Na psicologia há um debate clássico sobre o comportamento humano que se pode condensar na expressão “inato versus adquirido”. Resume-se assim: tornamo-nos naquilo que somos e comportamo-nos como comportamos por causa da nossa natureza genética ou em consequência da interação com o ambiente que nos rodeia? No cancro esta questão também existe e, tal como na discussão sobre o comportamento humano, a verdade está quase sempre a meio caminho entre os dois pólos.
Um cancro tem uma história. A célula que hoje é maligna foi um dia saudável. Até que deixou de ser. Os erros genéticos explicam parte desse caminho de transformação: sabe-se que algumas células nascem predestinadas para vir a degenerar um dia e essa informação está gravada no seu ADN. Mas isso é só parte da história. A outra parte é a interação com o ambiente, a forma como aquilo que tem à volta lhe molda o comportamento e também a torna no que é.
Apesar de o cancro ser originado por erros que são, na sua essência, de natureza genética, não se limita a isso. A célula evolui até se tornar maligna em diálogo com o seu microambiente: o que é que ela ‘vê’? O que é que ela ‘ouve’?”, pergunta João Taborda Barata, investigador principal no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), em Lisboa.
No laboratório de Sinalização em Cancro, que dirige, o cientista procura estudar como o ambiente transforma a célula. Interessam-lhe, em particular, as vias de transdução de sinal, ou seja, “os mecanismos moleculares que permitem que uma célula perceba o seu microambiente e traduza o que está em seu redor num determinado tipo de resposta.” Esta interação é muito importante para a sobrevivência e comportamento da célula – tanto da saudável, como da tumoral.
Nas últimas décadas João Barata tem-se dedicado sobretudo aos cancros do sangue, mais especificamente as leucemias. O estudo do cancro do pulmão é “uma aventura nova”. Mas, mais do que uma aventura, é uma ode às possibilidades da investigação fundamental: responder a uma pergunta leva sempre a uma nova pergunta, criando uma cadeia infinita de novas hipóteses e descobertas. Neste caso, ao perceber os mecanismos envolvidos no desenvolvimento de tumores hematológicos, surgiu a hipótese de que os mesmos mecanismos talvez pudessem ser relevantes em tumores sólidos, como o cancro do pulmão.
Em causa está a molécula interleucina 7 (IL7) e o seu receptor (IL7R). O investigador estuda-as há muito tempo e concluiu que têm um papel essencial na progressão das leucemias, particularmente, na leucemia linfoblástica aguda. “A IL7 é produzida em diferentes órgãos e por diferentes tipos celulares, sendo o eixo IL7-IL7R imprescindível para o desenvolvimento de linfócitos T, que são essenciais para o sistema imune funcionar”, explica o investigador. Acontece que, exactamente porque são essenciais para a viabilidade e proliferação das células, a IL7 e o IL7R podem ter “um lado negro” e contribuir para a progressão de leucemias. “Precisamente naquelas que têm a origem em linfócitos e que, em vez de proliferarem de forma normal, proliferam de forma massiva transformando-se num tumor.”
O investigador – que recebeu a esse propósito o prémio de investigação fundamental da Pfizer este ano (2021) – demonstrou que a IL7 acelera o processo de expansão tumoral da leucemia linfoblástica aguda e também que dez por cento dos pacientes pediátricos apresenta mutações no receptor da IL7 (IL7R), que levam à ativação permanente de determinadas vias de transdução de sinal. É como se houvesse um interruptor, que em vez de ir ligando e desligando, está permanentemente para cima, abrindo caminho à viabilidade e proliferação das células malignas. Mas foi então que João Barata começou a cogitar: “Se o receptor da IL7 – tão importante para o sistema imune – pode agir como oncogene em tumores hematológicos, poderá fazer o mesmo com tumores sólidos?”
A pesquisa preliminar devolveu-lhe um promissor “sim”, sobretudo no caso do cancro do pulmão. “Os dois principais subtipos de cancro de pulmão de células não-pequenas, o adenocarcinoma e o carcinoma epidermóide ou escamoso, estão entre os tumores sólidos com maior expressão de IL7R nas células tumorais”, diz o investigador. Além disso, há dados de ensaios clínicos que mostram que, no cancro do pulmão metastático, a expressão aumentada do receptor da IL7 está associada a um mau prognóstico. “Isto não prova nada, mas são associações que mostram que parece haver aqui alguma coisa que bate certo com a nossa hipótese.”
