A atriz Noomi Rapace a passear-se feliz por Lisboa não é cenário de rodagem de um filme internacional. E não será visita turística. Após ter feito uma masterclass partindo da própria carreira no Fest — Novos Realizadores/Novo Cinema’23 em Espinho, que decorreu entre 19 e 26 de junho, onde “se sentiu parte de uma família” e pôde “celebrar as imperfeições”, Noomi Rapace revelou ao Observador que mudou-se para a capital portuguesa.

Depois do momento de viragem que foi o papel de Lisbeth Salander na adaptação da trilogia de Stieg Larsson, a atriz sueca chegou a Hollywood (nos filmes de Sherlock Holmes ou da saga Alien, por exemplo), mantendo sempre a atenção a todos os universos cinematográficos — em 2021 protagonizou “Cordeiro”, produção “alternativa” algures entre o terror e a fantasia feita de folclore islandês: “Sinto que estou a voltar ao início, de volta ao drama. Tinha fome de fazer representação pura, sem grandes cenas de ação e tela verde. Voltar à essência e parar com as grandes produções. Mudar”. E continua nas mudanças.

Mas olhemos com cuidado para estas transformações: basta passar pela página oficial da atriz no IMDB para perceber que os grandes orçamentos e as plataformas de streaming continuam-lhe no currículo: o filme “Caranguejo Negro” (Netflix, 2022) do filme “Assassin Club” (Apple TV+, 2023). E ainda está para sair “Constellation” (também da Apple TV+), outro thriller psicológico, criado por Peter Harness (“Doctor Who”), que segue a vida de uma mulher que regressa à Terra depois de um desastre no espaço. Ou até a saga “Jack Ryan” da Amazon Prime Video.

[o trailer de “Cordeiro”:]

No meio de tudo isto, “Cordeiro” foi de facto um ponto de viragem. Já por várias vezes Noomi Rapace confessou que existe um antes e depois do filme de Valdimar Jóhannsson. A “fome” desse regresso ao passado, ao início de tudo, é pontuada também por uma vontade de voltar à altura em que era o teatro a fazer de grande palco, durante dez anos. Percebe-se: com apenas 15, saiu do recato da quinta onde foi criada para ir para a escola de teatro em Estocolmo. “O filme ‘Cordeiro’ foi avant-gard, obscuro, perverso. Já filmei em diferentes países, estive nos Estados Unidos da América. Estou a voltar à base. Agora nada me assusta. Durante muito tempo andei a fugir de algo, mas quero focar-me no momento. Sou uma apaixonada por cinema”, disse-nos a atriz durante o FEST.

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O espírito familiar que sentiu no evento de Espinho é para manter. Ali encontrou uma espécie de refúgio confortável, totalmente distante de qualquer estereótipo nórdico, distante e frio, desligado do que se passa à sua volta. Trata-se apenas de um preconceito que não se encaixa em Noomi Rapace. Muito distante da “revelação” na indústria cinematográfica que Lisbeth Salander, investigadora e hacker, repleta de piercings, de cabelo escuro e pontiagudo, marcada por uma grande tatuagem com um dragão nas costas.

Basta olhar para as vezes a que foi a talk-shows nos EUA, como foi o caso da sua visita, em 2019, ao “The Tonight Show”, apresentado por Jimmy Fallon. A certa altura, até o apresentador ficou surpreendido: a sueca, cara de tantas mulheres intensas, é, afinal, uma pessoa que gosta muito de se divertir. De dar festas. De ser nerd, sozinha ou acompanhada. E de usar perucas. “As pessoas têm medo de me conhecer, acham que me levo muito a sério, que estou zangada e que sou fria. Depois percebem que me rio imenso. Porque não? A trilogia Millenium colocou-me no mapa, colocou o tom, pensaram que era parecida com personagem principal. Agora até quero explorar a comédia, mas a mais arriscada, onde a escuridão se torna engraçada”, revela a também produtora.

[o trailer de “Os Homens que Odeiam as Mulheres”:]

Com 43 anos, e fazendo uma retrospetiva daquilo que tem sido a sua vida desde que fez parte do universo Millennium, Noomi Rapace acredita que tem feito parte das mudanças estruturais ligadas ao género feminino que têm sido feitas na indústria do audiovisual. Há ainda muito caminho para trilhar — “é responsabilidade nossa não aceitar a maneira velha de se trabalhar nesta área” –, é certo, mas há conquistas e certezas das quais não abdica. Afinal, estamos também perante uma “eterna otimista”. “Sei que é estranho mas não me vejo como mulher. Sou humana. O meu género é o meu género, mas não gosto de me colocar numa caixa. Recuso estar num projeto só para parecer bem, para ser a mulher perigosa e badass, que luta de saltos altos. Essa não sou eu”. Os dias em que lutava kickboxing para se preparar, os dias em que furou as orelhas ou obteve a licença para conduzir motas parecem ter terminado. Há uma nova Noomi Rapace para conhecer em Lisboa.

Quando a conversa desvia para a sua produtora, a sueca volta a falar das tais imperfeições que levou até Espinho. Sem revelar os projetos que têm em mãos, assegura “que se quer divertir e evitar pessoas aborrecidas”. Não é terreno novo, tendo sido produtora executiva de outros filmes que integra. E fala com conhecimento de causa e consciente da relevância que o cinema nórdico tem na indústria — mais recentemente com destaque para o trabalho de Ruben Ostlund, seu conterrâneo, com filmes como “Triângulo da Tristeza”, “O Quadrado” ou “Força Maior”, que colocaram o sueco na rota dos realizadores mias influentes da atualidade. “Sim, acho que a perceção sobre o cinema escandinavo está a mudar. Nós temos dor na alma, crescemos com muita escuridão, com a ideia de que a vida não é sempre alegre. Com isso vem a frustração e uma vontade grande de criar. A criação é oxigénio para a alma. E também existe a confiança de que se correr bem para um, corre bem para todos e cria-se uma tendência.”

Mas Noomi Rapace não tem só sangue sueco. O seu pai foi um ator e cantor de flamenco, espanhol de origem cigana. Agora que aterrou em Portugal, vai aproveitar para explorar essas raízes e o gosto pelo género musical. Do flamenco ao fado. De Badajoz às ruelas lisboetas nde ainda for possível ouvir o fado. Ir à procura da tal dor, mas noutra língua que não a sua. “Vou explorar essas raízes sim. Conhecer melhor o cinema português e continuar a explorar a vida em diferentes formatos. Em criança era mais introvertida, estou a descobrir essa mesma criança interior anos depois.”