A doença é rara, mas já todos ouvimos falar sobre ela. E muitos até já a vimos em direto, em situações de um dramatismo que impressiona. Um dos exemplos mais mediáticos – que continua gravado na memória de muitos benfiquistas, aconteceu há 17 anos: a 25 de Janeiro de 2004, Miklos Fehér caiu inanimado no relvado do Estádio Dom Afonso Henriques, em Guimarães, em pleno jogo entre as equipa do Vitória e do Benfica.
Causa da morte: cardiomiopatia hipertrófica, uma doença hereditária do coração. Foi pelo menos essa uma das principais suspeitas da morte súbita do jovem jogador húngaro ao serviço dos encarnados.
A doença é genética e isso tem levado muitas instituições desportivas internacionais a solicitarem testes aos seus jogadores. Mas sabe-se que os testes genéticos de diagnóstico são incapazes de identificar entre 30% a 60% das pessoas com mutações. Além disso, há um problema maior: mesmo que haja um diagnóstico, não há uma cura.
O grande desafio é encontrar um tratamento [para a cardiomiopatia hipertrófica]. Há alguns que controlam os sintomas, mas nenhum é dirigido à causa da doença”, explica a cientista Maria Carmo-Fonseca, que investiga este problema há vários anos.
Há centenas de genes envolvidos na contração do músculo cardíaco e basta um erro num deles para o coração não funcionar como devia. Mas um erro genético não é necessariamente uma sentença fechada. “Há muita variabilidade. Ter um gene alterado não é absolutamente determinístico no padrão de evolução da doença”, explica. “O ambiente influencia muito os nossos genes e a mesma doença, causada pela mesma mutação pode ter uma evolução diferente em pessoas diferentes.”
Assim, a vida dos portadores pode seguir três caminhos, esclarece Carmo-Fonseca: alguns, com o tratamento sintomático, conseguem ter bastante qualidade de vida; outros têm uma evolução muito rápida da doença e a única solução é um transplante cardíaco, sem o qual não sobrevivem; por fim, há aqueles que nem sequer estão identificados como doentes – porque nunca tiveram nenhum sintoma – e cuja primeira manifestação da doença é uma paragem cardio-respiratória súbita. Frequentemente mortal.
Maria Carmo-Fonseca é uma das mais consagradas cientistas portuguesas. A lista completa de galardões, prémios, distinções e medalhas que já recebeu enchem muitas páginas. Mas, dos mais importantes, destacam-se o facto de ter sido a primeira mulher cientista a receber individualmente o Prémio Pessoa, a primeira portuguesa a assumir a liderança da RNA Society, um Prémio Gulbenkian de Ciência e a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde. É presidente do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), onde coordena o laboratório RNA e Regulação Génica, no qual trabalham mais de quarente investigadores.
Para grande sorte dos portadores de cardiomiopatia hipertrófica, Carmo-Fonseca interessou-se pela doença e está apostada em descobrir o que falta: um tratamento eficaz. Passou boa parte da vida a fazer investigação fundamental na área biomédica – que se foca em descobrir os mecanismos básicos de funcionamento biológico do nosso corpo. E este é o seu primeiro projeto translacional – que pretende aplicar esse conhecimento adquirido para resolver um problema concreto.
O interesse surgiu-lhe porque a causa da doença está relacionada com o splicing do RNA. Ora, isso é aquilo que Carmo-Fonseca passou toda a vida a estudar. “Muito inspirada em tratamentos que surgiram entretanto para outras doenças órfãs, como a atrofia muscular espinal, em que se faz uma terapia que modula o splicing, achei que podia aplicar os meus conhecimentos de ciência fundamental para corrigir o defeito genético que causa esta doença cardíaca”.
Para perceber o que é splicing é preciso uma pequena digressão sobre os vários níveis de informação genética que existem no corpo humano. O primeiro nível é o das moléculas de ADN. O nosso genoma, esclarece, “funciona como um armazém de toda a informação, mas não faz nada.” O que, de facto, faz o músculo contrair e o coração bater, explica a cientista, são as proteínas. “E entre o ADN e as proteínas há uma outra molécula, o RNA mensageiro (mRNA), que descodifica a informação do ADN e, como o nome indica, é um mensageiro entre ele e as proteínas.
