O despacho que António Costa fez publicar esta terça-feira a exigir visto prévio dos pagamentos do Estado à Endesa é encarado por especialistas como algo “nunca visto”, “original” e “sem precedentes conhecidos”. “Até parece fake“, apontam alguns. O referido despacho também suscita várias dúvidas sobre a legalidade que o envolve, uma vez que a elétrica não pode correr o risco de ser colocada numa situação pior do que aquela que estava contratualizada.

O Observador contactou especialistas em contratos públicos e também um constitucionalista e as questões levantadas vão quase sempre no mesmo sentido: um contrato tem de ser cumprido pelos dois lados e as regras de pagamento não podem ser alteradas a meio e sem acordo. “A sensação é que se passa por cima das obrigações a que o Estado se vinculou sobre um determinado fornecimento de um serviço”, comenta ao Observador o advogado João Macedo Vitorino.

Já o constitucionalista Paulo Otero afirma que o despacho “limita o direito de crédito” da Endesa e que, por isso, não adianta que o Governo invoque — como fez — a competência constitucional que tem para “dirigir os serviços e a atividade da administração direta do Estado, civil e militar, superintender na administração indireta e exercer a tutela sobre esta e sobre a administração autónoma”. Outra especialista em contratos públicos, que preferiu não ser identificada, também admite que a Endesa pode ser lesada com esta “modificação unilateral de contratos”.

Tudo começou nas declarações do presidente da Endesa, Nuno Ribeiro da Silva, sobre o eventual aumento a curto prazo da fatura da luz. A estimativa que atirou foi de um agravamento de preços na ordem dos 40%, fruto dos efeitos do acordo ibérico para limitar o preço do gás natural — que gera um défice entre o preço de gás natural e o teto que os governos de Portugal e Espanha colocaram ao gás usado para a produção elétrica a pagar pelos compradores de energia.

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O regulador já veio esclarecer que esta compensação será sobretudo feita pela indústria e, antes disso, o Governo tinha já vindo dizer que as declarações de Ribeiro da Silva eram “alarmismo“. Não ficou por aqui e o Executivo acabou mesmo por intervir de forma musculada, através de um despacho com o selo do primeiro-ministro a condicionar o pagamento de faturas emitidas pela Endesa pelos serviços da administração direta e indireta do Estado

No entendimento de Macedo Vitorino, o que está em causa não é “o mecanismo que o Estado tem para regular o pagamento a fornecedores, mas sim como ele vai ser interpretado”. “Não pode prejudicar prazos contratuais”, previne o advogado, mostrando-se surpreendido com o conteúdo do despacho que julga ser inédito. “É um despacho original, sem precedentes conhecidos“, concorda outro especialista ouvido pelo Observador.

O mesmo jurista só não alinha que possa apenas suscitar problemas quanto ao cumprimento dos contratos, admitindo antes que a decisão de Costa pode logo “suscitar dúvidas juridico-constitucionais em torno da relação hierarquico-funcional do primeiro-ministro com a administração direta e indireta do Estado”.

No seu primeiro ponto, o despacho publicado esta terça em Diário da República determina que “os serviços da administração direta e da administração indireta do Estado não podem proceder ao pagamento de quaisquer faturas emitidas pela ENDESA, independentemente do seu valor, sem validação prévia, por despacho do Secretário de Estado do Ambiente e da Energia”.

Até agora havia essa autonomia dos serviços que deixa de existir mas apenas em relação a uma única empresa, aquela que apontou as eventuais consequências para os preços da energia acarretadas pelo acordo ibérico.

A imposição de um visto prévio não pode passar por cima do que está contratualizado, no entendimento dos especialistas ouvidos pelo Observador que, nesta matéria, são unânimes. Macedo Vitorino defende que “nada impede que exista um procedimento interno”. “O que o Estado não pode é deixar de cumprir o contrato”, salvaguarda o advogado.

Paulo Otero, por sua vez, considera que o Governo “não pode estabelecer novas regras de pagamento sobre serviços já prestados”. Em contrapartida, sublinha, “a empresa também não pode alterar os preços de prestações já feitas”.

Otero também comenta a norma constitucional invocada por Costa para avançar com esta decisão, relativa às competências do Governo (artigo 199º da Lei Fundamental) , referindo que “a Constituição define que está entre os poderes do Governo dirigir estruturas da Administração Pública, mas não empresas privadas”. E aqui explica que se o efeito direto é sobre estas mesmas estruturas, “há também um efeito indireto sobre a esfera patrimonial da empresa” em causa.

Ora, com a decisão tomada esta terça-feira sobre a Endesa, o primeiro-ministro “limita o direito de crédito da empresa que recebe o pagamento, um direito fundamental de conteúdo patrimonial que é o direito de propriedade da empresa”, argumenta o constitucionalista.

A outra especialista que analisou o despacho a pedido do Observador previne que a modificação unilateral de contratos “tem regras específicas que têm de ser seguidas, nomeadamente no que diz respeito ao equilíbrio financeiro dos contratos que tem sempre de ser assegurado, não podendo a Endesa ser colocada numa situação pior do que a que resultava da equação financeira inicialmente contratada”. Um elemento que a faz concluir que esta “interferência do Governo”, através do despacho, “pode levantar questões óbvias de legalidade“.

No primeiro ponto do despacho publicado em Diário da República, o primeiro-ministro não fala em suspensão de pagamentos, mas fica subentendido que isso possa acontecer quando os faz depender de um visto prévio do governante que tutela a energia.

E é reforçado pelo segundo ponto do despacho onde Costa até prepara já os serviços para a eventualidade de terem de “consultar o mercado” caso tenham de contratar  “novos prestadores de serviço que mantenham práticas comerciais adequadas”.

Neste ponto específico, Macedo Vitorino ainda acrescenta um outro problema: “Pressupõe excluir a Endesa e isso é manipulação, é um tratamento diferente face aos outros fornecedores de energia.”

Só este ano, o valor dos contratos assinados pelo Estado com a elétrica espanhola já ascende a 97,2 milhões de euros. Na lista das entidades que avançaram com contratos estão desde escolas e universidades a hospitais, passando por empresas públicas e autarquias (que não deverão ser abrangidas pelo despacho).

A decisão do Governo foi tomada já depois da elétrica ter assegurado, através de um comunicado emitido esta segunda-feira, que vai manter os preços contratuais até dezembro e a cumprir os compromissos estabelecidos no mecanismo ibérico.

Uma garantia que não tranquilizou Costa que aproveitou para dar um sinal aos fornecedores de energia que possam ser tentados a fazer refletir nos preços da energia dos consumidores domésticos aumentos atribuídos ao mecanismo ibérico.

Endesa fez 69 contratos com entidades públicas este ano. Fornece câmaras, fisco, segurança social e até regulador da energia