O processo judicial da tentativa de atentado contra o Papa João Paulo II, em maio de 1982, no Santuário de Fátima, vai transitoriamente para o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, disse o diretor-geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas. “Vamos receber o processo transitoriamente. Tratando-se de um processo individual, ele será remetido depois para o Arquivo Distrital de Santarém, espaço mais indicado devido à relevância do processo”, afirmou à agência Lusa Silvestre Lacerda.
O padre integralista Juan Krohn foi condenado, em maio de 1983, pela tentativa de atentado contra o Papa João Paulo II, um ano antes, em Fátima, levando a uma pena única de sete anos de prisão e 90 dias de multa (ou 60 dias de prisão).
A Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas tem a tutela do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Na Torre do Tombo estão milhares de processos judiciais, sendo o mais antigo do século XVI, explicou Silvestre Lacerda.
“Depois há um hiato, por ocasião do domínio filipino [1580-1640]. A partir do século XVIII, há um número bastante significativo de processos judiciais. A explosão documental ocorreu no século XX”, adiantou.
Entre os processos mais emblemáticos que estão na Torre do Tombo encontram-se o do assassino do Aqueduto das Águas Livres, o ‘Ballet Rose’, a reabertura do processo do assassinato de Humberto Delgado e a morte de Francisco Sá Carneiro, acrescentou o diretor-geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas.
No primeiro caso, são atribuídas ao espanhol Diogo Alves dezenas de mortes no Aqueduto das Águas Livres, em Lisboa, na primeira metade do século XIX.
Já o caso ‘Ballet Rose’, tornado público pela imprensa britânica em 1967, foi um esquema de pedofilia e prostituição que envolveu altas figuras do Estado Novo.
“Entre os envolvidos no escândalo sexual estão ministros do governo de Salazar, militares, grandes empresários ligados à indústria, banca e alta finança, membros da aristocracia ou da Igreja”, segundo o sítio na Internet do Museu do Aljube.
Humberto Delgado (1906-1965) foi candidato presidencial em 1958, tendo sido, após as eleições, obrigado a exilar-se. Foi assassinado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), em Espanha.
Francisco Sá Carneiro (1934-1980), um dos fundadores do PPD/PSD, era primeiro-ministro quando o avião onde seguia com outras pessoas, incluindo o então ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, se despenhou em Camarate. O relatório da X Comissão Parlamentar de Inquérito à Tragédia de Camarate, de 23 de junho de 2015, concluiu que a queda do avião se deveu a um atentado.
Padre integralista queria ser “mártir” e invocou “legítima defesa da Igreja”
O padre integralista Juan Krohn, condenado, em maio de 1983, pela tentativa de atentado contra o Papa João Paulo II, um ano antes, em Fátima, invocou “legítima defesa da Igreja” e confessou o desejo de ser “mártir”.
O processo-crime, que ficou marcado pelo mediatismo internacional e pelo comportamento “estranho” adotado pelo réu, a ponto de o Tribunal suscitar um incidente de alienação mental e de o ter condenado, em julgamento sumário, por ofensas aos magistrados judiciais, vai ser recordado nas II Jornadas de Direito Criminal da Comarca de Santarém, agendadas para 04 de novembro, em Ourém.
Detido na noite de 12 de maio de 1982, quando tentava aproximar-se de João Paulo II, junto da escadaria que conduzia ao altar da Basílica, durante a procissão das velas, Juan Krohn tinha consigo um sabre militar e uma pasta contendo documentos e três mensagens (uma em latim e duas em francês), entre outros objetos, cujas fotografias fazem parte do processo, consultado pela Lusa.
Na altura com 32 anos, Krohn foi levado para as instalações da Polícia Judiciária, onde foi inquirido no dia seguinte, no primeiro de vários depoimentos, nomeadamente manuscritos (um deles contendo vários croquis da sua versão sobre o que se passou na noite de 12 de maio de 1982), que se foram juntando ao processo.
Nascido numa família católica tradicional de Madrid, Krohn formou-se em Economia e Direito, tendo aderido à igreja tradicional de Lefebvre (1905-1991), arcebispo francês contrário às reformas iniciadas com o Concílio Vaticano II (1962).
Nos depoimentos que constam do processo, Krohn disse ter-se inspirado no assassínio do Presidente do Egito Anwar Al Sadat (em 1981), por fundamentalistas islâmicos, querendo, com o seu gesto, “salvar a Igreja católica” da “demolição” anunciada por Paulo VI (1897-1978), na sequência das reformas iniciadas pelo seu antecessor, João XXIII (1881-1963), e prosseguidas por João Paulo II (1920-2005).
