Abu Zubaydah, paquistanês de 52 anos, foi o primeiro detido a ser submetido ao programa de torturas da CIA criado na sequência do 11 de setembro de 2001. Dados dos próprios EUA indicam que foi submetido 83 vezes à técnica de tortura “waterboard”, através da utilização de água e que simula o afogamento, impedindo o prisioneiro de respirar.
É conhecido como o “prisioneiro para sempre”: a libertação parece uma utopia, apesar de não ter sido acusado de nenhum crime. Inicialmente, foi acusado de ser um dos membros principais da Al Qaeda, mas os próprios EUA acabaram por admitir que o detido não pertencia ao grupo terrorista.
Durante estas duas décadas, desenhou as torturas a que foi submetido entre 2002 e 2006, num relato detalhado e abrangente sobre as técnicas brutais a que foi submetido (as descrições podem ferir a suscetibilidade dos leitores mais sensíveis). Os desenhos, 40 ao todo, foram incluídos num relatório intitulado “American Torturers: FBI and CIA Abuses at Dark Sites and Guantanamo“. Estas imagens, como escreveu o The Guardian, “dão uma visão única e marcante de um período negro da história dos Estados Unidos da América”. Os desenhos foram feitos de memória enquanto Abu Zubaydah se encontrava na sua cela e enviados depois para um dos seus advogados e homem que liderou a execução do referido relatório, Mark Denbeaux.
Foi com a ajuda dos seus alunos — também é professor no Centro de Política e Pesquisa da Faculdade de Direito da Universidade de Seton Hall– que Denbeaux organizou os desenhos do detido e realizou o relatório disponibilizado na terça-feira no site Social Science Research Network. Além do advogado e do prisioneiro, assina o relatório Jess Ghannam, professor de Psiquiatria e Ciências de Saúde Global na Universidade da Califórnia, em São Francisco.
Abu Zubaydah é o modelo propaganda do progama de tortura da América”, explicou ao jornal britânico o advogado norte-americano. “Ele foi a primeira pessoa a ser torturada, decisão aprovada pelo Departamento de Justiça com base em factos que a CIA sabia serem falsos. Os seus desenhos são o repúdio final do falhanço e dos abusos por tortura.”
Na semana passada, as Nações Unidas emitiram um relatório no qual apelaram à libertação de Abu Zubaydah. O grupo de trabalho da Organização das Nações Unidas explicou que a detenção de pessoas em Guantánamo sem que haja uma condenação pode constituir um caso de “crimes contra a humanidade“.
“Os desenhos dão uma descrição importante do que aconteceu com ele [Abu Zubaydah] e são espantosos, tendo em conta que ele não conseguiu comunicar diretamente com o mundo exterior”, explicou ao The Guardian Helen Duffy, a representante legal internacional de Abu Zubaydah. O prisioneiro do sistema judicial norte-americano foi capturado no Paquistão, em 2002, e levado para vários centros secretos da CIA, em países como a Polónia e a Lituânia. Em 2006, chegou à prisão de Guantánamo, onde permanece até hoje.
O sistema de torturas desenvolvido pela CIA
O relatório desenvolvido por Mark Denbeaux dá conta de cenários de tortura que envolvem a humilhação física, psicológica e religiosa. Além de ser submetido a métodos que causam dor física e stress psicológico, o prisioneiro foi sujeito a ameaças que evolveram a profanação de elementos da sua fé e a prática de abusos sexuais.
Dentro dos abusos com recurso a violência física, Abu Zubaydah foi regularmente submetido a sessões de espancamento, onde a sua cabeça e corpo eram arremessados contra as paredes e o chão de cimento. Era ainda frequente baterem-lhe nas costas, cabeça e pernas com uma toalha embrulhada em fita adesiva. O objetivo era deixar o prisioneiro inconsciente, para de seguida o acordar com recurso a chapadas. O processo era continuamente repetido.
