O diretor do departamento de análise da organização não-governamental (ONG) Médicos Sem Fronteiras (MSF) alertou esta segunda-feira que o conflito no norte de Moçambique, apesar de ser reconhecido internacionalmente, agravou uma crise humanitária que é negligenciada.
“Cabo Delgado pode não ser um conflito esquecido, mas é certamente uma crise humanitária negligenciada“, escreveu Jonathan Whittall num artigo publicado no site’All Africa, no qual aponta que o número de deslocados já ultrapassou os 700 mil.
Com a atenção que está a ser dada quase exclusivamente ao combate ao terrorismo, as soluções que estão a ser propostas podem mais uma vez descurar a necessidade urgente de salvar vidas e aliviar o sofrimento das comunidades afetadas pelo conflito”, acrescentou o ativista.
As razões para o conflito, afirma, “podem ser multifacetadas e complexas, mas as consequências da violência são notavelmente simples: medo, insegurança e falta de acesso às necessidades básicas de sobrevivência, incluindo comida, água, abrigo e cuidados urgentes de saúde”. A violência, alerta o responsável, está a dificultar o acesso dos trabalhadores humanitários aos locais onde são mais precisos, o que faz com que a escala da resposta humanitária seja “largamente superada pela escala das necessidades“.
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Pelo contrário, “o que parece estar a ganhar escala é o conjunto de operações antiterrorismo financiadas regional e internacionalmente, que podem ter um impacto ainda maior nas populações vulneráveis”, argumenta Jonathan Whittall.
Eu vi, em muitos conflitos, como na Síria, Iraque ou Afeganistão, como as operações de contraterrorismo podem gerar necessidades humanitárias adicionais, ao mesmo tempo que limitam a capacidade dos trabalhadores humanitários para responderem” aos desafios, alerta.
O problema, diz, é que ao classificar alguns grupos como terroristas, a atuação dos trabalhadores humanitários torna-se mais difícil, já que a ajuda passa a ser controlada pelo Estado e pelas coligações militares que o apoiam.
“A ajuda é negada, facilitada ou oferecida para aumentar a credibilidade do governo, para ganhar os corações e as mentes face à intervenção militar, ou para punir as comunidades que são acusadas de simpatizar com um grupo na oposição, e os mais vulneráveis acabam por ser penalizados por esta abordagem, e é por isso que organizações como os MSF precisam de poder trabalhar de forma independente”, argumenta Jonathan Whittall. Para este trabalhador humanitário, é nestas situações que é mais necessária a presença de organizações como os MSF.
“Nas guerras de contraterrorismo à volta do mundo muitas vezes vemos que a existência de vítimas civis é frequentemente justificada com a presença de ‘terroristas’ entre as populações, num contexto em que comunidades inteiras passam a ser consideradas hostis, o que leva a um afrouxamento das regras de combate e é nestas situações que vemos hospitais destruídos e aldeias inteiras arrasadas em ataques não distinguem alvos civis de militares”, acrescenta.
Por isso, conclui, “o foco atual no terrorismo serve claramente os interesses económicos e políticos daqueles que estão a intervir em Moçambique, mas não pode surgir à custa de salvar vidas e aliviar o imenso sofrimento que o povo de Cabo Delgado enfrenta”.
Grupos armados aterrorizam Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo jihadista Estado Islâmico, numa onda de violência que já provocou mais de 2.500 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e 714.000 deslocados, de acordo com o governo moçambicano.
As autoridades moçambicanas recuperaram o controlo da vila Palma, mas o ataque levou a petrolífera Total a abandonar por tempo indeterminado o recinto do projeto de gás com início de produção previsto para 2024 e no qual estão ancoradas muitas das expectativas de crescimento económico de Moçambique na próxima década.