Quem passasse pelo número 105 do Boulevard du Montparnasse, em Paris, nas primeiras décadas do século passado, arriscaria cruzar-se com Pablo Picasso, Ernest Hemingway ou Salvador Dalí. O Café de La Rotonde era uma desses espaços do vibrante bairro de Monparnasse, onde os grandes artistas e intelectuais do início do século XX se reuniam para trocar ideias, sentados à mesa um dia inteiro com apenas uma chávena de expresso à sua frente.

Esta quinta-feira, 6 de abril, um grupo de manifestantes contra a reforma do sistema de pensões pegou fogo ao La Rotonde, conhecido por ser o restaurante favorito de Emmanuel Macron e um símbolo do seu mandato presidencial. Foi lá que celebrou a vitória eleitoral e assinalou a reabertura da restauração após terminarem os confinamentos impostos pela pandemia, em junho de 2021.

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A brasserie foi fundada como um café em 1911 por Victor Libion, que recebia os artistas, muitos deles famintos e a passarem dificuldades económicas, e deixava-os ocupar mesas horas a fio sem pedirem mais do que uma chávena de café. Quando tinham fome, Libion deixava-os arrancar as pontas das baguetes para comer. Se queriam refeições, mas não as podiam pagar, o proprietário aceitava pinturas e desenhos feitos em guardanapos como moeda de troca. “Modigliani pagava uma refeição quente com um quadro”, escreve a Vanity Fair francesa. Algumas obras eram penduradas nas paredes do interior, adornadas como se se tratasse de uma galeria, e ficavam por lá. Outras eram devolvidas aos artistas quando regressassem com dinheiro para saldar a dívida.

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Jean Cocteau, Manuel Ortiz de Zárate, Henri-Pierre Roché, Marie Vassilieff, Max Jacob e Pablo Picasso junto ao La Rotonde, em 1926.

Em Paris, era um ponto de encontro habitual para os intelectuais europeus e expatriados americanos da Geração Perdida. Naquelas mesas, nasceram alguns movimentos artísticos vanguardistas do século passado, como o dadaísmo, o cubismo e o surrealismo, segundo o canal de história History Hit. Até há pouco tempo, alguns dos pratos na ementa eram batizados em honra às mentes brilhantes que se sentaram naquela esplanada. Muitos deles dedicaram quadros ao La Rotonde, como o pintor italiano Tullio Garbari, com a obra “Les Intellectuels a la Rotonde” (1916).

Antes de Macron, a história do La Rotonde também já estava ligada a outros vultos da política mundial. Leon Trotsky e Vladimir Lenin ocuparam as cadeiras vermelhas da esplanada. Também foi numa das suas salas, no andar de cima, que o ex-presidente francês Françoise Hollande celebrou a sua vitória contra Martine Aubry na segunda volta das primárias de esquerda, em outubro de 2011. Em 2010, Macron sentava-se debruçado sobre aquelas mesas para organizar reuniões daquele que ficou conhecido como o “grupo La Rotonde”, responsável por elaborar o futuro programa económico de Hollande, segundo a France Info.

A polémica celebração de Macron

Em abril de 2017, Emmanuel Macron celebrou a vitória na primeira ronda das eleições presidenciais contra Marine Le Pen como candidato do En Marche! no La Rotonde. Esse jantar, em que estava acompanhado pela mulher e por um grupo de amigos, gerou polémica entre os franceses, que o acusaram de estar a celebrar cedo de mais, antes da vitória presidencial efetiva, e criticaram a escolha do restaurante “sofisticado” para o fazer.

A situação foi comparada à também criticada celebração de Nicolas Sarkozy na Brasserie Fouquet’s quando venceu as eleições presidenciais em 2007, embora apoiantes de Macron e o próprio restaurante tenham apontado a diferença de preços acentuada entre os dois estabelecimentos. “Não temos nada a ver com o Fouquet’s”, disse um porta-voz do La Rotonde ao Le Parisien a propósito da polémica.

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Emmanuel Macron é visto a celebrar com um grupo de amigos no La Rotonde, em abril de 2017.

A atenção mediática foi suficiente para atrair grupos de curiosos ao restaurante, mas também para o colocar no radar dos franceses como o favorito do presidente. “Bem-vindo à La Rotonde, a brasserie onde Macron celebrou a sua vitória”, escrevia a France Info em abril de 2017; “Emmanuel Macron no Rotonde: os bastidores de um jantar que fez as pessoas falarem”, noticiava o Le Figaro.

Em junho de 2021, foi também o La Rotonde que o presidente elegeu para assinalar a reabertura da restauração em França, depois de ser levantado o confinamento imposto durante a pandemia da Covid-19. “Emmanuel e Brigitte Macron jantaram no La Rotonde para celebrar o desconfinamento”, reportou na altura o Le Figaro, que descreveu ainda o espaço como “um lugar que o casal presidencial frequenta há vários anos.”

Fogo no Café de La Rotonde

Esta quinta-feira não foi a primeira vez que a brasserie pegou fogo. Em janeiro de 2020, um incêndio deflagrou no terraço fechado, danificando equipamentos da cozinha e o mobiliário da sala de refeições. Aconteceu durante a madrugada e não se registaram quaisquer feridos. A polícia encontrou no local vestígios de óleo e acreditou que se teria tratado de um “ato deliberado”, segundo a RFI, embora nunca se tenha apurado um culpado. Soube-se mais tarde que o incêndio foi causado por uma bomba caseira.

O La Rotonde também se viu envolvido num escândalo financeiro depois de, em 2013, uma inspeção das autoridades ao estabelecimento e à casa de Gérard Tafanel — co-proprietário com o irmão, Serge — revelar que estariam a fugir ao fisco. Recorreram ao Conselho de Estado, que os considerou culpados, tendo sido condenados em 2021 a fazer um pagamento às autoridades fiscais no valor de 1,6 milhões de euros. Os irmãos Tafanel mantém-se proprietários do Café de La Rotone,  que compraram a meias ao tio, Georfes, em 1992. Está nessa mesma família há três gerações.