Outro dos métodos usados consistia em amarrar o prisioneiro, deixá-lo de pé e bater-lhe de cada vez que este inclinasse a cabeça e fechasse os olhos. Este método de tortura que implicava a privação de sono podia ser igualmente aplicado noutras condições: o prisioneiro era colocado numa cela vigiada por guardas e, cada vez que adormecia ou aparecia que tal ia acontecer, acordavam-no com recurso a jatos de água gelada, gritos e espancamentos.
O detido foi também obrigado a ficar em posições consideradas de stress corporal, onde o individuo não pode estar com os músculos relaxados. Um método que pode envolver a proibição de se sentar ou deitar durante longos períodos e ser colocado em posições desconfortáveis – sempre com jatos de água gelada ou espancamentos como castigo adicional.
Quando eram deslocados de uma cela para outra ou para outras instalações com recurso a transporte, os prisioneiros eram deitados no chão durante vários dias com as mãos e os pés amarrados, com os movimentos reduzidos a pequenos gestos. Este tipo de tortura envolvia geralmente a colocação de uma fralda nos prisioneiros. Estes podiam ainda ter os seus braços e pernas amarrados com algemas com um comprimento muito curto, obrigando o prisioneiro a ficar muitas vezes em posições desconfortáveis e dolorosas e reduzindo também os seus movimentos.
Além da privação de sono, eram praticados outros atos de tortura com o objetivo de incutir o medo e provocar o esgotamento psicológico das vítimas. O prisioneiro era amarrado a uma cadeira, numa sala fria, e os guardas vertiam sobre este um balde com água gelada, provocando sensação de hipotermia na vítima. Os próprios banhos dos prisioneiros eram um pretexto para a tortura, uma vez que eram muitas vezes administrados com recurso a jatos de água gelada.
Abu Zubaydah desenhou também uma das torturas a que mais vezes foi sujeito: o “waterboard”. Amarrado a uma marquesa, de barriga para cima, o prisioneiro via-lhe ser colocada uma toalha na cara. Depois, despejavam água sobre a mesma, provocando uma sensação de afogamento – vómitos, ataques de tosse descontrolados e ataques de pânico.
Outro método de violência física extrema passava por colocar a vítima dentro de uma caixa de madeira, deitada na horizontal e de barriga para cima. Esta técnica variava consoante a vítima estivesse de braços algemados na frente do corpo ou por trás das costas. Caso o prisioneiro estivesse algemado na parte da frente do corpo, este era deixado trancado na caixa de madeira durante vários dias, acabando por ficar inundado na sua própria urina e fezes.
Caso o prisioneiro estivesse com as mãos algemadas por trás das costas, a caixa de madeira possuía duas aberturas. Através de uma delas, à altura da cara, um guarda interrogava o prisioneiro. Usando a segunda abertura, enchia-se a caixa de água. Quando o nível da mesma chegasse ao nariz do prisioneiro, o guarda retirava a mangueira da caixa. Assim, o prisioneiro, imóvel e a suster a respiração, tinha de aguentar até conseguir respirar com segurança. O processo era novamente repetido, deixando o prisioneiro com o medo constante de morrer afogado.
Na prisão de Guantánamo, Abu Zubaydah explicou que, além de ter sido muitas vezes violado pelos guardas, o seu corpo foi abusado de outras formas que não sexuais e que podiam envolver ferramentas para infligir dor nas vítimas. As inspeções à cavidade retal eram um pretexto para que os guardas abusassem sexualmente do prisioneiro, além de atos de tortura deliberados em que o prisioneiro era colocado na posição de gatas ou amarrado sobre uma mesa com os pés presos ao chão e o tronco sobre o tampo da mesa para de seguida ser ameaçado de violação.