Queria “tornar-se um mártir, usando o argumento teológico de que, com isso, terminaria a agonia da Igreja”, lê-se no registo da inquirição, na qual declarou ser o “único responsável” e não ver nisso pecado nem crime, pois agia “em legítima defesa da Igreja”.
Para Krohn, a viagem de João Paulo II a Fátima (onde o Papa se deslocou para agradecer à Virgem o ter salvado de um atentado um ano antes, em Roma)??? visava “conquistar uma legitimidade (…) contestável em muitos aspetos”.
No interrogatório realizado no dia 14 de maio de 1982, no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, assumiu que queria transformar-se “no primeiro mártir da fé e da caridade”, considerando a sua atitude “legalmente justificada”.
No exame realizado ao sabre com o qual disse ser sua intenção atingir o coração do Papa, o Laboratório da Polícia Científica da PJ concluiu que tinha inscrito, em caracteres tailandeses, a data de 2445 do calendário budista (1902 da era cristã), data do fabrico pelas forças armadas do Sião, apresentando “apreciável poder de corte”.
Krohn acabou por ser acusado, em agosto de 1982, pelo Ministério Público, da prática dos crimes de homicídio voluntário qualificado, na forma tentada, na pessoa de um chefe de Estado, e de uso, detenção e porte de arma de crime proibida.
O julgamento, que decorreu no Tribunal de Vila Nova de Ourém (concelho do distrito de Santarém ao qual pertence a freguesia de Fátima), começou no dia 20 de outubro de 1982, perante o coletivo presidido por Políbio Flor, na altura presidente do círculo judicial de Tomar, e integrando Joaquim Rebelo (juiz em Tomar) e António Henriques dos Santos Cabral (juiz no Tribunal de Ourém).
Nessa audiência, foram ouvidas oito testemunhas de acusação – na maioria elementos da segurança do Papa, duas peregrinas do Porto, que julgavam ter visto um jovem cúmplice de Krohn, e um sacerdote de Vila da Feira, que populares haviam denunciado como conhecendo o réu — e cinco de defesa, entre elas o editor Valdemar Paradela de Abreu.
Os depoimentos de Krohn, no início e no final da audiência, e a ideia de sentimentos místico-religiosos exacerbados, que transpareceram dos depoimentos das testemunhas, levaram o coletivo a abrir um incidente de alienação mental, dado o comportamento “estranho” do réu, nomeadamente pela “frieza fora do vulgar atenta a gravidade da incriminação e pela preocupação de chamar a si uma responsabilidade penal tão agravada quanto possível”.
Em 07 de fevereiro de 1983, os peritos concluíram que Krohn era imputável e que o seu crime foi determinado “por uma evolução mística e política individual”.
A segunda audiência do julgamento realizou-se em 21 de abril de 1983, para alegações do Ministério Público e do advogado de defesa oficioso, José Maria Lopes Perdigão, tendo Krohn voltado a prestar depoimento.
O coletivo leu o acórdão em 02 de maio de 1983, condenando Krohn a uma pena única de seis anos e seis meses de prisão pela prática dos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, e de detenção e uso de arma proibida.
A reação de Krohn, que dirigiu ao coletivo as palavras “fantoches, assassinos, comunistas”, valeu-lhe novo processo sumário, no mesmo dia, numa sessão de que esteve ausente, devido ao seu comportamento “marcado por repetidas atitudes de perturbação dos trabalhos”.
Pelos três crimes de injúrias, foi condenado a mais três meses de prisão e um total de 90 dias de multa (ou 60 dias de prisão), levando a uma pena única de sete anos de prisão e 90 dias de multa (ou 60 dias de prisão).
O seu defensor ainda recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), pedindo a repetição do julgamento, dado o período de tempo decorrido entre a primeira e a segunda audiência, num processo de querela, oral, e alegando que Krohn não quis matar o Papa, mas sim “ensaiar um golpe de teatro e dar nas vistas”, por aspirar ser “mártir” e querer “alertar o mundo para os perigos” da “renovação” empreendida pelo Concílio Vaticano II. Em 12 de outubro de 1983, o TRC confirmou o acórdão.
Colocado no Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus, em Alcoentre, em 09 de agosto de 1983, Krohn obteve liberdade condicional em 21 de novembro de 1985, tendo obtido a liberdade definitiva, com expulsão do país, em 21 de maio de 1989. Pelo meio, Krohn viu-lhe ser negado, em 1984, um pedido de indulto pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes. Expulso do país quando saiu da prisão e proibido de exercer o sacerdócio, Krohn fixou residência na Bélgica.