Leopoldo Petreanu gosta de ilusões de ótica e de jogos de percepção visual. Diz que o cérebro é enganado “quase o tempo todo” e que, por isso, ele também nos engana. “Nunca temos a informação toda para compreender a realidade”, diz o neurocientista argentino de 49 anos.
Licenciou-se em Biologia na Universidade de Buenos Aires, em 1997. Seis anos depois foi estudar para a Rockefeller University, em Nova Iorque, para saber mais sobre os mistérios do cérebro humano, sobretudo acerca de neurónios e circuitos cerebrais. Ficou 15 anos nos EUA, onde concluiu o doutoramento e pós-doutoramento e se tornou neurocientista. Está em Portugal desde 2012 para cumprir um sonho: “ter o meu próprio grupo de investigação”.
Leopoldo e a mulher fazem parte da leva dos primeiros cientistas internacionais contratados pela Fundação Champalimaud, em Lisboa. Viram as obras do atual edifício e admite que se sente em casa por cá. Os filhos de 9 anos, gémeos, que chegaram com três meses a Lisboa, estão a ensinar-lhe Português.
Agora, sentado em frente ao computador, no escritório com o número 25.37, no segundo andar do edifício da Fundação, com vista para o Tejo, o investigador principal do Cortical Circuits Lab propõe-nos, entusiasmado, um desafio por videochamada.
“Vou mostrar uma imagem durante pouco tempo e vai ter de me dizer onde está a escova de dentes.” A exibição da imagem demora um piscar de olhos. Identificámos a escova de dentes. Mas não é a correta. Leopoldo reage surpreendido: “Ah! Este desafio funciona melhor no ecrã grande de um auditório, onde costumo mostrar. No do computador falha o essencial.” Nos resultados habituais desta tarefa de percepção visual, a plateia no auditório consegue identificar, na fotografia exibida, a escova de dentes doméstica pousada no balcão do lavatório de uma casa-de-banho. Mas escapa-lhes a escova de dentes do tamanho de um taco de basebol, que também está na imagem.
“O cérebro filtra esses detalhes porque não é expectável ver uma escova de dentes gigante na casa de banho, mas sim uma mais pequena”, elucida o Group Leader do Programa de Neurociência da Fundação Champalimaud. “O cérebro tem uma expectativa de como a escova de dentes deve ser.”
O desafio serve de exemplo para demonstrar o pressuposto do trabalho científico deste investigador: a percepção não é passiva e tem expectativas. O cérebro humano está sempre a processar informação, interpretando o ambiente, de maneira a planear, prever e conduzir as ações. A forma como essa comunicação neural complexa se processa ainda é uma incógnita.
Os nossos olhos não são como uma câmara fotográfica que apenas recebe informação”, diz o investigador. “Cada imagem e cada estímulo são interpretados pelo cérebro, para construir uma percepção.”
Ou seja, as percepções emergem quando se combina os estímulos sensoriais externos, do mundo ao redor, sobretudo, com expectativas e experiências prévias, armazenadas internamente. Só que “os estímulos são sempre ruidosos e incompletos”, acautela o cientista, enquanto vemos a câmara do seu computador a fazer focagem automática, de cada vez que ele se mexe. Há uma luz natural invejável que lhe entra pela janela, posicionada para ver o pôr-do-sol.
“O cérebro precisa preencher os espaços vazios e, para isso, ele utiliza expectativas prévias, isto é, o que é expectável estar ali.” Até ao momento, os neurocientistas não têm conhecimento sobre a rede neural do cérebro onde se armazenam as previsões – que são apreendidas anteriormente –, nem como se combinam na hora de perceber novos estímulos sensoriais do mundo externo. É uma das grandes incógnitas da neurociência: afinal, como percebemos o mundo?
Leopoldo e a equipa de mais cinco cientistas têm uma hipótese. E submeteram-na ao concurso Health Research, da Fundação “la Caixa”, em 2018 [ver informação no final do artigo], com o projeto de investigação Optical Dissection of Cortical Circuits for Sensory Expectations [Dissecação Óptica de Circuitos Corticais para Expectativas Sensoriais]. “Talvez a forma como a perceção visual se alia às expectativas se deva ao facto de, ao fazer essas ligações, elas armazenarem as probabilidades a partir da maneira como se conectam”, teoriza.
Sabe-se que o cérebro faz inferências, a partir da experiência prévia. O projeto de investigação analisa como este processo emerge de redes neurais, mais especificamente do neocórtex, “que é a parte do cérebro, quando abrimos o crânio e vemos aquelas rugas”, ilustra o neurocientista. Ele refere-se à camada mais externa do crânio, rica em neurónios, onde se dá o processamento mais sofisticado, responsável pelas funções mais complexas, como a memória, a atenção, a consciência, a linguagem e a percepção. E é também um exemplo da evolução dos seres humanos.
Dos nossos antepassados até nós, o neocórtex é a parte que mais cresceu. Se olharmos para o circuito parece muito simples, parece algo que se repete. Por isso, para mim, uma pergunta sempre intrigante é: qual o modelo que tem vindo a ser repetido e o que faz? Tem de ser algo muito poderoso se tirarmos proveito disso”, afirma contundente, como quem antecipa que tem uma grande descoberta para revelar ao mundo.