Além disso, eram colocadas sondas gástricas à força nos prisioneiros, pelo nariz, para que estes tivessem os líquidos e nutrientes necessários para sobreviver. Noutros casos, estes podiam ser administrados com recurso a sondas inseridas no ânus. Os prisioneiros eram ainda ameaçados com a amputação dos seus genitais. Este método chegou a ir mais longe, como descreveu Abu Zubaydah, com os guardas a realizarem cortes no pénis do prisioneiro. Foi ainda descrita outra situação em que Abu ouviu um prisioneiro a ser ameaçado noutra cela com um berbequim. Após ouvir o som do berbequim a funcionar e os gritos de agonia da outra vítima, Abu explicou que o homem voltou a ser ameaçado com o uso da ferramenta de bricolage.
Por último, as torturas dos prisioneiros podiam envolver as suas crenças culturais e religiosas. Abu Zubaydah descreveu cenários em que os guardas ameaçavam colocar o Al-Corão num balde com os dejetos do próprio prisioneiro, ou num “balde cheio de sangue menstrual”. Noutras ocasiões, os guardas ameaçavam pontapear o livro sagrado do islamismo. Os prisioneiros tinham as suas barbas e cabelos rapados à força, algo que é visto como um pecado em alguns ramos da religião muçulmana.
O prisioneiro descreveu uma situação de tortura em que, completamente nu, sentado e amarrado a uma cadeira e em estado hipotermia causado pela água gelada despejada sobre si em conjunto com a temperatura na sala, foi interrogado por uma mulher com roupa de verão. Os guardas que o vigiavam usavam roupas grossas e de várias camadas, que mostravam a baixa temperatura sentida na sala. Abu Zubaydah pediu algo para que pudesse tapar os genitais, mas a resposta ao seu pedido foi apenas mais um balde de água gelada. A vítima contou como esteve cerca de meia hora antes de conseguir parar de tremer do frio extremo para responder a uma pergunta colocada pela mulher, apenas para que esta depois saísse da sala.
Uma detenção kafkiana que é “um crime contra a humanidade”
O relatório da Organização das Nações Unidas diz respeito precisamente ao caso de Abu Zubaydah. De acordo com o The Guardian, este prisioneiro foi inicialmente catalogado pelos Estados Unidos da América como o número três na hierarquia de comando da Al Qaeda, mas mais tarde confirmou-se que Abu não era um membro da célula terrorista islâmica.
De acordo com o relatório, não é apenas Washington que tem culpa na detenção, encarceramento e tortura de Abu Zubaydah. O grupo das Nações Unidas responsabiliza ainda a Polónia, a Lituânia e o Paquistão pelo tratamento do prisioneiro. Ao Paquistão é atribuída culpa pelo seu envolvimento na detenção de Abu Zubaydah, e os outros dois países por albergarem instalações da CIA utilizadas para o encarceramento ilegal e tortura de prisioneiros.
Além destes países, o Reino Unido, Marrocos, a Tailândia e o Afeganistão foram considerados igualmente cúmplices na detenção de Abu Zubaydah, assim como na sua tortura. “O Reino Unido foi considerado responsável legal pela cumplicidade na tortura do nosso cliente e pela detenção permanente, e devem ser feitas indemnizações”, afirmou Helen Duffy, citada The Guardian. “Estas podem incluir ofertas de realojamento, reconhecimento e pedido de desculpa, reabilitação e compensação.”
Precisamos de reconhecer o facto de que a ‘guerra contra o terror’, travado ao longo de 20 anos, falhou”, continuou ainda a responsável. “Mas não podemos fingir que aprendemos as devidas lições enquanto perpetuamos os seus erros mais notórios.”
A prisão de Guantánamo tem 30 pessoas encarceradas, sendo que apenas uma delas foi condenada. As restantes ou estão envolvidas em procedimentos jurídicos militares ou aguardam transferência. Abu Zubaydah faz parte do grupo de três prisioneiros que não têm acusações pendentes sobre si nem aguardam transferência, numa espécie de vazio legal que os torna prisioneiros eternos deste centro de detenção.