A procuradora Ana Carla Almeida decidiu avançar com uma queixa no Tribunal Geral de Justiça da União Europeia contra o Conselho da União Europeia a propósito do concurso para o colégio da Procuradoria Europeia. Ao que o Observador apurou, a queixa deu entrada nos serviços daquele tribunal de primeira instância com sede no Luxemburgo no final da semana passada.

O objetivo da ação da magistrada do Departamento Central de Investigação e Ação Penal é simples: anular a deliberação do Conselho da União Europeia (UE) que, por interferência da ministra Francisca Van Dunem, nomeou o procurador José Guerra para a Procuradoria Europeia.

Esta é a segunda queixa que vista contestar o concurso para a Procuradoria Europeia depois de um magistrado belga ter desencadeado ação semelhante. Contactada pelo Observador, a procuradora Ana Carla Almeida não quis fazer qualquer comentário.

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Se o Tribunal Geral de Justiça da UE der razão a Ana Carla Almeida, o Conselho da UE terá de deliberar novamente sobre quem será o procurador que representará Portugal na Procuradoria Europeia. José Guerra, por seu lado, está a exercer funções desde outubro de 2020 na Procuradoria Europeia.

Recorde-se que Ana Carla Almeida foi a magistrada portuguesa selecionada a 19 de novembro de 2019 pelo comité de peritos independentes do Conselho da UE. Como o parecer do comité não era vinculativo, o Governo de António Costa interferiu no processo, tendo o Ministério da Justiça liderado por Francisca Van Dunem informado o Conselho, através de um ofício da REPER de 29 de novembro, de que a escolha deveria recair sobre o procurador José Guerra. O Conselho acabou por seguir essa indicação, tal como fez o mesmo no caso dos procuradores belga e búlgaro.

Caso do procurador. José Guerra não foi a primeira escolha do Governo

Francisca Van Dunem invocou o concurso nacional que tinha sido gerido pelo Conselho Superior do Ministério Público, no qual José Guerra tinha ficado em primeiro lugar, João Conde Correia em segundo lugar e Ana Carla Almeida em terceiro lugar. Tal classificação, contudo, não foi seguida pelos peritos europeus que avaliaram os três procuradores portugueses e selecionaram Ana Carla Almeida como a melhor opção.

Este caso tem suscitado as mais diversas reações. Enquanto o Parlamento Europeu não desiste de escrutinar o caso e já exigiu o acesso a toda a documentação do Conselho da UE relacionada com a nomeação dos procuradores português, belga e búlgaro, o Conselho já deu o caso como encerrado. Jean-Michel Verelst, o procurador belga igualmente preterido como Ana Carla Almeida, avançou com a primeira queixa judicial para anular a nomeação do Conselho do seu colega Yves Van Den Berge (que na altura da escolha política em outubro de 2019 era diretor-adjunto do gabinete do ministro da Justiça da época). Já em Portugal, a Procuradoria-Geral da República abriu um inquérito ao caso do procurado devido a uma queixa da Ordem dos Advogados.

“Defender a independência da Procuradoria Europeia”

Em declarações feitas ao Observador no início de janeiro, Ana Carla Almeida dizia que queria defender a “independência da Procuradoria Europeia, o regular funcionamento do Estado de Direito, o direito que os cidadãos têm à boa administração e ao respeito pelo princípio da transparência no funcionamento das instituições que os governam.” Na altura ainda não se sabia se a procuradora especialista na investigação de casos relativos a fraudes com fundos europeus iria avançar com uma queixa judicial, mas a magistrada dizia-se “disponível para continuar a adotar sempre estarão enquadrados por estes valores que, em meu entendimento, se sobrepõem a concretos interesses pessoais”.

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A procuradora do DCIAP afirmou na altura que, “como magistrada e como cidadã”, tinha consciência “de que as informações que têm vindo a público sobre a forma como decorreu o processo de seleção, em nada contribuem para aqueles valores”.

A Procuradoria Europeia vai investigar e acusar casos de desvios de fundos europeus ou de outros apoios financeiros comunitários, assim como de crimes conexos, como corrupção ou fraude fiscal transfronteiriça de IVA superior a 10 milhões de euros.

O que se passou no Conselho Superior do MP

Tal como o Observador revelou a 6 de janeiro, a documentação do concurso gerido pelo Conselho Superior do MP revela igualmente vários factos polémicos.

