A romancista francesa Annie Ernaux, de 82 anos, foi laureada com o Prémio Nobel da Literatura de 2022, “pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, estranhamentos e constrangimentos coletivos da memória pessoal”, anunciou a Academia Sueca ao final da manhã desta quinta-feira, em Estocolmo. Ernaux é a 17.ª mulher a receber o Nobel da Literatura.

Reagindo à atribuição, a autora disse ao canal de televisão sueco SVT que considerava o prémio “uma grande honra” e “uma grande responsabilidade”.

Por altura do anúncio, a Academia informou que ainda não tinha conseguido entrar em contacto com a escritora, mas que esperava conseguir fazê-lo em breve. “Estive a trabalhar de manhã e o telefone esteve sempre a tocar, mas não atendi”, disse Annie Ernaux à agência de notícias sueca TT. De acordo com a Associated Press, Ernaux foi apanhada de surpresa, tendo ficado a par da atribuição após atender uma chamada de um jornalista sueco. “Tem a certeza?”, questionou a escritora.

Posteriormente, a romancista falou aos jornalistas em conferência de imprensa a partir dos escritórios da editora francesa Gallimard, que publica os seus livros desde o início da sua carreira literária, nos anos 70. “Estou muito comovida. Para mim, representa algo enorme, em nome daqueles de que provenho”, referiu, citada pelo The New York Times, aludindo à sua proveniência e meio familiar economicamente remendados.

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Receber o Prémio Nobel significa, para mim, responsabilidade em continuar e em estar aberta ao curso do mundo, atenta a um desejo de paz que me guiou sempre. E falando da minha condição enquanto mulher, não me parece que nós, mulheres, tenhamos liberdades e poderes iguais [aos dos homens]”, acrescentou.

Questionada sobre as fortes restrições recentes ao aborto nos Estados Unidos da América, Ernaux, que em 2000 publicou um livro (O Acontecimento) escrito a partir da sua experiência de interrupção voluntária da gravidez na década de 1960, apontou, citada ainda pelo The New York Times: “Nunca imaginei que 20 anos depois [da publicação], o direito ao aborto estaria a ser posto em causa novamente”. Já inquirida sobre se o presidente francês Emmanuel Macron lhe telefonou para lhe dar pessoalmente os parabéns, respondeu que tinha desligado o telefone.

Presidente do Comité lembra “linguagem limada” e “experiência de classe” de Ernaux

Autora de mais de 30 trabalhos literários, Ernaux nasceu em 1940. Cresceu numa pequena aldeia na região da Normandia, no norte de França, onde os pais tinham um café e uma mercearia. O seu caminho até à carreira literária “foi longo e difícil”, apontou a Academia Sueca.

Na sua obra, que tem como principal inspiração a sua própria vida, Ernaux “examina, consistentemente e de diferentes ângulos, a vida marcada por fortes disparidades em relação ao género, língua e classe”. Escrever é, para a autora, um ato político, que serve para abrir os olhos dos leitores para a “desigualdade social”.

“Annie Ernaux acredita manifestamente na libertação da força da escrita. O seu trabalho é intransigente e escrito numa linguagem simples, limada. E quando, com grande coragem e acuidade clínica, revela a agonia da experiência da classe, descrevendo a vergonha, humilhação, inveja ou incapacidade de ver quem somos, alcançou alguma coisa admirável e duradoura”, referiu o presidente do Comité do Nobel, Anders Olsson.

Escolha não esconde “nenhuma mensagem”. “O nosso foco deve ser a qualidade literária”, garante Comité do Nobel

Questionado sobre se a Academia Sueca pretendia enviar algum tipo de mensagem com a escolha de uma autora que aborda questões sociais nas suas obras, Olsson, a quem coube fazer a apresentação da laureada e responder às perguntas dos jornalistas presentes em Estocolmo, declarou que o Comité se concentra na “literatura e na qualidade literária”. “Não temos nenhuma mensagem para o mundo”, afirmou.

“Mas achamos que é importante que o trabalho do laureado tenha uma consequência universal, que consiga chegar a toda a gente e, nesse aspeto, acho que a mensagem é que isto é literatura para toda a gente”, acrescentou.

Sobre o facto de o galardão não ter sido atribuído a um escritor não-europeu, Olsson explicou que o júri segue diferentes critérios e que não é possível satisfazê-los a todos. “Podemos apenas assegurar-nos que aquilo que procuramos é qualidade literária”, afirmou, em resposta a uma pergunta colocada pelo jornalista da Associated Press.

