“É dever dos pais educar, proteger, cuidar e socorrer os filhos”
Este é um dos 84 pontos descritos pelo Ministério Público na acusação divulgada esta quarta-feira sobre a morte de Jéssica Biscaia, a criança de três anos que morreu em junho deste ano, em Setúbal. A Polícia Judiciária já tinha adiantado alguns detalhes sobre o contexto familiar em que Jéssica vivia e em que foi morta, mas agora, e depois da detenção da mãe da criança, o Ministério Público revelou, ao detalhe, toda a história. A criança foi dada como moeda de troca para o pagamento de uma dívida que a mãe fez por serviços de bruxaria, foi utilizada como correio de droga e agredida. Inês, a mãe, foi detida na semana passada e está acusada de homicídio qualificado.
O fim da vida de Jéssica começou em maio deste ano, quando Inês decidiu recorrer a serviços de bruxaria para tentar salvar a sua relação com o namorado. Estes serviços foram, aliás, pedidos a uma mulher que antes lhe vendia droga e que está agora detida, acusada dos crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado, ofensas à integridade física, tráfico de droga, violação e coação agravada. Por 100 euros, a mulher entregou “um saco com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama”. Inês não pagou.
Quando a dívida atingiu os 200 euros, a mulher que fez a tal bruxaria, em conjunto com o marido — que está também detido e acusado dos mesmos crimes –, “engendraram um plano com vista a exigirem à arguida o pagamento, exigindo-lhe, então, a entrega da filha como garantia desse pagamento”, revelou o Ministério Público.
Jéssica ficou em casa do casal durante dois dias, a mãe acabou por pagar metade da dívida e levou a filha consigo. Mas esta não foi a única vez que Jéssica seria entregue por causa de dinheiro. Como a dívida permanecia, foi exigido, novamente, que Inês levasse a filha à mesma casa.
Durante uma semana, os dois arguidos, “fazendo uso da sua força muscular, desferiram na cabeça e no corpo de Jéssica, com as mãos ou outras parte do corpo ou objetos, um número não concretamente apurado de palmadas, murros, bofetadas e pancadas, provocando-lhe um hematoma na hemiface esquerda, os lábios feridos, hematomas pelo corpo e dores“.
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Depois das agressões, a mulher que fez as bruxarias, chamou a mãe. Jéssica foi levada, mais uma vez, para sua casa. Nos dias seguintes, a criança “apenas se alimentou de líquidos”, devido ao estado frágil de saúde que apresentava. Mesmo assim, a mãe nunca a levou ao hospital.
“Apesar do estado em que se encontrava Jéssica e de ter recebido aconselhamento de outras pessoas com as quais convivia nesse sentido, a arguida Inês não a levou a qualquer unidade hospitalar ou centro de saúde, a fim de aferir do estado de saúde”, lê-se na acusação.
Usada como correio de droga
A história repetiu-se mais uma vez e Inês voltou a levar a filha à mesma casa onde Jéssica tinha sido maltratada, “apesar de saber que a sua filha poderia ser novamente agredida”. Desta vez, levou uma mochila com roupa e medicamentos, “como garantia do pagamento da dívida”.
Jéssica ficou então, pela terceira vez, em casa do casal e, durante esse período, entre chamadas e ameaças, Inês ouvia “vozes e gritos de crianças, admitindo poderem ser de sua filha”, descreve o Ministério Público. Numa das chamadas, a mulher que se dedicava ao tráfico de droga e à bruxaria disse a Inês que a filha teria caído de uma cadeira.
“Inês dirigiu-se a casa dos arguidos, entrou e foi encaminhada pelo arguido para o primeiro quarto onde se encontrava a arguida com Jéssica Biscaia ao colo, completamente despida, apenas com a fralda colocada, prostrada, sem abrir os olhos, sem falar, com o corpo repleto de hematomas, queimadura na face (nariz e buço) e uma grande pelada na cabeça”, descreve o Ministério Público.
Nesse momento, a criança começou a ter convulsões, a mulher que a agrediu colocou uma colher na boca de Jéssica, “sustendo-lhe a língua para evitar a asfixia”. Inês foi embora e deixou a filha naquele lugar, depois de ver que a filha tinha sido agredida. “Apesar de ter observado as lesões e de se ter apercebido do estado muito grave de saúde em que Jéssica Biscaia, sua filha, a arguida Inês Sanches regressou a casa, deixando-a ali entregue, sem contar tais acontecimentos a ninguém, nomeadamente ao seu companheiro, com o qual saiu à noite para um bar de karaoke.”
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No dia seguinte, depois de ter saído para um bar situado perto de sua casa, Inês foi chamada novamente pela mulher a quem devia dinheiro. Quando chegou, a filha foi entregue enrolada numa manta, com uns óculos de sol colocados no rosto, “permanecendo sem se mexer, falar, com os olhos sempre fechados, hematomas nas pernas, com a zona da testa inchada, grande pelada no couro cabeludo e a zona do rosto toda ensanguentada, inclusivamente, com uma queimadura no nariz e buço”.
Já em casa, ainda durante o período da manhã, Inês deixou a filha no quarto e só voltou a entrar naquele espaço por volta das 15h00. “Constatou que Jéssica estava com graves dificuldades respiratórias, em constante engasgamento e com os batimentos cardíacos muito acelerados” e, só nessa altura, é que contou ao namorado o que se passava. A ajuda médica ainda foi ao local, Jéssica foi levada para o hospital, mas acabou por morrer uma hora e meia depois de a mãe ter entrado no seu quarto.
Jéssica esteve cinco dias em casa do casal. Foi agredida com palmadas, murros, pontapés em todas as zonas do corpo, incluindo cabeça, e fortes puxões de cabelo. E “também lhe entornaram líquido fervente ou outro produto abrasivo sobre o rosto”. A lista de lesões que constam na acusação é extensa — todas as partes do corpo de Jéssica tinham marcas de violência.
Além das agressões, a criança foi utilizada pelo casal que lhe bateu para transportar droga entre Leiria e Setúbal. A mulher que fez as bruxarias e outra arguida, que é acusada pelos mesmo crimes, “introduziram no ânus de Jéssica uma quantidade não concretamente apurada de cocaína, devidamente embalada”. E “colocaram ainda no interior da fralda de Jéssica Biscaia quantidades não concretamente apuradas” de outras substâncias como metadona e também cocaína.
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Estes arguidos “em conjunto e na presença um do outro, batiam e abanavam certeiramente, com as suas próprias mãos, o corpo e a cabeça de Jéssica Biscaia, apenas com três anos de idade, sem possibilidade de oferecer qualquer resistência às agressões, não tendo aqueles qualquer motivação”. Todos tinham, segundo o Ministério Público, noção de que estas agressões poderiam levar à morte da crinaça.
E a mãe, acrescenta o MP, “nada fez para evitar esse resultado, como poderia e deveria ter feito, por ser sua mãe, tendo juridicamente um dever acrescido de proteção e cuidado para com esta devido ao grau de parentesco que as une, conformando-se com o mesmo”.