Pelo menos mil pessoas que fugiram de Palma, incluindo muitas crianças, estavam até segunda-feira refugiadas na península de Afungi a pedir água, comida e transporte à petrolífera Total e às autoridades moçambicanas, contou à Lusa uma sobrevivente.

Dormem nas ruas, na escola, na secretaria do posto administrativo, em cada recanto possível de Quitunda, a aldeia construída de raiz para reassentar quem morava no perímetro do investimento, uma povoação novinha em folha e que só por si já acolhia 1.200 pessoas.

Ao lado fica a pista do aeródromo exclusivo do projeto de gás e a seguir estão as instalações, vedadas, com cancelas e torres de vigilância, onde representantes da população têm ido bater à porta com uma lista dos nomes de todos os que ali estão desamparados.

Para comer há quem “tente a sorte” e vá a pé, escondido, até Palma, um percurso de quatro a cinco quilómetros, para tentar encontrar sacos de arroz ou farinha, mas alguns não regressam, relata a mesma sobrevivente, que conseguiu chegar a Pemba, a capital provincial de Cabo Delgado.

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Os residentes recordam que os grupos armados atacaram na mesma altura em que chegou a Palma um barco com comida e outros mantimentos, chamariz da violência, e temem se isso não poderá acontecer outras vezes.

Mas, sem ajuda, a fome grassa e há pessoas que passam mais de dois dias sem comer. A rede de água de Quitunda deixou de funcionar. Casos urgentes de feridos, grávidas ou doentes têm sido transportados em aviões de apoio humanitário para Pemba.

Ao Observador, o jornalista moçambicano, Ricardo Machava, relatou a situação vivida em Cabo Delgado e disse que as famílias se juntam nos portos com a esperança de encontrar os familiares nos navios que chegam de Palma.

“Quando a população de Pemba toma conhecimento da chegada de qualquer navio vai a correr justamente para tentar perceber se terão chegado os seus familiares ou os seus conhecidos. Agem como se fossem baratas tontas”, disse o jornalista, que confirmou que a confusão se deve ao corte de comunicações em Palma.

No entanto, na maior parte das vezes, quem chega são os trabalhadores da fábrica de gás natural, sediada em Palma, que traçam cenários difíceis de explicar.

Viram alguns conhecidos a serem decapitados pelos terroristas. Quando [os terroristas] invadem uma zona fazem-no de uma forma o mais bárbara possível, nem dá para reproduzir”, confirmou Ricardo Machava.

Há civis que continuam refugiados nos estaleiros da fábrica de gás natural de Palma, o único sitio da zona com segurança mas outros tentam a sua sorte nas matas.

“Eu tenho relatos de algumas pessoas que já começam a chegar a Pemba com recursos próprios e que saíram de Palma, entraram e andaram pela mata dentro, e conseguiram sair nos distritos vizinhos. Uma distância de quase 100 quilómetros de caminhada”, conta o jornalista do país africano.

Quem chega a Pemba é recebido por famílias de acolhimento e há casas que chegam a ter mais de 60 pessoas. O apoio do governo moçambicano tem sido pouco. 

“Não existe uma estrutura do governo que seja provincial, que seja uma estrutura coordenada pelo governo central em Cabo Delgado, em Pemba, no sentido de dirigir as pessoas desde o momento de chegada até onde devem ser albergadas”, nota Ricardo Machava.

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Viagens de navio organizadas pela Total e pelas autoridades moçambicanas têm transportado milhares de pessoas para a capital provincial, 200 quilómetros a sul, mas outros milhares continuam em fuga e Afungi é só uma parte.

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Nem autoridades locais, nem agências humanitárias arriscaram ainda um número para o total de deslocados provocado pelo ataque de dia 24 a Palma, sede de um distrito com 62.000 habitantes – e onde outros ataques nos meses anteriores, como em Pundanhar e Quionga, já tinham colocado residentes em fuga. As comunicações móveis continuam instáveis e a rede sem fios do projeto de gás tem sido uma alternativa.

Segundo a sobrevivente, os deslocados em Afungi ficaram a saber que outros como eles morreram afogados quando fugiam pela praia que rodeia Palma, desde Qiwia, em maré baixa, ao tentar atravessar um braço de mar para Maganja, onde teriam barcos à vela.

No domingo, foi relatada a decapitação de algumas pessoas de um grupo que estava em fuga, mas que foi apanhado pelos insurgentes – que se voltaram a esconder no mato quando um helicóptero se aproximou, deixando corpos abandonados.

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O movimento terrorista Estado Islâmico reivindicou na segunda-feira o controlo da vila de Palma. Além de Afungi, a população fugiu também em direção ao norte.

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Centenas estavam na segunda-feira em Namoto, fronteira com a Tanzânia, no rio Rovuma, disse hoje à Lusa um dos integrantes do grupo que dizia que o número não parava de aumentar.

“Temos muitas crianças aqui. Muitas crianças estão a morrer no mato. Uma senhora deu [à luz] aqui e foi socorrida para a Tanzânia”, descreveu Denis Liloko, um dos integrantes do grupo que chegou a Mueda, no interior de Cabo Delgado, circulando pela margem tanzaniana.

Na altura, até 500 pessoas estariam junto à povoação ribeirinha após 50 quilómetros a pé desde Palma.

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Os residentes passam dias a caminhar, sem comida e sem água, um relato que se repetiu durante 2020 após cada grande ataque que fez do ano o mais grave da crise humanitária em Cabo Delgado – levando o número de deslocados de 156.400 para quase 700.000, quatro vezes mais. O número de total de mortos ronda os 3.000, segundo estimativas conservadoras.

OBSERVADOR