“No ano passado, demos o prémio a um escritor não-europeu, Abdulrazak Gurnah, este ano demos o prémio a uma mulher. Houve poucos laureados [mulheres] no passado, como sabemos. Temos tentado alargar o espetro do Prémio Nobel, mas o nosso foco deve ser a qualidade literária.”

Annie Ernaux é apenas a 17.ª escritora a ser laureada com o Nobel da Literatura. A última mulher a receber o prémio foi a poeta norte-americana Louise Glück, em 2020. Nos últimos anos, o Comité tem procurado incluir mais mulheres, que raramente eram contempladas, atribuindo o Nobel da Literatura a uma mulher de dois em dois anos desde 2013, quando a canadiana Alice Munro foi galardoada.

[Reveja aqui o anúncio do Prémio Nobel da Literatura:]

Macron: “Annie Ernaux tem vindo a escrever o romance da memória coletiva e íntima do nosso país”

O presidente francês, Emmanuel Macron, já congratulou Annie Ernaux pela sua distinção com o Prémio Nobel da Literatura. Em reação à atribuição do prémio, através de uma nota difundida nas redes sociais, Macron escreveu:

Annie Ernaux tem vindo a escrever, ao longo de 50 anos, o romance da memória coletiva e íntima do nosso país. A sua voz é a da liberdade das mulheres e dos esquecidos do século. Ela junta-se, graças a esta consagração solene, ao grande círculo de vencedores do Nobel da nossa literatura francesa.”

“Uma escrita despida, direta, por vezes um bocadinho crua, sem pudores”

Uma distinção “absolutamente justa” e um “reconhecimento muito merecido” a uma “escrita muito original e de coração aberto”. É assim que a editora São José Sousa, da Livros do Brasil (responsável pela publicação da obra de Annie Ernaux em Portugal), encara a entrega do Prémio Nobel da Literatura à autora francesa, de 82 anos.

Para a editora, que falava em declarações ao Observador e à Rádio Observador, Ernaux “é uma autora que consegue pegar nas histórias mais íntimas da sua própria história para criar narrativas com universalidade, por falar de temas que são muito humanos e que, por isso, falam de todos nós”.

“É sem dúvida uma escrita original. Esta capacidade que Annie Ernaux tem de pegar nos acontecimentos mais pequeninos da vida, na especificidade de cada momento da sua história, e procurar esses reflexos no que contam sobre o país e o momento e o mundo em que vive é realmente muito original”, apontou ainda a editora.

São José Sousa lembrou ainda que a “autoficção”, género literário que mistura ficção com relatos pessoais e biográficos, “tem vindo a ser muito trabalhada nos últimos anos”, mas se “há alguns autores que se destacam nesse campo, a Annie é sem dúvida uma mestre a fazer a esta ponte. E é muito curioso que o faça com uma escrita que é tão despida, tão direta, por vezes até um bocadinho crua, sem artifícios e sem pudores, sem necessidade de embelezar nada, porque a vida como ela é e com a simplicidade com que se pode relatá-la acaba por ganhar mais força”.

Já sobre o impacto da atribuição do Nobel na publicação de livros de Annie Ernaux em Portugal (traduzidos para português), a editora da Livros do Brasil disse não poder “especificar” se já existem obras previstas para editar ou reeditar, de entre a vasta produção literária da autora que só em parte está disponível em tradução portuguesa. Mas “a vontade é que aconteça isso mesmo”.

“Annie Ernaux é uma autora que tem várias obras publicadas e apenas parte delas foram publicadas em Portugal, é verdade. Notávamos que não sendo propriamente uma autora bestseller, era uma autora com um público fiel. Agora com certeza será a oportunidade para que mais leitores a descubram. E queremos, sim, disponibilizar mais títulos da autora“, acrescentou São José Sousa.

Há um ano, o Nobel tinha sido atribuído ao romancista e contista Abdulrazak Gurnah. Nascido na Tânzania, mas residente no Reino Unido desde os anos 60, o escritor foi galardoado “pela sua capacidade de mergulhar de forma intransigente mas também compassiva nos efeitos do colonialismo e nos destinos dos refugiados que estão num abismo, divididos entre culturas e continentes”, justificou na altura a Academia Sueca. O organismo destacou também a “dedicação à verdade” de Gurnah e a sua “aversão às simplificações”.

O Prémio Nobel foi instituído em 1901. O vencedor do galardão literário recebe um prémio monetário de aproximadamente 985 mil euros e é escolhido, de acordo com a vontade de Alfred Nobel, mediante a “produção no campo da literatura do trabalho mais excecional” com uma “direção ideal”.