Faz lembrar a figura de um carteiro, a distribuir correspondência – cartas com instruções de produção – entre o local de armazenamento e cada um dos destinatários. Mas este mensageiro não é como os carteiros normais, que se limitam a entregar as cartas porta-a-porta. “Ele introduz algumas alterações no processo, altera ligeiramente a informação, não entrega as cartas exatamente como as recebeu.” E é esta manipulação de informação que faz o carteiro – o mRNA – que se chama splicing.
“O que nós descobrimos no nosso laboratório é que as mutações que estão no ADN nos doentes com esta doença cardíaca vão baralhar o carteiro, que passa a entregar cartas com instruções erradas.” Então, em vez de tentarem corrigir o erro na origem, o gene, vão tentar corrigi-lo mais à frente no processo: no carteiro confuso, que entrega instruções erradas. O que pretendem fazer é “tentar dar-lhe uma ajuda para ele conseguir fazer o processamento bem feito”, continua a investigadora. “É um tratamento que vai atuar a nível do RNA mensageiro, ou seja, só se vai corrigir a instrução, não a informação armazenada.”
A vantagem desta opção é que não interfere com o nosso genoma. Apesar de existirem várias terapias genéticas em uso, há sempre algum receio que uma alteração num gene possa causar efeitos adversos não desejados. “As terapias com RNA mensageiro, desse ponto de vista, são, na generalidade, mais seguras.” Mas também tem desvantagens. “Não basta fazer um único tratamento, tem de se ir repetindo: como a informação armazenada continua a estar errada, é necessário ir fazendo um reforço.”
O grande objectivo do projeto – para o qual obteve um financiamento da Fundação “la Caixa” – é tentar mostrar que uma intervenção ao nível do splicing é suficiente para corrigir a instrução errada, permitindo às células cardíacas passar a funcionar normalmente. Para isso, será necessária uma prova de conceito – a demonstração, pela primeira vez, que isso é possível – antes de passar à fase clínica da investigação, já em colaboração com a indústria farmacêutica, e envolvendo ensaios clínicos em pacientes.
Como não podem usar corações de doentes, para fazer esta prova de conceito, usam uma tecnologia extraordinária que faz com que as células andem para trás no tempo e na sua história: retiram uma pequeníssima quantidade de pele dos pacientes com esta patologia, colocam-nas em cultura no laboratório e reprogramam-nas para voltar atrás no tempo, tornando-se de novo células embrionárias. “Nessa altura, têm então essa característica espantosa de se transformar em células de qualquer órgão, por isso damos-lhes instruções para se transformarem em células do coração e criamos conjuntos de células cardíacas, que batem como se fossem um verdadeiro coração.” É nesta cultura celular que são feitos os primeiros ensaios e, nesta fase do projeto, já viram que as células dos doentes são doentes e as das pessoas saudáveis são saudáveis. “Provaremos que o tratamento funciona quando, ao intervir sobre o splicing das células doentes, elas voltarem a adquirir características normais.”
Carmo-Fonseca tem o seu nome gravado em importantes avanços científicos nesta área. E recorda que todo o seu percurso na investigação do splicing foi marcado por um momento, em parte ocasional, quando era estudante de pós-doutoramento no Laboratório Europeu de Biologia Molecular, em Heidelberg, na Alemanha. Um colega especialista em química tinha desenvolvido novas moléculas que se ligavam a pequenos RNA e a investigadora resolveu adaptar uma técnica de microscopia para visualizar a sua distribuição dentro das células. Quando espreitou pelo microscópio, deu de caras com umas estruturas desconhecidas dentro do núcleo da célula. Nunca ninguém tinha visto nada assim. Então, mudou o seu projeto para se dedicar a estudá-las. “Essas estruturas contêm a maquinaria molecular que faz o splicing. Esta máquina é composta por um conjunto de proteínas e RNAs que se chama spliceossoma, e o que vi são as zonas dentro do núcleo onde os componentes do spliceossoma se concentram.” Tinha visto o carteiro pela primeira vez.
