Aquilo que a cientista Ana Mendanha Falcão mais gosta de fazer é sentar-se a ler e a pensar. Num dia de trabalho normal, é possível vê-la no corredor do segundo piso do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS), na Escola de Medicina da Universidade do Minho, a contemplar a vista para o Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga.

“Quem olha para mim, parece que estou a pasmar”, graceja. “Mas na realidade estou a pensar. É uma das partes favoritas da minha profissão. As pessoas acham que estamos sempre no laboratório com as pipetas, mas não. Muito do processo científico é simplesmente pensar.”

Dessas contemplações surgem muitas ideias que ajudam a investigadora de 36 anos, natural de Nine, em Vila Nova de Famalicão, a criar ligações de conhecimento científico – quer a partir das leituras de artigos que faz, quer a partir da experiência. “É como se fossem peças de puzzle, eu vejo-as em todo o lado.” O cérebro relaxado relaciona estudos, experiências e resultados científicos, ao mesmo tempo que pensa em novas perguntas e ensaia respostas.

“A ligação que fiz entre o plexo coróide e a esclerose múltipla (EM) ainda não está explorada: como é que as moléculas secretadas para o líquor influenciam a formação e a regeneração das células afetadas em EM”

Talvez também por isso, ela tem uma característica comunicativa: à medida que reflete, em voz alta, sobre o seu trabalho de investigação de pós-doutoramento, vai antecipando as perguntas dos interlocutores, para explanar melhor como está a tentar parar a Esclerose Múltipla (EM).

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O projeto chama-se O Papel do Plexo Coróide na Mielinização e em Esclerose Múltipla e é financiado pela Fundação “la Caixa”. O estudo é importante porque se sabe pouco sobre a função desta membrana ramificada sob a forma de cordão, situada no interior dos ventrículos cerebrais [cavidades principais do encéfalo] e responsável pela formação do líquido cefalorraquidiano. Anatomicamente, é um tecido cerebral que “flutua” nesse líquido, que rodeia e protege o cérebro e a medula espinal. Contém água com proteínas, glicose, glóbulos brancos e hormonas.

Uma das ligações da EM com o líquido cefalorraquidiano, que existe no cérebro, é esta: na esclerose múltipla a composição do líquor está alterada. Só que as pessoas não sabem – porque é surpreendentemente pouco estudado – qual é a estrutura do cérebro responsável pela produção desse líquor: o plexo coróide.”

A Organização Mundial da Saúde estima que, em todo o mundo, haja cerca de dois milhões e meio de pessoas com essa doença crónica, inflamatória e degenerativa. Em Portugal, os dados do Sistema Nacional de Saúde apontam para cerca de oito mil pessoas a sofrer de EM, que afeta o sistema nervoso central. Até ao momento é incurável.

A bolseira de Pós-Doutoramento Junior Leader da Fundação “la Caixa” está a tentar encontrar essa peça de puzzle pouco estudada no cérebro humano: a função do plexo coróide na regeneração da mielina, “que é a camada de gordura que envolve os axónios e que é destruída em EM”. Em geral, explica, na EM, “pensa-se que as células do sistema imunitário que atravessam do sangue para o cérebro começam a destruir a mielina”. Um dos sítios de passagem dessas células pode ser o plexo coróide.

A investigadora ilustra a ideia utilizando um carregador de telemóvel. “É como se fosse um cabo elétrico que tem os fios. Estes fios são os axónios e a camada de borracha é a mielina que isola estes cabos. É o que permite o impulso nervoso neural.” A perda de mielina perturba a condução do impulso nervoso e conduz aos sintomas motores da EM, como fadiga, dormência, problemas de visão, tonturas, dificuldades cognitivas, alterações emocionais, depressão ou alterações na fala, entre outros.

A boa notícia é que a mielina pode ser reparada. Pragmática, a cientista pede para partilhar o ecrã do computador e mostra a imagem do interior de um cérebro. Está focada em elucidar, visualmente, o que tem andado a investigar, centrando-se no plexo coróide, esse “tecido do cérebro” onde se produz o líquor. A investigação quer, por um lado, compreender o papel do plexo coróide na mielinização do cérebro e, por outro, enquanto mediador da reparação da mielina. Isso porque a compreensão do papel das moléculas produzidas pelo plexo coróide na mielinização em pessoas saudáveis e em resposta a doenças neurodegenerativas, como a EM, ainda é uma lacuna.

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Ana Falcão explica como encontrou as peças de puzzle para tentar preencher esse vazio. “A função do líquor é fornecer proteção mecânica contra o trauma”, em caso de acidente, por exemplo, “através de flutuabilidade”. Mas também fornece nutrientes e outras moléculas e remove detritos do sistema nervoso central. “A ligação que eu fiz entre o plexo coróide e a esclerose múltipla ainda não está explorada: como é que as moléculas que são secretadas para o líquor influenciam a formação e a regeneração das células diretamente afetadas em EM, isto é, os oligodendrócitos.” Essas são as células responsáveis pela produção da bainha de mielina no sistema nervoso central. Por isso quer perceber como pode esse líquor, que está em contacto com os precursores de oligodendrócitos, ajudar na decisão de produzir mais mielina.

