Quando a proposta final chegou às mãos dos parceiros, as reações foram variadas. Desde o contentamento à total insatisfação. O PCP ficou pelo meio, em silêncio, por agora. Mas no Bloco de Esquerda, que não tem contactos com o Governo sobre Orçamento desde uma reunião na semana passada, o distanciamento é maior que nunca. O Executivo já tem guião preparado para contrariar os argumentos de insuficiência que esta terça-feira venham dos parceiros e a expectativa é que a negociação continue a rolar até à primeira votação parlamentar do Orçamento, a 27 de outubro. Mas pode já não haver caminho, em algumas frentes.
Do lado do Bloco de Esquerda, as expectativas eram (muito) baixas — e, na perspetiva do partido, numa primeira leitura do documento, confirmaram-se. Entre os bloquistas, a análise a quente do Orçamento não alterou a perceção que Mariana Mortágua tinha vindo lançar, na SIC Notícias, horas antes, em jeito de preparação do terreno, ao dizer que “nenhuma das propostas apresentadas pelo Bloco de Esquerda”, até ver, “estavam incluídas no Orçamento”.
Além de palavras duras — “o BE não deve nada ao PS e o país não deve nada ao PS”, que mostra “arrogância” e faz “chantagem” com os partidos — Mortágua fazia análises concretas: o desdobramento do IRS em dois novos escalões seria uma medida positiva, sim, mas o partido preferiria uma descida do IVA da eletricidade, um imposto “cego”; o aumento do abono de família seria de saudar, também, mas seria insuficiente para combater a pobreza.
Visto o documento, as prioridades do partido mantêm-se onde estavam: com foco no SNS e na exclusividade das carreiras, no fim do fator de sustentabilidade e o fim das leis laborais da troika. Sem sinais positivos neste sentido e sem novas reuniões com o Governo desde a ronda final pré-Conselho de Ministros, na quinta-feira, o partido não muda de posição: se nada de fundamental mudar, a inclinação será mesmo para votar contra (tal como o Observador já tinha avançado). E vai-se queixando, nos corredores do OE, de ter sido preterido nesta negociação face ao PCP.
Costa não convenceu Catarina Martins. Bloco inclinado a votar contra Orçamento
Mais positiva será a perspetiva do PAN: o partido, que já no ano passado foi peça essencial para viabilizar o documento — matematicamente, o PCP e o PEV sozinhos não conseguiriam aprová-lo — vê já nesta versão do documento reflexos das negociações e das suas prioridades. Muitas não são exclusivo do PAN — escalões do IRS, IRS Jovem, programa de redução dos passes sociais, por exemplo — mas têm o acordo do partido.
Outras são mais específicas: apoios para programas de conservação da natureza, prevenção de incêndios florestais, reforço dos vigilantes da natureza ou programas de integração das pessoas sem-abrigo são alguns exemplos.
Não é que a negociação esteja fechada — se seguir o curso dos anos anteriores, mesmo antes da fase da especialidade (do debate em detalhe da proposta, com propostas de alterações vindas das várias bancadas) deverá haver novos contactos, até para que os partidos possam viabilizar o documento já com garantias em relação à fase seguinte. Mas, até ver, o PAN já regista alguns ganhos, o PCP não abre o jogo e o BE parece cada vez mais longe de entrar nestas contas.
Governo preparado para contra-atacar queixas de insuficiência
Desde as eleições de 2019 que o alinhamento entre as várias peças da esquerda parlamentar no Orçamento do Estado se tem cosido por outras linhas. Sem as posições conjuntas que durante quatro anos deram corpo à “geringonça” não há propriamente um guião para este tipo de negociações, mas elas ocorrem e ocorreram na elaboração deste Orçamento e o Governo prepara-se para apontar algumas medidas como ganhos dos parceiros, na medida em que também eles as defenderam em campanha. O desdobramento de escalões do IRS é uma delas e a outra é o englobamento obrigatório das mais-valias para o último escalão de rendimentos — embora nenhuma delas tenha sido propriamente uma prioridade estabelecida pelos parceiros, pelo menos na forma como aparecem concretizadas na proposta final.
A “aposta nos serviços públicos”, pelo “fortalecimento do SNS” e “o programa de recuperação de aprendizagens” são outros dois argumentos a usar junto dos parceiros à esquerda, bem como o “reforço da proteção social”, com os apoio aos cuidadores informais, mais um aumento extraordinário de pensões (embora não chegue logo em janeiro, como há um ano, mas apenas em agosto, como nos anos anteriores) e a atualização geral das pensões. A isto soma-se mais um aumento do salário mínimo nacional e, claro o aumento da função pública.
Este último é apontado no Governo como um dos sinais de cedência aos parceiros, nomeadamente ao PCP. O desbloqueio do aumento geral da função pública, ao nível da inflação (0,9%), no próximo ano, ao contrário do que tinha vindo a admitir, surgiu à ultima hora, e precisamente quando o primeiro-ministro fazia a ronda final (pelo menos ao mais alto nível) com os parceiros dos últimos anos, no âmbito da negociação orçamental, na passada quinta-feira à noite, já depois do debate parlamentar onde participou Costa. Uma carta de peso jogada numa hora mais decisiva.
Desde 2019 que António Costa só precisa de um dos dois maiores parceiros para viabilizar o Orçamento e foi com essa nova geometria parlamentar já em marcha que deixou de contar com os dois ao mesmo tempo: no Orçamento Suplementar de 2020, o PCP saltou fora e no Orçamento do Estado para 2021 foi o BE que desistiu, logo na generalidade (a primeira votação da proposta do Governo), de dar o seu apoio ao Governo.
Na semana passada, depois de reuniões com todos os partidos com assento parlamentar para apresentar as linhas gerais do Orçamento, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares Duarte Cordeiro prometia que as negociações decorreriam até à votação na especialidade. Nesta altura o Governo não dá nada por fechado e aguarda para ver o que dirão os partidos nas reações à proposta final entregue no Parlamento. Convicto que o OE entregue dá sinais políticos que vão ao encontro das expectativas dos partidos o Governo sabe que esta caminhada não termina com a entrega do documento.
Não só ainda há acertos que pode acordar para o debate mais em detalhe do Orçamento, na especialidade, como — mediante o grau de compromisso que tiver dos partidos — tem ainda matérias extra-orçamentais que pode ir pondo em cima da mesa das negociações. Mas pelo meio tem a dura prova da especialidade e o próprio primeiro-ministro, na qualidade de líder do PS, já sinalizou quanto isso o preocupa.
Quando no passado sábado o partido se reuniu na Comissão Nacional, Costa carregou nas tintas da necessidade de “contas certas”, repetiu-o em vídeo esta segunda-feira e o seu ministro das Finanças fez o mesmo quando entregou o OE. É o Governo já a pensar nas coligações negativas para as suas pretensões no debate na especialidade, já que elas podem trazer problemas para as contas que faz do lado da despesa pública, comprometendo objetivos orçamentais. De problema em problema até ao problema final.