A defesa de João Rendeiro invocou esta quarta-feira várias razões para que o juiz Rajesh Parshotam deixe o antigo banqueiro em liberdade enquanto decorre o processo de extradição. Mas alguns dos argumentos invocados no tribunal sul-africano contradizem aquilo que disse em entrevista à CNN e ao Tal&Qual em finais de novembro. Uma entrevista que foi entretanto traduzida para inglês e que já está na posse do tribunal.

O advogado Sean Kelly disse que João Rendeiro estava “pobre”, tendo pouco mais de 700 euros para gastar na sua estada e apenas duas contas bancárias, uma na África do Sul e outra nos Estados Unidos. A defesa pediu ao tribunal que Rendeiro fique em liberdade, pagando uma caução de 2.190 euros e com obrigação de apresentações periódicas às autoridades. Explicou que em plena pandemia, as cadeias são focos de disseminação da Covid-19 e que Rendeiro, que tem 69 anos, até toma medicação. Entre os vários argumentos de defesa, disse também que o antigo líder do BPP é casado e que a mulher pensava juntar-se a ele naquele país.

Há, no entanto, pelo menos dois argumentos na sua defesa que contrariam em toda a linha a entrevista que deu em finais de novembro à CNN. E uma dúvida: usava ou não tecnologia de ponta?

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A 1.ª contradição: Maria não queria sair da “sua conchinha”, agora já queria juntar-se a ele

Perante o juiz do Tribunal Verulam Magistrates, na África do Sul, Rendeiro lembrou ter uma mulher que pretendia juntar-se a ele naquele país, para provar em tribunal que tem uma família estável. No entanto, Maria de Jesus Rendeiro encontra-se neste momento em prisão domiciliária na vivenda do casal na Quinta do Patino, em Alcabideche (uma das casas arrestadas).

Maria de Jesus Rendeiro enfrenta também ela um processo-crime por descaminho das obras de arte apreendidas ao marido, num processo em que está também a ser investigado o crime de branqueamento e que envolve outros arguidos como a família Florêncio. Na entrevista que deu à CNN e ao Tal e Qual na última semana de novembro, Rendeiro chegou mesmo a emocionar-se ao falar da mulher. “Sinto-me responsável e sinto que ela em larga medida está a sofrer por minha causa. Parece-me claro que a justiça não me tendo apanhado a mim, apanhou a Maria. O MP não tem uma única prova que ligue a Maria ao descaminho”, disse.

E não deixou qualquer hipótese para os dois voltarem a juntar-se. “Ela podia sair de Portugal em tempo oportuno, mas ela sempre rejeitou essa oportunidade, não gosta de viajar, gosta do seu cantinho, da sua conchinha, sobretudo dos seus três grandes amores com os quais eu não consigo competir, que são as três cadelinhas, a Joana, a Clara e a Boneca”, afirmou.

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Maria de Jesus Rendeiro chegou a ser ouvida em tribunal e afirmou que o marido estava na África do Sul, embora não soubesse onde. Uma informação que na altura não teve aparente relevo, mas que a Polícia Judiciária diz que veio apenas corroborar a informação que já tinha, como explicou o diretor da PJ, Luís Neves, na conferência de imprensa que ocorreu sábado, depois da detenção de Rendeiro.

Desconhece-se se Maria de Jesus Rendeiro mudou entretanto de ideias e de que forma terá comunicado com o marido. Certo é que o argumento usado perante o juiz em nada coincide com a entrevista que deu.

Maria de Jesus e João Rendeiro estão juntos desde os 17 anos — são casados há 49 –, mas a mulher não o acompanhou na fuga. No âmbito do desaparecimento das obras de arte de Rendeiro, das quais era fiel depositaria, Maria de Jesus foi condenada a pagar mil euros por “atuação excecionalmente grave” e incumprimento dos deveres.