“Isto é um bocadinho controverso, mas eu vou dizer o que se sabe: a mielina pode ser regenerada porque existem progenitores de oligodendrócitos que se diferenciam em oligodendrócitos que voltam a formá-la.” E por que razão isto é importante? “Porque se é possível haver a remielinização com progenitores, e se um dos aspectos do que acontece em EM é que, em estádios mais tardios, isso não acontece com tanta eficiência, então, há que tentar perceber quer um mecanismo que possa induzir essa remielinização, quer mecanismos que permitam prevenir que ela se perca.”

Ana Falcão, agora a viver em Braga, nunca sonhou em ser cientista, mas esta investigação, considerada inovadora, é fruto de anos de experiência em contextos nacional e internacional. A trabalho e em estudo, viveu na Alemanha, em Israel e na Suécia. Licenciou-se em Bioquímica na Universidade de Coimbra em 2007 e foi em mobilidade académica, através do programa Erasmus, durante o estágio no Instituto Karolinska, em Estocolmo, a estudar células estaminais, que se apaixonou por Ciência. “Eu quero fazer isto enquanto me faz feliz”, pensou.

Decidiu, então, seguir a carreira científica e fazer o doutoramento na Universidade do Minho, investigando como um estímulo inflamatório periférico no plexo coróide muda o conteúdo do líquor, influenciando assim a dinâmica das células estaminais.

Em 2013 voltou depois para a Suécia, para fazer o pós-doutoramento, concentrando-se em Esclerose Múltipla. Regressou a Portugal há dois anos, com vontade de desenvolver uma investigação autónoma. O ICVS acolheu-a e a bolsa “la Caixa” deu-lhe os alicerces necessários. Neste momento, tem na sua equipa um estudante de Mestrado e uma colega de Pós-doc.

A bioquímica tem agora no ecrã o que parece um mapa mundo, com vários pontos coloridos. É o Loupe browser, uma aplicação que permite uma visualização interativa de dados de expressão genética de células individuais. É ainda cedo para falar de resultados. Admite que há, por agora, um longo caminho a percorrer. Mas a tecnologia que está a utilizar vai ajudar. É inovadora e está a ser implementada no ICVS e em Portugal.

A OMS estima que haja cerca de dois milhões e meio de pessoas com Esclerose Múltipla no mundo. Em Portugal, os dados do SNS apontam para cerca de oito mil pessoas a sofrer desta doença inflamatória e degenerativa que afeta o sistema nervoso central e é incurável. Ana Falcão quer reverter isso

“Uma coisa que eu me comprometi a fazer foi implementar as técnicas e modelos necessários ao projeto, cá no ICVS. Por exemplo, a técnica que permite sequenciar o RNA [codificação genética] de células individuais.” Isso permite ter informação da expressão genética de determinados tipos celulares que são raros e, por isso, difíceis de investigar.

“Os cérebros foram colhidos e fatiados, nós agora conseguimos recolher os núcleos das células do plexo coróide e vamos ver qual é o perfil de expressão genética deles.” Exemplifica e começa a falar por códigos, sussurrando-os e enunciando de cor alguns nomes científicos de células. No caso dela, este software serve para sequenciar o plexo coróide de pacientes com esclerose múltipla, em tecido post mortem.

A ideia aqui é tentar perceber se existem mudanças na expressão genética no plexo coróide em EM,  e se estas têm alguma implicação para a formação da mielina.”

Ou seja, ao analisar a informação de todas as células individuais que compõem os plexos coróides na EM e “comparando com os controlos [sem doença], pretendemos descobrir novos agentes moleculares na EM”.

Dessa forma, querem encontrar vias “para modular as moléculas nascidas no plexo coróide, para restaurar a mielina e, assim, melhorar o resultado clínico dos pacientes com esclerose múltipla”. Os resultados desta investigação poderão, assim, abrir novas possibilidades terapêuticas para a EM. “O que eu espero é que o meu estudo seja uma peça de um puzzle que alguém vai agarrar e juntar com as peças de muitas outras pessoas [cientistas]”, reflete a bioquímica, acrescentando que só dessa forma poderá resultar num avanço em EM. “Eu não sei o que vou descobrir, mas quando juntamos as peças há sempre um progresso.”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI . O projeto O Papel do Plexo Coróide na Mielinização e em Esclerose Múltipla, de Ana Mendanha Falcão, do ICVS/ Escola de Medicina, da Universidade do Minho, foi um dos 33 selecionados (dois em Portugal) – entre 775 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2019 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. A investigadora recebeu 305 mil euros por três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática. As candidaturas para a edição de 2021 encerraram em outubro e, para a edição de 2022, deverão abrir no próximo verão (data a anunciar).