O ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foi este sábado absolvido pelo Senado norte-americano da acusação de “incitamento à insurreição“, que lhe tinha sido movida pela Câmara dos Representantes depois de, no dia 6 de janeiro, centenas de apoiantes de Trump terem invadido o Capitólio de Washington D.C. — uma invasão violenta que causou cinco vítimas mortais e dezenas de feridos e levou à detenção de dezenas de pessoas.
Dos 100 senadores que compõem a câmara alta do Congresso norte-americano, 57 votaram no sentido de condenar Trump e 43 no sentido de o absolver. O resultado não foi suficiente para condenar o ex-presidente, uma vez que uma sentença condenatória exigiria o voto favorável de dois terços (ou seja, 67) dos senadores. Todavia, o resultado tem uma expressão histórica importante: nunca tinha havido tantos senadores do partido do próprio Presidente a votar na condenação.
No centro de todo o processo de impeachment esteve a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro. Nesse dia, para o qual estava marcada a sessão do Congresso que certificaria definitivamente o resultado da eleição presidencial de novembro de 2020 e declararia formalmente Joe Biden como o vencedor, uma multidão composta por várias centenas de apoiantes de Donald Trump invadiu o edifício do Capitólio, obrigando à evacuação das câmaras do Senado e da Câmara dos Representantes e à retirada do vice-presidente Mike Pence.
Fotogaleria. As imagens da invasão do Capitólio por manifestantes pró-Trump
A multidão, que exibiu bandeiras e cartazes de Donald Trump, invadiu o edifício gritando que tinha sido enviada pelo próprio Trump para lutar contra a formalização da vitória de Joe Biden. Ao longo de dois meses depois da eleição de novembro, Donald Trump recusou sempre aceitar a vitória de Joe Biden, colocando inclusivamente obstáculos ao processo da transição de poder.
Uma hora antes do arranque da sessão formal destinada a certificar o resultado eleitoral, Donald Trump fez um discurso inflamado perante uma multidão de apoiantes que ele próprio tinha convocado para estarem em Washington D.C. naquele dia (prometendo-lhes que seria “selvagem”). No discurso, Trump instou os apoiantes a “marchar” rumo ao Capitólio e a “lutar” pela justiça eleitoral, lembrando-lhes que não seria com “fraqueza” que recuperariam o país.
Logo no dia 6 de janeiro, o Partido Democrata começou a equacionar os vários cenários que tinha à sua disposição para afastar Donald Trump, incluindo a 25.ª emenda e o impeachment. Depois de Mike Pence recusar invocar a 25.ª emenda, o Partido Democrata apresentou formalmente uma proposta de impeachment contra Trump por “incitamento à insurreição”. A Câmara dos Representantes, onde os democratas têm maioria, aprovou a acusação no dia 13 de janeiro, uma semana depois da invasão do Capitólio.
O argumento central da acusação era o de que aquele discurso havia sido o culminar de uma longa campanha de Donald Trump para enfurecer os seus apoiantes, de modo a que, quando fosse necessário combater uma eventual derrota eleitoral, tivesse uma multidão zangada ao seu dispor para os protestos. De acordo com os congressistas do Partido Democrata que conduziram a acusação, mesmo antes da eleição Donald Trump tinha usado todas as oportunidades para criar na sua base de apoio a firme convicção de que só uma fraude eleitoral de grande escala explicaria uma eventual derrota no dia 3 de novembro.
Quando a derrota de facto se verificou, Trump teria então capitalizado essa desconfiança criada nos seus apoiantes para combater o “roubo” de votos. Mais tarde, argumentou o Partido Democrata, o agendamento de um comício para o dia da certificação dos resultados a escassas centenas de metros do Capitólio foi o golpe final da estratégia de Trump: sabendo que tinha perante si uma multidão furiosa, incentivou-os a combater no Capitólio.
Os advogados de Donald Trump, por seu turno, recorreram a uma variedade de argumentos para descredibilizar a acusação.
