“O que aproxima os consagrados de hoje?”, perguntou Marcelo Rebelo de Sousa, referindo-se às figuras históricas que desde o 25 de Abril de 1974 têm o Panteão Nacional como última morada. Perguntou e respondeu: “Mudaram a história de Portugal e projetaram Portugal no universo. Aristides de Sousa Mendes mudou a história de Portugal e projetou Portugal no mundo. Mudou a história de Portugal nesse momento trágico chamado genocídio em plena Guerra Mundial, na perseguição de comunidades que haveria de acabar em Holocausto. Projetou Portugal no universo, em Jerusalém, na Europa, nas Américas, em África, nas Ásias, onde quer que haja descendentes daqueles que ajudou a salvar.”
Assim disse o Presidente da República, no discurso de homenagem a Aristides de Sousa Mendes, esta manhã, durante uma cerimónia de concessão de honras ao antigo diplomata português, no Panteão Nacional, em Lisboa, a qual culminou com o descerrar de uma lápide evocativa.
“Aqui entrou Aristides de Sousa Mendes e aqui permanecerá até ao fim dos tempos, se os tempos tiverem fim. Não há raças, etnias, religiões, culturas, civilizações, que sejam umas mais do que outras, que não mereçam todas o mesmo respeito. Que se sucedam ou não os modismos de cada época, os valores essenciais não mudam. Aristides de Sousa Mendes serviu com coragem extrema, provação pessoal e familiar e exemplar humildade esses valores na sua mais notável expressão. Portugal, eternamente grato, o recorda e homenageia”, acrescentou Marcelo Rebelo de Sousa.
O hino nacional pelo coro do Teatro Nacional de São Carlos tinha iniciado a cerimónia. A RTP1 assegurou a transmissão em direto. No elogio fúnebre que se seguiu, a historiadora Margarida de Magalhães Ramalho afirmou ser “um dia muito feliz”. Recordou “um homem que durante décadas foi votado ao esquecimento”. “No entanto, milhares de pessoas devem-lhe a vida e milhares de pessoas puderam existir graças a ele”, começou por dizer.
“No lugar certo, à hora certa, o homem certo”
Margarida de Magalhães Ramalho afirmou tratar-se de “um dia muito feliz”. “Se é preciso coragem para acatar ordens com que não concordamos, mais difícil é seguramente seguir a consciência e não as cumprir”, disse, em alusão aos vistos que Aristides de Sousa Mendes assinou em junho de 1940 enquanto cônsul de Portugal em Bordéus e que permitiram a milhares de judeus escapar ao nazismo.
Margarida de Magalhães Ramalho — que é também responsável pelo museu Fronteira da Paz, Memorial aos Refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes, localizado em Vilar Formoso (distrito da Guarda) — apresentou um resumo histórico do percurso do diplomata e do contexto político da época. Destacou que Salazar, ministro dos Negócios Estrangeiros em 1940, “iria, sem o suspeitar e seguramente sem ser essa a sua intenção, colocar no lugar certo, à hora certa, o homem certo”, quando indicou Aristides para cônsul em Bordéus.
Lembrou ainda que a chegada de Hitler ao poder, em 1933, deu início às “perseguições aos opositores políticos, aos homossexuais, aos deficientes físicos e mentais e aos judeus.” “Entre fome, trabalho escravo, fuzilamentos em massa, campos de extermínio, terão morrido até 1945 seis milhões de judeus, 250 mil ciganos, 250 mil portadores de doenças físicas e mentais, três milhões de prisioneiros russos, sete milhões de civis soviéticos, dois milhões de civis polacos, 300 mil civis sérvios, um número na casa dos milhares de opositores políticos, membros da resistência alemã e dos países ocupados, homossexuais, católicos e testemunhas de Jeová.”
O discurso, de cerca de 15 minutos, foi aplaudido pelas centenas de convidados, entre os quais se encontravam vários membros do Governo e deputados, além de descendentes diretos de Aristides de Sousa Mendes, 81 dos quais estão vivos. Seguiu-se nova atuação do Coro de São Carlos, com um excerto do requiem de Fauré, e uma exibição de um vídeo com testemunhos sobre Aristides — vídeo baseado num documentário que Diana Andrina e Teresa Olga criaram em 1993 para a RTP.