“Mas uma coisa é ver o carteiro, outra é vê-lo a entregar a carta”, continua. Anos depois, conseguiu fazer isso, também pela primeira vez, em colaboração com a Harvard Medical School: tornar o carteiro visível ao microscópio, em pleno processo de entrega das cartas dentro do núcleo da célula. “Foi outro momento absolutamente fascinante e muito reconhecido pela comunidade científica. O próximo desafio foi passar a vê-los todos, em vez de apenas um. Em colaboração com um laboratório da Universidade de Oxford desenvolvemos um novo método para ver todos os carteiros dentro do núcleo, a distribuir as cartas. Foi um grande sucesso científico”.
O entusiasmo com que Carmo Fonseca relata estas descobertas denota a concretização de uma ambição antiga. Aos 18 anos escolheu o curso de Medicina porque gostava das disciplinas relacionadas com ciências e sentia-se fascinada em perceber como funcionavam os organismos vivos.
Foi natural apaixonar-me pela investigação fundamental muito cedo no meu curso, até porque quem quer ser médico, quer tratar pessoas, mas, para tratar é preciso descobrir novos tratamentos. Estar perante um doente com uma doença intratável é uma grande frustração.”
Apesar da sua inclinação natural, a investigadora aponta David Ferreira, seu professor de Biologia no primeiro ano como, em parte, responsável por ter tomado esta decisão. “Desde aí, a biologia foi uma paixão que nunca mais me abandonou.” David Ferreira, que havia de ser o seu mentor, tinha um segredo para dar as aulas. “Não nos descrevia apenas como as células funcionavam, contava-nos a história dos investigadores que descobriam como é que a células funcionavam.” Isso mudou a sua perspectiva da estudante sobre a ciência. “Percebi que eram pessoas como nós, como eu, que estavam a fazer as descobertas que depois líamos nos livros de texto. Isso foi fascinante.” Hoje, está do outro lado e concretizou essa ambição: faz as descobertas que os estudantes leem nos livros.
Depois há também a sensação única de ver algo que nunca tinha sido visto, de perceber o que nunca tinha sido percebido. “ É isso que me faz mover todos os dias.” Na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, onde é docente, faz questão de tentar ser para os seus alunos o que David Ferreira foi para si. “Estimulo muito os alunos a irem para o laboratório e acompanharem projetos de investigação. Para eles sentirem o prazer de fazer investigação e chegar a resultados.”
As palavras “paixão”, “fascínio” e “prazer” não surgem por acaso. À pergunta “Quantas horas por dia trabalha?”, Carmo-Fonseca responde com “Isto não é trabalho”. “Eu não sei dizer quando é que acaba o meu trabalho. Em tudo o que eu faço durante o dia, mesmo que não seja conscientemente uma atividade de trabalho, [pausa] eu estou a pensar. Não faço essa distinção entre trabalho e não trabalho. Ser cientista faz parte da minha vida.” De resto, refere que é depois de momentos em que está a fazer desporto ou a relaxar com amigos que lhe surgem ideias novas.
Acredita que há uma coisa comum a todos os cientistas: “somos como crianças que seguem o seu sonho.” E como as crianças, “o mundo pode desabar à nossa volta, mas estamos tão empenhados que tudo o resto, enfim, acontece, mas não é o mais importante.” O importante é esse desejo enorme de encontrar qualquer coisa, de ir atrás do que ficou por responder da última experiência. “É infinito: o processo científico nunca acaba.”
Dito isso, não é de estranhar que levante as sobrancelhas e ria quando ouve falar na palavra “reforma”. “Não me tenciono reformar”, esclarece a investigadora de 62 anos. “Ser cientista é algo que farei enquanto me sentir capaz. E tenho imenso exemplos de colegas que já atingiram a idade da reforma e continuam totalmente ativos.” Porque as crianças não se reformam de sonhar.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto RNA Mis-Splicing in Hypertrophic Cardiomyopathy: Opportunities for Diagnosis and Therapy, liderado por Maria Carmo-Fonseca, do IMM, foi um dos 25 selecionados (6 em Portugal) – entre 602 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do Concurso HealthResearch. A investigadora recebeu 987 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação em Saúde e as candidaturas para a edição de 2022 encerram a 25 de novembro.