Após cinco anos como bispo das Forças Armadas e de Segurança, Rui Valério, de 58 anos, tomou este sábado posse como 18.º patriarca de Lisboa, sucedendo ao cardeal Manuel Clemente nos comandos de uma diocese que inclui não só a cidade de Lisboa e a sua periferia, mas também toda a região Oeste, um território que se estende até Alcobaça.

Rui Valério tomou posse numa celebração litúrgica esta manhã na Sé de Lisboa perante os cónegos que compõem o Cabido da Sé, os padres de Lisboa, múltiplas entidades oficiais e ainda largas dezenas de turistas que durante toda a celebração não pararam de entrar na Sé, um dos monumentos mais visitados da cidade. Depois desta posse formal, está marcada para este domingo às 16h00, no Mosteiro dos Jerónimos, a entrada solene do novo patriarca de Lisboa.

Na cerimónia, Rui Valério falou durante 15 minutos, num discurso maioritariamente dirigido aos padres da diocese de Lisboa, perante quem tomou posse. Na intervenção, o novo patriarca de Lisboa falou dos desafios que a Igreja Católica enfrenta no mundo contemporâneo, marcado por “um misto de espiritualidade buffet com fé self-service“, e pediu aos padres de Lisboa que saibam propor a palavra de Deus ao mundo de hoje.

Apesar de ter feito uma intervenção breve e dirigida especialmente ao interior da estrutura eclesiástica (na celebração de domingo é esperada uma intervenção mais amplamente dirigida à sociedade), Rui Valério não esqueceu as vítimas de abusos sexuais de menores na Igreja. “Saúdo todas as vítimas de todos os tipos de abuso”, disse o bispo, dizendo que não queria repetir “palavras já esmorecidas pelo uso” e deixando apenas uma garantia da sua “presença constante” carregando com as vítimas o “fardo” do seu sofrimento, com vista à cura e à redenção.

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No início do seu discurso de tomada de posse, Rui Valério sublinhou a sua própria “fragilidade” perante o cargo que é chamado a assumir. “Sinto jubilo por experimentar tão intimamente a força do amor de Deus, que verdadeira elege e recria continuamente nas sendas da historia”, disse o bispo, sublinhando como cada um é chamado, com a sua “fragilidade”, a uma missão. Para ilustrar a ideia, lembrou “o estilo que Santo Agostinho imortalizou nas palavras: sem ti nada faz aquele que mesmo sem ti te criou”.

Além da “mensagem simbólica”, Rui Valério quis também deixar “pactos e compromissos” na sua primeira intervenção como patriarca. O primeiro compromisso, disse, é o de colocar Jesus Cristo no centro da sua ação. “Sempre tudo terá início nele”, diz, citando o Evangelho segundo São João, que diz que “por ele é que tudo começou a existir e sem ele nada veio à existência”.

Valério deixou também um agradecimento a Manuel Clemente por ter “engrandecido” a longa história do patriarcado de Lisboa e por ter sido “pastor e líder”, construindo “pontes entre o Evangelho e a integralidade da vida”. O novo patriarca dirigiu-se igualmente aos bispos auxiliares de Lisboa, Américo Aguiar e Joaquim Mendes, que assumiram de modo mais operacional a preparação da Jornada Mundial da Juventude, sublinhando a qualidade do evento e os frutos que a JMJ deu à diocese.

Mas foi à generalidade do clero da diocese, representado na celebração por numerosos padres, que Rui Valério dedicou a maior parte da sua intervenção. “É perante vós, convosco e no meio de vós que me posiciono”, assegurou logo no início. “Gostaria de expressar o meu agradecimento, em nome pessoal e da comunidade cristã, pela seriedade que colocais no desempenho do vosso múnus.”

O novo patriarca de Lisboa recordou as conclusões do Concílio Vaticano II para sustentar que o presbitério tem mais do que uma mera dimensão institucional e obriga os padres a viver a comunhão “com todo o nosso ser e em todos os níveis da nossa realidade”. Rui Valério caracterizou, por outro lado, os leigos, seminaristas, jovens e mulheres e homens de boa vontade como “os principais depositários da palavra que o Espírito Santo dirigiu à Igreja no decorrer da JMJ”. “Estais convocados para a expressar e nós para a receber”, salientou.

Desafios para a Igreja do século XXI

Rui Valério dedicou uma parte significativa da sua intervenção às “vicissitudes sociais e culturais das últimas décadas” que têm sido, para a Igreja, “despertadores para a missão evangelizadora”. Evitando alongar-se sobre o “novo paradigma” da sociedade, o novo patriarca sublinhou apenas que a sociedade “está em constante mutação, sendo que este caráter mutável constitui o âmago de todas as vertentes antropológicas” — das escolhas profissionais, que mudam “ao ritmo da oferta de emprego”, à “voragem” com que hoje se embarca em “experiências” do mundo.

“Também a dimensão da espiritualidade adquiriu um ritmo diferente”, sublinhou, caracterizando uma parte da vivência de fé dos dias de hoje como “um misto de espiritualidade buffet com fé self-service, em que se tenta dispensar os intermediários e se colhem das várias propostas fragmentos de conveniência”.

Isto, diz Valério, constitui para o clero católico “um real desafio”, que tem de saber encontrar fórmulas novas para a evangelização.

“Tal como sempre, também agora a Igreja lhe cumpre a grave responsabilidade de indicar o verdadeiro alimento, a verdadeira água”, disse Rui Valério, lembrando o discurso de São Paulo no areópago de Atenas. Citando o teólogo francês Yves Congar, uma das maiores referências da teologia do século XX, Valério sustentou que “o nosso mundo já não está naquela espécie de harmonia com a cultura católica, com os seus símbolos”, mas é “profano, secular, laico”, e também “científico e técnico, cada vez mais utilitário, hipersensual, violento, afrodisíaco”. Isto, “não porque esteja demonstrada a inexistência de Deus, mas porque se constrói cada vez mais fora da perspetiva de Deus e do seu culto”.

