O anúncio de Vladimir Putin de que os países hostis teriam de começar a pagar as compras de gás em rublos fez regressar as cotações do petróleo aos 120 euros por barril em Londres e deixou muitas dúvidas sobre o impacto desta sanção e até a sua viabilidade do ponto de vista jurídico e financeiro.

Numa coisa, analistas, organizações e clientes parecem concordar: é mais um obstáculo nas já difíceis transações de gás natural russo. E, se não colocar em causa a segurança de abastecimento, irá ter um impacto ainda mais forte nos preços do gás natural, o que afeta todos os compradores, mesmo aqueles que, como Portugal, não dependem do fornecimento russo. As cotações na Europa saltaram mais de 20% no dia em que foi conhecida esta intenção russa.

O gás natural, o petróleo e outros produtos energéticos ficaram de fora das sanções europeias à Rússia — EUA e Reino Unido impuseram limites às compras russas no setor energético — por causa da invasão da Ucrânia, dado o papel de grande fornecedor sobretudo à Europa. No entanto, com as sanções a atingir o sistema financeiro, o banco central russo e as transações em dólares e euros com envolvimento russo, as aquisições têm-se tornado mais difíceis.

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Há também companhias a boicotar produtos russos por razões reputacionais e seguradoras a recusar envolvimento nestas transações. Estes fatores ajudam a explicar porque está o petróleo russo a ser vendido a desconto face às cotações nos mercados de Londres e Nova Iorque com diferenças que chegaram aos 30 dólares por barril (de acordo com contas da OCDE). Para já, as contra-sanções russas atingem apenas o gás natural, produto no qual a Rússia é muito mais relevante do que no petróleo.

Segundo a agência Reuters, Putin deu ao banco central russo e ao Governo uma semana para encontrarem uma forma de transferir o pagamento destas operações de dólares ou euros para rublos. O gigante público Gazprom recebeu ordens para rever os seus contratos de venda para acomodar esta exigência.

A lista dos países inimigos é longa e inclui os estados que alinharam nas sanções internacionais, desde os 27 países da União Europeia, passando pela Suíça, Noruega e Reino Unido e chegando aos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Japão, Coreia do Sul, Nova Zelândia, Singapura e Taiwan.

Se tiver algum sucesso, a jogada de Moscovo pode conseguir contornar algumas das sanções financeiras impostas desde o início da guerra na Ucrânia. Atualmente, as exportações de gás russas que só para a Europa podem movimentar entre 200 e 800 milhões de euros por dia são todas pagas em dólares e euros. Passar estas operações para rublos permitiria evitar sanções monetárias, ao mesmo tempo que obrigaria os clientes do gás a adquirir rublos para pagar as suas encomendas. O efeito seria duplo, a Rússia conseguiria realizar transações que estavam proibidas por serem em dólares e euros e faria dos compradores aliados no esforço de conter a desvalorização da sua moeda. Mas não basta anunciar.

“Estes são contratos a longo prazo que especificam que o pagamento deve ser feito em euros ou dólares. Serão necessários novos contratos ou emendas aos contratos já existentes”, explica ao Observador o analista da UBS especialista em matérias-primas, Giovanni Staunovo. “Se a Rússia quer abrir uma negociação sobre as condições monetárias, as empresas europeias clientes poderão querer negociar também temas como volume e extensão dos seus contratos”, assinala.

Especialistas ouvidos pela agência Reuters manifestam ainda reservas sobre a legalidade desta mudança. A Rússia, dizem, não pode mudar os contratos de forma unilateral. “Os contratos são feitos entre duas partes, e em regra são feitos em dólares ou euros. Se uma das partes unilateralmente diz ‘não’ a esta moeda, exigindo outra, então deixa de haver contrato”, afirmou Tim Harcourt, economista-chefe do Instituto de Políticas Públicas e Governance da Universidade de Tecnologia de Sydney.

Para o diretor executivo da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol, a exigência de receber em rublos representa mais uma ameaça à segurança do abastecimento num mercado que já está com os nervos em pé e põe ainda em causa a afirmação histórica russa de que é um fornecedor de gás confiável, independentemente da geopolítica. Esse fluxo foi sempre mantido durante a Guerra Fria e de acordo com dados citados pela Reuters, as entregas feitas através do Nord Stream 1 continuam a chegar à Europa central.

Mas na Alemanha, um dos países mais dependentes do gás russo, já se ouvem vozes de preocupação por parte da associação de elétricas que inclui grandes clientes da Gazprom. A BDEW pediu ao Governo alemão que lance um sistema de alerta antecipado para o caso da Rússia interromper o fornecimento através do gasoduto.

“Existem indicações concretas e sérias de que a situação no abastecimento de gás se vai deteriorar”, afirmou a presidente da associação, Kerstin Andreae. A associação das empresas de energia defende que o regulador deve definir critérios para o abastecimento a indústrias e empresas, nesse cenário.

Susan Sakmar, consultora e professora na Universidade de Houston, admitiu à Reuters não ser claro como esta condição russa pode ser concretizada. Entretanto o ministro búlgaro da Energia, Alexander Nikolov, afirmou que uma contraparte financeira poderia agilizar a transação em rublos a partir da capital Sofia. É uma solução pouco habitual, reconheceu o ministro, mas disse também que não colocaria em risco o pagamento dos contratos já existentes. No entanto, Moscovo já avisou que a Bulgária está também obrigada a pagar em rublos.

Mas o governo japonês, um dos países “hostis”, que é o maior cliente na Ásia do gás natural liquefeito russo também manifestou publicamente as suas dúvidas sobre como esta mudança para o rublo se iria processar.

“Estamos a analisar a situação com os ministros relevantes, uma vez que não entendemos bem qual é a intenção da Rússia e como a iriam concretizar”, afirmou o ministro das Finanças, Shunichi Suzuki, no Parlamento.

Mas há outras dúvidas: será que o pagamento em rublos representa uma violação das sanções impostas à Rússia por parte dos países que cederem a esta condição? Os Estados Unidos estão a avaliar estas implicações com os aliados ocidentais, garantiu um responsável da Casa Branca.