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A 2.ª contradição: Rendeiro é um homem “pobre”, quando antes gastava entre 3 a 5 mil euros

Na audiência desta quarta-feira, que decorreu depois de vários adiamentos e peripécias, a defesa do antigo líder do BPP também se bateu pela alegada falta de condições económicas do cliente. Alegou que Rendeiro era “pobre”, que tinha apenas uma  uma conta bancária em África e outra nos Estados Unidos, enquanto os seus bens em Portugal estavam todos arrestados. Certo é que no processo em que foi condenado a dez anos de cadeia, os advogados que representam a massa insolvente do BPP já quiseram saber quanto tem afinal Rendeiro nas suas contas que foram arrestadas, suspeitando que possa haver património fora das contas identificadas.

João Rendeiro, segundo a PJ, tem ficado sempre em luxuosos hotéis desde que saiu do Reino Unido a 14 de setembro e se instalou na África do Sul, primeiro em Joanesburgo — ainda antes de ser alvo de dois mandados de detenção internacional. O seu advogado diz agora que ele trazia pouco mais de 700 euros para gastar na África do Sul. Diz mesmo que ele “é pobre”.

Esta não foi também a informação que deu aos jornalistas quando foi entrevistado. Sem divulgar o local onde estava, afirmou conseguir viver com “três” a “cinco” mil euros por mês, não tendo qualquer restrição. Muito menos se queixou de estar pobre. “Tenho uma vida normal, não conseguia estar preso fora do meu país”, disse.

Faço uma vida perfeitamente normal, como em Lisboa ou em Cascais. Saio à rua, vou à praia, ao ginásio, não uso peruca, nem nunca andei de rabo de cavalo”, referiu.

João Rendeiro acrescentou ainda que vivia do seu trabalho”, fechando contratos com empresas internacionais: “Ainda há pouco tempo num contrato de 500 milhões de dólares [cerca de 445 milhões de euros]”, disse. Desconhece-se para já se foi esse contrato que lhe conferiu um visto de residência, uma vez que de acordo com o site do governo sul africano existem critérios diversos para a obtenção deste visto e um dos argumentos do Ministério Público em tribunal é que Rendeiro não tinha qualquer património naquele país.

Rendeiro quer pagar caução de 2.190 euros para ficar em liberdade

A dúvida: Rendeiro usou ou não tecnologia de ponta para ocultar paradeiro?

Outra das questões que se levantaram refere-se à tecnologia de ponta. Segundo os jornalistas que o contactaram, Rendeiro impôs condições para a forma de comunicar. Falou por videochamada com tecnologias por ele escolhidas e encriptadas que impedissem o seu rastreio. Ao longo da entrevista, nunca revelou o seu paradeiro, disse apenas que não era o Belize, nem a Costa Rica, mas um local onde se falava português e perto do mar.

Já quando foi detido a Polícia Judiciária também falou nesta forma preferencial de comunicação do arguido, referindo ser uma tecnologia exorbitante. Ele comunicava mesmo com a mulher, Maria de Jesus Rendeiro, por redes sociais encriptadas como o Telegram ou o Signal. Na África do Sul, as autoridades apreenderam-lhe três iPad e quatro telemóveis. Ainda assim, a sua defesa recusa que tenha utilizado qualquer tecnologia de ponta, uma vez que João Rendeiro teria apenas, dizem, uma VPN (Rede Privada Virtual) que lhe custou a módica quantia de 12 dólares.

Estas contradições juntam-se aos argumentos que João Rendeiro apresentou em tribunal para pedir que o processo de extradição corra sem que esteja privado de liberdade — atualmente está numa cadeia de alta segurança que alberga os criminosos mais violentos e onde na primeira noite foi logo ameaçado de morte. Os argumentos do Ministério Público, porém, divergem. O procurador diz mesmo que Rendeiro tem na sua posse três passaportes, quando ele diz ter apenas um. A audiência de Rendeiro foi esta quarta-feira suspensa e será retomada sexta-feira. Há, por isso, possibilidade de o juiz revelar a sua decisão ainda esta semana.