Em primeiro lugar, a defesa de Trump sustentou desde o início que o próprio julgamento de impeachment era inconstitucional, uma vez que o ex-presidente já não tinha nenhum cargo do qual ser destituído — e é esse o principal objetivo de um processo deste tipo, embora possa ser aplicada, como pena acessória, a proibição de se voltar a candidatar à Presidência.
Ao mesmo tempo, a defesa escudou-se na proteção constitucional da liberdade de expressão para argumentar que Trump tinha o direito a dizer o que disse no discurso — designadamente as múltiplas referências à “luta” — e que não pode ser punido pelo seu discurso. Para reforçar este argumento, os advogados de Trump exibiram no Senado vários vídeos de figuras do Partido Democrata em discursos onde surgiu a palavra “luta” e sublinharam que ninguém devia ser condenado pela sua retórica política.
No entender da defesa de Trump, não era o ex-presidente que devia ser condenado pelo ataque ao Capitólio, mas os próprios manifestantes que invadiram o edifício. Para os advogados de Trump, todo o impeachment não passou de uma tentativa por parte do Partido Democrata de obter ganhos políticos e de afastar o ex-presidente de uma possível futura eleição presidencial.
Julgamento durou apenas 5 dias
Ao contrário do que sucedera no primeiro impeachment de Trump, em 2020, este segundo julgamento foi muito mais breve: apenas cinco dias foram suficientes para que todo o processo no Senado ficasse concluído. O julgamento arrancou na última terça-feira com um debate sobre a constitucionalidade do próprio processo, uma vez que a defesa de Donald Trump argumentava que o Senado não tinha jurisdição sobre um ex-presidente. Com 56 votos a favor e 44 votos contra, o organismo acabou por votar favoravelmente à continuação do processo.
A acusação gastou cerca de 12 das 16 horas de que dispunha para apresentar os seus argumentos, mostrando aos senadores vários vídeos, incluindo alguns inéditos, com os quais procurou demonstrar uma relação direta entre o discurso de Trump e a invasão do Capitólio. Para os procuradores que conduziram a acusação, era claro que Trump sabia que a multidão perante a qual discursou era violenta, incitando-a deliberadamente à “luta”.
Por seu turno, a defesa de Donald Trump gastou pouco mais de três horas a expor os seus argumentos, o que permitiu que a fase das perguntas dos senadores acontecesse ainda na sexta-feira.
Convocatória de testemunhas ameaçou desfecho rápido
Com tudo encaminhado para que um desfecho neste sábado, a sessão começou com uma reviravolta inesperada, quando os democratas optaram por pedir que o Senado chamasse como testemunha a congressista republicana Jaime Herrera Beutler. Embora tudo apontasse para que o julgamento não contasse com a participação de novas testemunhas, uma notícia de última hora na sexta-feira alterou os planos do Senado.
Na sexta-feira à noite, a congressista republicana Jaime Herrera Beutler divulgou um comunicado no qual descreveu um telefonema que lhe foi contado pelo líder da minoria republicana na Câmara dos Representantes, Kevin McCarthy. Nesse telefonema, que aconteceu no dia da invasão do Capitólio, McCarthy terá conversado com Donald Trump para lhe pedir intervenção face à invasão. Em resposta, Trump terá dito a McCarthy que os invasores do Capitólio estavam “mais aborrecidos com a eleição do que você”. Para os democratas, este novo pedaço de informação era fundamental para a provar a intenção de Trump relativamente à invasão do Capitólio.
Mas a resposta da defesa de Trump foi contundente: se os democratas quisessem abrir a “caixa de Pandora” das testemunhas, então os republicanos chamariam centenas de testemunhas adicionais para “descobrir a verdade” do dia 6 de janeiro — incluindo figuras do Partido Democrata como a vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, e a presidente da câmara de Washington D.C., Muriel Bowser. Durante a manhã de sábado, chegou a circular uma lista provisória que contava com mais de 300 testemunhas.