O projeto que tem em curso foca-se nesse hipótese e em três objetivos: demonstrar que o IL7R é um oncogene que promove o desenvolvimento de cancro do pulmão; perceber se a expressão do receptor da IL7 nas células tumorais pode conferir resistência ao tratamento com inibidores de checkpoint imunológico (uma classe de medicamentos de imunoterapia que tem revolucionado o tratamento de alguns tipos de cancro do pulmão); e, por fim, desenvolver estratégias terapêuticas dirigidas especificamente a este alvo – o receptor da IL7 nas células tumorais –, impedindo que elas o usem para se evadirem à resposta anti-tumoral do sistema imunitário.
Com a duração de três anos – e com um financiamento da Fundação “la Caixa” ao abrigo do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde –, o projeto tem como parceiros investigadores do Hospital Universitário 12 de Outubro e do Centro Nacional de Investigação em Oncologia (CNIO), ambos em Madrid.
João Barata nasceu em Coimbra mas já palmilhou muito mundo. Começou ainda pequeno, quando os pais se mudaram para Angola, onde viveu entre os 3 e os 6 anos. Quando regressou a Portugal, viveu em Lisboa, passando depois por várias cidades do interior do país até aos 12 anos, quando regressou a Coimbra, onde veio mais tarde a ingressar na universidade. Foi para o curso certo pelas razões erradas. “Tinha uma visão muito romântica de ciência. Imaginava-me como o David Attenborough, a explorar o planeta. Por isso fui para Biologia.” Sobreveio a realidade e foi-se essa fantasia: percebeu que não queria ser um cientista de campo, mas de laboratório.
Em 2003, foi um dos primeiros doutorados em Ciências Biomédicas pelo programa GABBA, da Universidade do Porto, depois de fazer investigação, por vários anos, no Instituto Dana-Farber, da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard, em Boston (EUA). Entre 2003 e 2006 fez o pós-doutoramento no iMM, tendo desenvolvido trabalho no Instituto Pasteur, em Paris, e no Centro Médico da Universidade de Utrecht, nos Países Baixos.
João Taborda Barata é só um, mas divide-se em dois. O João Barata faz investigação em cancro durante o dia. O João Taborda faz música durante a noite – atualmente com a banda rock Tricycles, nascida em 2014, que conta com mais dois investigadores do iMM na formação. Mas o percurso musical começou há mais de 22 anos, com o primeiro concerto da dupla António Olaio & João Taborda.
A música – faz questão de deixar claro – não é um mero passatempo. “Embora nunca a tenha seguido de forma profissional, também não me considero um amador. A intensidade, o prazer e a dedicação fazem da música mais do que um hobby. E, sendo imodesto, a qualidade do que fazemos também.” Basta ouvir para ver que não é imodéstia. “O prazer não é apenas tocar, mas criar música.” Fazê-la nascer. É do seu piano e da sua guitarra acústica que saem parte das composições originais da banda.
Quando está a pensar ou a escrever, a música também está presente em pano de fundo. Pouco antes do início da entrevista, o investigador de 51 anos escutava no gabinete as Bachianas Brasileiras, de Heitor Villa-Lobos. “Algum trabalho é compatível com alguma música”, esclarece. Não tem que ver só com o tipo de música – também pode estar a ouvir Radiohead ou The National. O critério é que a conheça bem. Como qualquer audiófilo, quando está a ouvir uma música pela primeira vez, está a fazer apenas isso. “Há uma música certa para cada momento. E seria impossível escutar uma música nova enquanto trabalho. Isso exigiria uma capacidade de multitasking que não tenho.”
Há um momento em que se sente pequeno e muito humilde: quando é abordado por pacientes com cancro. O seu lado idealista acredita que o conhecimento que gera vai fazer diferença, um dia. O lado mais prático sabe que o impacto na vida das pessoas, por agora, é limitado. “Geramos informação que será a base dos novos tratamentos, mas são coisas que demoram anos a chegar ao mercado.” Mas chegarão, um dia. A esperança do investigador é que o estudo da interleucina 7 (IL-7) que está a fazer hoje, possa dar origem a mais um tratamento para o cancro de pulmão, no futuro. E assim mudar a vida de muitos (futuros) pacientes.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto IL7R in Lung Cancer Development, Metastasis and Resistance to Immune Checkpoint Inhibitor Therapy, liderado por João Barata, do IMM, foi um dos 30 selecionados (12 em Portugal) – entre 644 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do Concurso Health Research. O investigador recebeu um milhão de euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação em Saúde e as candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 25 de novembro. Os prazos para a edição de 2023 deverão ser conhecidos no verão.