabiam quem ela era. Todos aplaudiam a “doutora”. E todos sabiam em quem é que não iriam votar no dia das eleições. António Romeiro, de 50 anos, que pertence à “família” cigana, é quem melhor resume o dilema da candidata: vai votar nela para ficar em segundo lugar, e para tirar a André Ventura essa ambição, mas sabe que o primeiro lugar a outro pertence.
Ou talvez não. Ana Gomes não aceita essa fatalidade e vai encostando Marcelo Rebelo de Sousa a Ventura, atribuindo-lhe a culpa pela “normalização” do Chega, como tem feito durante toda a semana de campanha:
— “Olhe que Marcelo Rebelo de Sousa tem responsabilidade por ‘ele’ estar onde está. Porque algumas coisas até melhoraram, com o governo de António Costa, mas outras não avançaram, e isto não pode continuar. E não sei se se lembra do que aconteceu nos Açores (…) mas foi ele que permitiu um Governo com o apoio de um partido racista”.
António, Alexandra ou Nelson pertencem à comunidade cigana que mora naquele bairro juntamente com comunidades africanas. “Não interessa se é cigano, africano, ucraniano, muçulmano, interessa é que estejam integrados”, respondia Ana Gomes, enquanto era guiada por Joana Gama, da associação de moradores, por entre as ruas onde miúdos jogavam à bola, graúdos ouviam música e reformados reivindicavam à candidata um local para jogar às cartas. O ponto da visita era esse: mostrar que Ana Gomes não tem medo do rótulo de “candidata cigana” porque é candidata de todos, e o que importa é a integração.
[Ouça aqui a reportagem da Rádio Observador]
E se Ana Gomes já tinha ganho pelo menos dois votos neste domingo de ida às urnas — o do hacker Rui Pinto e o da sogra de 98 anos que “esteve na fila para votar” em si — no bairro dos Navegantes ganhou a promessa de mais uns milhares. “Dia 24 tem o nosso voto, o nosso e o de mais um milhão”, dizia um jovem que, com o pé em cima do muro, ao lado de uma dezena de membros da “família” cigana, como lhe chamavam, atirava mensagens de apoio à candidata. E de ‘desapoio’ a André Ventura, a quem todos por ali chamavam de “Hitler”. “Ele é um aldrabão de feira, sim, mas o pior ainda são os que estão escondidos atrás dos que vendem a banha da cobra”, respondia Ana Gomes, referindo-se às “forças ocultas” que alega estarem por detrás daquele partido. Pelo meio, sorria às palmas e ‘vivas’ dos interlocutores.
Num prédio ali ao lado, uma senhora entusiasmava-se e gritava da janela, não para a candidata mas para os homens com quem a candidata conversara: “Isto não é só falar, é preciso é ir votar!”. Voto antecipado já está fora de questão, mas todos pareceram empenhados em ir no dia 24 pôr a ‘cruzinha’. Joana Gama, a presidente da associação de moradores, que tinha garantido à campanha de Ana Gomes, num contacto prévio, que não havia ninguém registado com Covid, comenta que no bairro foi feita uma “sondagem” e que “ela é que ficou na frente”.
Pode ter ficado à frente na sondagem interna, mas até os moradores que contam ir em peso votar nela têm consciência de que a corrida é pelo segundo lugar. Nelson, que estudou até ao 12º ano e que tem formação em pastelaria, sabe que o seu voto ou vai para Ana Gomes ou para Marcelo. Mas Ana Gomes “tem muita garra”, por isso talvez já tenha decidido. Outra moradora, de 82 anos, também vai a correr ter com a candidata, cuja cara conhece bem e “há muitos anos”, para dizer que seria ela ou ele. Ele, Marcelo. Ali só Ventura é que não entra.
Comparar Marcelo a Trump. “Com as devidas distâncias, mas sim”
Ana Gomes quer ditar o ritmo da estrada. Começa cedo, de manhã, e vai a todas antes que seja hora de almoçar. Um quartel de bombeiros em Carnaxide, outro quartel de bombeiros em Odivelas, uma esquadra da PSP na Póvoa de Santo Adrião. E só agora o relógio bate na uma da tarde. Aos bombeiros promete que vai defender a inclusão destes profissionais numa fase prioritária do plano de vacinação (equiparados ao INEM), e à PSP diz que não se conforma com a “falta de investimento das política neo-liberais” em meios e salários porque, não o fazer é o suficiente para “dar força aos que querem destruir a democracia”. A candidata não perde uma oportunidade de fazer o pleno: entrar no espaço de André Ventura, e sair a picar o adversário Marcelo Rebelo de Sousa, à espera que o candidato que esteve na reserva e que agora já se fez finalmente à estrada, a oiça e lhe responda. Até agora, contudo, ainda não aconteceu. Mas Ana Gomes não desiste de tentar.
“Ainda hoje fui visitar uma sede de associação de bombeiros, aliás duas, e ele foi a seguir os meus passos a outros bombeiros lá ao lado. Eu sei que o professor Marcelo esteve nos últimos 5 anos em campanha eleitoral, e, no entender dele, não precisa de mais, mas esta campanha serve precisamente para ele assumir compromissos, para ele dizer o que é que vai fazer para o país se desenvolver. Nisso ele não quer falar”, disse aos jornalistas no final da visita à esquadra da PSP no concelho de Odivelas.