Para começar, o CSMP não respeitou os prazos do concurso aberto pelo Ministério da Justiça.  O aviso do concurso publicado em Diário da República é claro: os conselhos superiores têm até ao dia 15 de fevereiro de 2019 para concluírem os respetivos procedimentos de seleção, mas o órgão de gestão do Ministério Público só concluiu o processo a 28 de fevereiro de 2019, com a aprovação de três nomes propostos pelo júri do concurso.

Por outro lado, o júri do concurso só definiu os critérios depois de conhecer quem eram os candidatos: cinco procuradores, dos quais foram escolhidos José Guerra, João Conde Correia e Ana Carla Almeida. Este facto mereceu censura de Amadeu Guerra, então procurador distrital de Lisboa, na reunião do CSMP em que foram aprovados os resultados do júri.

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E por que razão Ana Carla Almeida ficou em terceiro lugar — e a uma grande distância de José Guerra — quando, meses mais tarde, os peritos europeus entenderam que a magistrada do DCIAP era claramente a mais bem posicionada?

De acordo com as atas do júri português do concurso e das deliberações do CSMP, eis os factos:

  • Entre critérios de ponderação e de seleção, o júri liderado pelo vice-procurador-geral João Monteiro e do qual faziam parte Magalhães e Silva (advogado eleito pelo Parlamento por indicação do PS), Maria João Antunes (jurista próxima de Francisca Van Dunem, por si nomeada para coordenar a Estratégia Nacional Contra a Corrupção), Raquel Almeida Ferreira (Procuradora Regional do Porto) e Alexandra Chicaro das Neves (Procuradora da República) determinou catorze critérios.
  • O júri decidiu dar maior preponderância à “experiência em cooperação judiciária internacional em matéria penal” (pontuação mais elevada de 10 pontos) do que à “experiência na investigação de crimes contra os interesses financeiros da UE” (pontuação máxima de seis pontos) — quando este último é o principal objetivo da Procuradoria Europeia. Ou seja, na prática valorizou mais a participação no Eurojust (por onde José Guerra passou) do que uma comissão de serviço na OLAF ou a investigação de inquéritos criminais relativos a fundos europeus (os dois pontos fortes do curriculum vitae de Ana Carla Almeida).
  • Decidiu ainda estabelecer critérios teóricos, como “trabalhos científicos nas áreas de investigação e do processo penal de crimes de natureza financeira e de outra natureza”, ou como a “atividade no âmbito do ensino jurídico” — que valiam os mesmos seis pontos máximos da investigação a crimes contra os interesses financeiros da UE.
  • E ainda transformou um requisito eliminatório do regulamento do concurso aberto pelo Ministério da Justiça (experiência mínima de 20 anos) num facto de avaliação, determinando que uma antiguidade superior a 10 anos teria uma pontuação máxima de 10 pontos.

Conclusão:

  • seguindo estes critérios, só nos items da antiguidade, trabalhos científicos, sobrevalorização da cooperação judiciária (o que favoreceu José Guerra que tinha estado no Eurojust) e subvalorização da investigação de crimes europeus (onde Ana Carla Almeida era mais forte), a magistrada do DCIAP perdeu para José Guerra um total de oito pontos.
  • Mais: Ana Carla Almeida ficou mesmo atrás de João Conde, que algumas fontes do Ministério Público classificam como um teórico e que ficou recentemente conhecido como o autor dos pareceres do Conselho Consultivo que permitiram a Lucília Gago criar a diretiva que reforçou os poderes hierárquicos para intervir nas investigações.

Nove meses mais tarde, Ana Carla Almeida foi considerada a melhor magistrada por um comité de peritos independentes do Conselho da UE.

O comité, composto por antigos juízes do Tribunal de Justiça da UE e do Tribunal de Contas Europeu, assim como ex-juízes conselheiros nacionais e outros juristas, escolheram Ana Carla Almeida pelos seus “28 anos de experiência enquanto procuradora” responsável pela “investigação e acusação de crimes financeiros relevantes e crimes transfronteiriços, incluindo os crimes que afetam os interesses financeiros da União Europeia”, lê-se na decisão de 19 de novembro de 2019 a que o Observador teve acesso.

Em suma, os peritos europeus “apreciaram em particular a dinâmica, ambição, lado prático, excelente capacidade de comunicação e prontidão operacional” de Ana Carla Almeida, que terá também mostrado consciência da importância de a Procuradoria Europeia respeitar os “direitos fundamentais” dos cidadãos da União. Por isso, escolheram a magistrada do DCIAP como o candidato “mais adequado para exercer as funções de procurador europeu no Ministério Público Europeu.”