A ameaça republicana obrigou o Senado a uma pausa estratégica para discutir o problema: caso a intimação de testemunhas avançasse, o julgamento poderia prolongar-se por várias semanas, tirando ao Senado tempo precioso para aprovar os nomeados de Joe Biden para posições executivas ou para a discutir a legislação de apoio económico e social na sequência da pandemia da Covid-19. Após várias horas de negociações de bastidores, este argumento acabou por vencer e os dois partidos chegaram a acordo: o comunicado de Jaime Herrera Beutler entraria no registo oficial das provas do julgamento; em contrapartida, ninguém chamaria testemunhas.
Assim, com três horas de atraso em relação ao inicialmente previsto, o julgamento avançou para as alegações finais. Durante cerca de três horas, acusação e defesa resumiram os seus principais argumentos: enquanto a acusação recordou os senadores das provas “esmagadoras e irrefutáveis de que o ex-presidente Trump incitou esta insurreição”, a defesa do ex-presidente voltou a acusar os democratas de fabricarem o processo (que classificaram como “completa charada”) para ganhos políticos. No final, sem surpresas, Donald Trump foi absolvido, apesar dos votos dos 50 democratas e de sete republicanos.
“O nosso movimento histórico, patriótico e belo ainda só está a começar”
Banido definitivamente do Twitter, o ex-presidente Donald Trump manteve-se silencioso durante todo o processo, mas poucos minutos depois da absolvição fez sair um comunicado com a sua reação à decisão. Na nota, Trump queixou-se de continuar a ser alvo de uma “caça às bruxas” e congratulou-se com mais uma vitória. “O nosso movimento histórico, patriótico e belo ainda só está a começar”, disse Trump, numa nota em que agradeceu à sua equipa de “dedicados advogados” por terem “defendido a justiça e a verdade”.
“O meu mais profundo agradecimento também a todos os senadores e congressistas dos EUA que se ergueram com orgulho em defesa da Constituição que reverenciamos e pelos princípios legais sagrados no coração do nosso país”, disse ainda o ex-presidente.
Trump manifestou um profundo desagrado com aquilo que diz serem os esforços dos democratas para “denegrir o Estado de Direito, difamar as forças de segurança, desculpar os manifestantes e transformar a justiça numa ferramenta de vingança política” O ex-presidente queixou-se ainda de que os democratas o querem “cancelar” e disse que o impeachment foi “mais uma fase da maior caça às bruxas no nosso país”.
“Nenhum Presidente alguma vez teve de passar por algo assim“, disse Trump. E prometeu voltar em breve: “Nos meses que aí vêm tenho muito a partilhar convosco e estou desejoso para continuar a nossa incrível viagem juntos, para alcançar a grandiosidade americana para todo o nosso povo”.
Trump foi “prática e moralmente responsável” pela invasão do Capitólio
Depois de conhecida a decisão, ouviu-se na câmara do Senado um discurso aparentemente contraditório com as ações. Em tempos um dos mais poderosos aliados de Trump, o senador Mitch McConnell — que votou pela absolvição do ex-presidente — fez um discurso duríssimo, acusando Trump de ter inequivocamente provocado o motim e a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro.
“Não há nenhuma dúvida, nenhuma, de que o Presidente Trump é prática e moralmente responsável por provocar os acontecimentos daquele dia”, afirmou McConnell, o líder da bancada republicana no Senado, num discurso depois da absolvição. “Eles fizeram-no porque foram alimentados com mentiras pelo homem mais poderoso do mundo, porque estava furioso por ter perdido uma eleição.”
McConnell lamentou também que os advogados de Trump tivessem usado o argumento dos 75 milhões de eleitores que ficariam sem voz em caso de condenação, classificando o argumento como um “escudo humano”.
Todavia, o líder republicano concluiu dizendo que o impeachment no Senado não era o fórum adequado para tratar do assunto. O impeachment é uma “válvula de segurança” dentro do Governo, e não um mecanismo “final” de justiça nos EUA, disse McConnell sugerindo que Trump devia ser presente a tribunal e não a um impeachment político.