Mas as provocações não se ficavam por aí. Questionada sobre o facto de, ontem, Marcelo Rebelo de Sousa ter alertado para o perigo de mudar de liderança a meio de uma pandemia, Ana Gomes lembrou-se imediatamente do que aconteceu nos EUA, em que os eleitores, mesmo em plena pandemia, acorreram massivamente às urnas para tirar de lá um Presidente que “não servia”. “Todos respirámos de alívio com essa mudança, e a pandemia não foi obstáculo”. Quer isto dizer que está a comparar Marcelo a Donald Trump? Não, mas. Com as “devidas distâncias”, sim.
“Não estou a comparar, mas o professor Marcelo é responsável pela subida dos adeptos de Trump também no nosso país, desde logo normalizando as forças políticas que fazem de Trump um herói, que seguem a mesma metodologia, que pregam o ódio e a insegurança, que cavalgam o sentimento de frustração e de zanga mas não oferecem solução que não seja mais ódio”, disse. Portanto, “sim, nesse sentido, com as devidas distâncias, o professor Marcelo tem tremendas responsabilidades”.
“Preocupada” com pressão nos hospitais, Ana Gomes poupa Governo
Mas há mais. O tema das urgências e da pressão hospitalar não sai da agenda, tal é a “preocupação” com o galopar da pandemia, e Ana Gomes não deixa de responsabilizar Marcelo pelo “preconceito ideológico” que impede a requisição civil de privados — uma crítica que tem sido recorrente no discurso da candidata. “Vejo aí muita gente a dizer que há preconceito ideológico de um lado e de outro, mas este não é o momento para preconceitos ideológicos”, disse, admitindo que “com certeza que também há falhas” da parte do Governo, mas cabe ao PR, mais do que nunca, articular-se com o primeiro-ministro. E não lhe cabe a ele “travar” essa utilização plena da capacidade instalada, acusou.
Ana, a bombeira profissional
A saúde é, de resto, “uma grande preocupação” que está na cabeça de Ana Gomes, embora não seja referida quando a pergunta é qual será o primeiro fogo que terá de apagar quando chegar a Belém. São muitos diz, o que vale é que as mulheres são “polivalentes” e fazem muitas coisas ao mesmo tempo. O que fará, disse, é uma “política interventiva”, “em articulação leal e franca com o Governo, mas sempre vigilante”.
Ana Gomes falava junto a uma esquadra da PSP curiosamente liderada por três sub-comissárias, mulheres, tema que a candidata não larga nem por um segundo. Depois de ontem, numa conferência online, ter defendido a paridade em todos os órgãos de nomeação direta do PR, esta manhã essa pergunta não saiu do seu bloco de notas em cada quartel por onde entrava: “Qual a percentagem de mulheres nesta corporação?”
No quartel dos bombeiros voluntários de Odivelas são “40 em 123”, é fazer as contas. No quartel anterior, em Carnaxide, eram 30% de mulheres na corporação. Vai torcendo o nariz, ainda é pouco. E nem de propósito, no último lugar da fila da formatura que a recebeu em Carnaxide, estava uma bombeira mulher, a única, com quem a candidata parou para falar, depois de ter cumprimentado os restantes bombeiros (homens) com a cotovelada própria da emergência sanitária. Chamava-se Ana, por coincidência, tinha 29 anos e era profissional noutro quartel, mas voluntária ali.
Um voto já lá mora. É o do hacker Rui Pinto, “com muito gosto”
Ana Gomes estava na segunda visita a um quartel de bombeiros do dia, em Odivelas, quando os jornalistas receberam — via Twitter — a notificação de que o hacker informático Rui Pinto já votou e votou em Ana Gomes. Era o momento de perguntar à candidata como é que vê esse voto, sendo ela uma das maiores defensoras da importância dos denunciantes nos grandes casos de justiça.
“Recebo com satisfação as declarações de voto e de apoio de todos os que lutam por um Portugal mais justo e mais transparente, que lutam para que o dinheiro não continue a ir para as offshores“, começou por dizer. E Rui Pinto é um deles. “O Rui Pinto é um desses portugueses que contribuiu por esse combate contra a corrupção, para a transparência, para a boa governação. Tenho muito gosto, e é com sentido de responsabilidade que aceito o voto dele e de todos os portugueses que querem combater a corrupção e um Portugal mais justo e melhor”, disse.
Eu já cumpri o meu dever cívico e exerci o meu direito de voto, votando na candidata @AnaMartinsGomes pic.twitter.com/pmyUkHowhS
— Rui Pinto (@RuiPinto_FL) January 17, 2021
No dia em que o voto antecipado, devido à pandemia, está a originar filas de vários metros em vários pontos do país, Ana Gomes preferiu enaltecer o papel do poder local na organização do processo — que só por si já teria de ser “extraordinário” havendo 245 mil inscritos para votar antecipadamente em todo o país, com a possibilidade acrescida de poder votar em qualquer concelho. Em Odivelas, onde esteve esta manhã, ao lado do vereador para a área da Proteção Civil, João António, há mais de 4 mil inscritos para votar este domingo, tendo “quadruplicado” o número de mesas de voto disponibilizadas. São 10 desta vez.
As filas, por isso, seriam sempre mais acentuadas, até por causa da distância exigida em plena pandemia, por isso Ana Gomes prefere apontar baterias à pouca antecipação com a qual o Presidente da República marcou o ato eleitoral, e ao facto de não ter sido feita legislação para o voto eletrónico ou o voto por correspondência (fundamental para os emigrantes). “O trabalho dos autarcas não dispensa que tivesse sido legislado o voto eletrónico e o voto por correspondência, porque em 10 meses havia tempo. É uma vergonha para a nossa república“, disse.