“Legado de altruísmo, empatia e liberdade deve ser mais do que nunca lembrado”
“São muito raras as pessoas que na hora decisiva, face a situações concretas, arriscam comprometer a sua segurança e a sua liberdade, ou a da sua família, com o único propósito de ajudar os outros. Aristides de Sousa Mendes foi uma dessas pessoas”, lembrou depois o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, que também discursou.
“Oficialmente têm sido muitas as homenagens a Aristides de Sousa Mendes e no estrangeiro esse reconhecimento chegou mais cedo. Hoje, o exemplo de Aristides de Sousa Mendes continua a ecoar mundo fora. O seu legado de altruísmo, empatia e liberdade deve ser mais do que nunca lembrado”, continuou. “Mas é triste que o seu exemplo não tenha ficado suficientemente enraizado”, referiu, apontado o dedo a antissemitas e negacionistas do Holocausto. “Foi figura maior do século XX português. Que o exemplo da sua conduta sirva de farol. Que a sua entrada no Panteão Nacional contribua para perpetuar a sua memória”.
No fim, à margem da cerimónia e em declarações aos jornalistas, António Costa afirmou que “esta é uma consagração final muito importante para os tempos que correm”.
“As perseguições não acabaram com a II Guerra Mundial nem a necessidade de assegurar proteção internacional terminou com aquele período. Infelizmente, a história tem-nos demonstrado que aquilo com que Aristides de Sousa Mendes foi confrontado continua a ser uma realidade de hoje”, apontou o chefe do Governo. “Por isso, é muito importante que estes valores sejam lembrados, como homenagem devida aos atos que foram praticados no devido tempo mas também como inspiração para o que devemos continuar a fazer. O que está em causa é a proteção da dignidade da pessoa humana, da proteção das vidas, daqueles que buscam salvação”, acrescentou, antes de responder a perguntas sobre o Orçamento do Estado e a situação do país.
“Justo entre as Nações”, lê-se na lápide
A homenagem começou poucos minutos antes das 11h00, com a chegada à Igreja de Santa Engrácia de Ferro Rodrigues, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa — por esta ordem, como estava previsto no protocolo. Eram visíveis poucas pessoas no exterior do edifício. O público não foi autorizado a entrar no Panteão, devido a restrições relacionadas com a pandemia, segundo a organização.
A cerimónia no Panteão Nacional, ou Igreja de Santa Engrácia, localizado no Campo de Santa, junto ao bairro de Alfama, deu-se na nave central, zona do edifício conhecida pela decoração de mármores coloridos, característica da arquitetura barroca portuguesa. É ali que se encontram os cenotáfios (sepulturas simbólicas) de Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, Vasco da Gama e Luís de Camões.
O culminar foi o descerrar de uma lápide, quando passavam poucos minutos do meio-dia, na sala 2 do Panteão, onde estão os túmulos de Aquilino Ribeiro, Humberto Delgado, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eusébio da Silva Ferreira.
“Aristides de Sousa Mendes – 1885-1954 – Justo entre as Nações – diplomata”, lê-na na lápide em letras maiúsculas douradas, na parede ao fundo da sala, que estava tapada com a bandeira portuguesa e foi descerrada por Ferro Rodrigues e Marcelo Rebelo de Sousa. Não se tratou da instalação de um cenotáfio nem da trasladação dos restos mortais do antigo cônsul, que continuam no jazigo de família em Cabanas de Viriato (Carregal do Sal, Viseu), onde Aristides nasceu a 19 de julho de 1885.
A homenagem foi organizada por um grupo de trabalho coordenado pelo deputado socialista Pedro Delgado Alves. A origem da homenagem remonta a novembro 2019, quando a então deputada pelo Livre Joacine Katar Moreira apresentou na Assembleia da República um projeto de resolução para “concessão de honras do Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes”, o qual foi aprovado em julho do ano passado com votos favoráveis de todos os deputados, menos de André Ventura, do Chega, que se absteve.