A área visual da percepção “é composta por muitas áreas visuais e o cérebro processa a informação visual de forma diferente do que se pensava”, contextualiza o investigador argentino que cresceu no bairro de Palermo, na cidade de Buenos Aires, referindo-se ao estado da arte da Neurociência nesta questão. Algumas dessas áreas, esclarece, são chamadas de ordem superior, “quando veem a questão numa perspectiva geral [the big picture]”. Ou seja, tendo em conta o contexto. As de “ordem inferior não veem a perspectiva geral, mas sim detalhes”, como o contorno dos olhos, “mas não querem saber se é de um olho, ou de um rosto”, continua. “Veem o mundo por uma pinhole”, exemplifica este apaixonado por fotografia e pela luz lisboeta, usando como metáfora a câmara fotográfica artesanal com um orifício do tamanho do buraco de uma agulha.
Numa investigação autónoma em 2018 – e servindo-se desses estudos prévios –, Leopoldo e a equipa constataram já que as ligações no neocórtex vão da área superior para a área inferior de uma maneira específica. “Estão organizadas de forma particular, muito precisa, de acordo com algumas regras, e antes isso não era conhecido. Essas regras sugerem que estavam a rastrear probabilidades do mundo visual.”
A pesquisa do concurso Health Research quer dar um passo em frente. Consiste em “tentar compreender o neuro mecanismo de como isso emerge no cérebro”, até porque, ressalva, pensa-se que esse mecanismo falha em muitas doenças, causando disfunções. “A mais evidente é a esquizofrenia”, aponta. “Os esquizofrénicos percepcionam coisas que não estão lá na realidade, que estão dentro dos cérebros deles. Por isso, não se distingue o que se gera, internamente, para comparar com os estímulos exteriores.” Também no autismo esta falha poderá ter consequências disfuncionais. “Os cérebros dos pacientes com espectro autista podem estar constantemente a considerar que os estímulos externos não correspondem às suas expectativas, como num estado de erro permanente”, conjetura o neurocientista. Mas previne zeloso: “é importante esclarecer que estas são teorias, e não factos científicos. Esperamos que o nosso trabalho ajude a testá-las no futuro”.
Para chegar aos resultados da investigação, a equipa está a recolher dados de modelos animais, utilizando engenharia genética, com recurso a fluorescência e microscopia. “Fazemos, literalmente, uma janela no crânio do ratinho, executamos uma pequena cirurgia e tiramos proveito dessa área do cérebro para analisar in vivo essas ligações neurais”, informa. Depois, “através do microscópio de duplo fotão e proteínas de engenharia genética, as sinapses brilham e, dependendo da quantidade de impulsos elétricos, vão florescer de forma diferente.” Ou seja, “é como se víssemos estrelas a brilhar no ecrã”, elucida.
Com esse método conseguem “descrever a informação que vai para uma parte específica do cérebro do ratinho com uma precisão extrema”, para identificar que informação provém das áreas de percepção visual superior para a área de percepção visual inferior. “E comparamos com animais que tiveram apenas uma experiência para aqueles que tiveram diferentes experiências.”
Mas há outra variável na equação. Para obter essas reações sinápticas do cérebro dos animais, que vão indicar como funcionam essas organizações complexas que dependem das expectativas e das probabilidades criadas pelo cérebro, a equipa de investigadores está a “manipular” essas probabilidades. Como? Colocando dispositivos ópticos em frente aos olhos do ratinho, para alterar a percepção. São uma espécie de testes de psicologia da percepção, tal como sucedeu com o desafio inicial da escova de dentes.
Nesse caso, por exemplo, colocam lentes que fazem com que todo o contorno alongue uma palavra. “Imagine que nascia num mundo onde tudo é mais esticado. Assim, o sistema visual teria de aprender a esperar algo diferente [do conhecido]. É o tipo de coisa que medimos com este método”. Dessa maneira, se a hipótese deles estiver correta, “a forma como os sinais aí convergem deve estar relacionada com aquilo que os animais experienciam”, sublinha. Isso porque essas organizações de ligações neurais que veem a perspectiva geral e apenas os detalhes são alteradas pelos estímulos, pela experiência, que consiste em rastrear o que é esperado no mundo onde vivem.
“O próximo passo, quando desvendarmos as regras para que isso aconteça”, avança Leopoldo, “é medir em modelos animais com esquizofrenia e autismo”, para compreender como se pode contribuir para melhorar o diagnóstico e possíveis terapêuticas.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Optical Dissection of Cortical Circuits for Sensory Expectations / Dissecação Óptica de Circuitos Corticais para Expectativas Sensoriais, liderado por Leopoldo Petreanu, da Fundação Champalimaud, foi um dos 25 selecionados (dez em Portugal) – entre 785 candidaturas – para financiamento pela Fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2018 do Concurso Health Research. O investigador recebeu cerca de 500 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O Health Research apoia projetos de investigação em saúde e as candidaturas para a edição de 2021 encerraram a 3 de dezembro último. Em meados deste ano deverão estar disponíveis as informações sobre as candidaturas para 2022.