Tudo isto obriga a que a Igreja Católica contemporânea seja capaz de “gestos verdadeiros”, de uma “palavra simples e verdadeira” e de “sinais fortes e compreensíveis” para a sociedade. “Queremos ser Igreja missionária, que ao estilo de Maria se levanta apressadamente para a montanha do mundo e dos seus problemas” e “corre apressadamente para a humanidade”, sustentou no final da intervenção, recordando o lema da JMJ de Lisboa.

No início da celebração, o agora patriarca emérito, Manuel Clemente, dirigiu uma curta saudação a Valério, sublinhando que este sábado aconteceu “o momento inaugural do seu ministério patriarcal” na “cidade e na diocese”, que terá “o seu 45.º bispo e 18.º patriarca”. Clemente lembrou Lisboa como uma cidade e diocese “com tanta história, mas sobretudo com tanto ímpeto para criar futuro” — um ímpeto que foi reforçado, disse Clemente, por acontecimentos como a recente Jornada Mundial da Juventude.

“Tudo isto nos projeta para um futuro a construir”, disse Clemente, acrescentando que este futuro contará com os dons do “futuro patriarca”.

No final dessa saudação, o núncio apostólico em Portugal, o arcebispo italiano Ivo Scapolo, leu o mandato apostólico enviado pelo Papa Francisco, no qual o pontífice ordena a tomada de posse de Rui Valério como patriarca de Lisboa.

“Não há limites” no acompanhamento de vítimas de abuso

À saída da Sé de Lisboa, Rui Valério falou aos jornalistas que o questionaram sobre a realidade dos abusos sexuais de menores. O novo patriarca de Lisboa garantiu que “não há limites” no que pode ser feito para acompanhar as vítimas. “Todos, a começar por mim, mas toda a sociedade, temos de proceder a uma conversão para com as vítimas. Elas devem ocupar o centro. Devem ser elas que estão no centro. Só a partir da perspetiva da centralidade das vítimas é que podemos perceber os passos a dar”, disse.

Questionado concretamente sobre se admite compensações monetárias às vítimas, Rui Valério sublinhou que “não há aqui limites” para o que pode ser feito para ajudar as vítimas. “Gostaria que soubessem uma coisa: eu sou padre há 33 anos. Graças a Deus foram dois os casos que eu acompanhei, de duas pessoas que foram elas próprias vítimas de familiares”, lembrou, explicando que uma das jovens que acompanhou ainda hoje é incapaz de se concentrar. “Até para ter uma conversa linear é difícil”, o que se reflete “na sua vida”.

Os casos que acompanhou, e dos quais falou de rosto emocionado, ajudam Valério a ter uma “solidariedade de compreensão” dos casos das vítimas. “Somos formados a proporcionar a todas as pessoas vulneráveis o Reino de Deus, não um reino de terror”, disse, acrescentando que num futuro breve quer desenvolver novas iniciativas relativamente à questão dos abusos, adotando uma perspetiva “integral, envolvendo todas as dimensões”. “Não há linhas vermelhas” para a cura que é devida às vítimas, disse ainda.

“Vou ser um bispo da estrada”

O novo patriarca de Lisboa comentou também a sua própria nomeação, dizendo que não conhece os detalhes do processo que resultou no seu nome — e que também não os vai procurar. “Isto foi um assunto tratado ao mais alto nível, superior, nem foi aqui na Terra”, disse, reconhecendo novamente a sua “fragilidade” e lembrando que sempre foi um padre “presente no meio das pessoas”. “Sinto-me verdadeiramente um servo”, que está “nos serviços simples, humildes”.

Rui Valério, que como bispo das Forças Armadas e de Segurança passou pela República Centro-Africana, pelo Mali, pela Roménia e pela Lituânia a acompanhar os militares portugueses, confessou ter ficado surpreendido quando lhe foi indicado que iria para a capital do país, “onde está uma comunidade cristã pujante”. E garante: não foi nenhum homem que teve esta ideia, de que “só Deus é que se podia lembrar”:

Sobre o que se pode esperar para o seu mandato à frente do patriarcado de Lisboa, Rui Valério sublinhou que pretende dar à Igreja de Lisboa a sua “presença” e “proximidade”. “Vou ser um bispo da estrada, um bispo da rua, um bispo de junto das pessoas”, afirmou.

Rui Valério, natural de Ourém, na diocese de Leiria-Fátima, foi anunciado pelo Vaticano como novo patriarca de Lisboa no dia 10 de agosto, apenas quatro dias depois de o Papa Francisco regressar a Roma após a Jornada Mundial da Juventude, que reuniu cerca de 1,5 milhões de jovens de todo o mundo em Lisboa para um encontro com o Papa na primeira semana de agosto.

A JMJ representou o culminar de um período de dez anos em que Manuel Clemente liderou a diocese de Lisboa. Clemente foi, aliás, o grande responsável pela candidatura portuguesa à organização do maior evento católico a nível global — que depois foi, no terreno, organizado pelo bispo auxiliar Américo Aguiar, entretanto também nomeado cardeal pelo Papa Francisco.

Manuel Clemente sucedeu ao cardeal José Policarpo como patriarca de Lisboa em 2013 e foi nomeado cardeal em 2015, já depois da morte de Policarpo. Isto porque, segundo a tradição, o patriarca de Lisboa é habitualmente elevado a cardeal no primeiro consistório depois da sua nomeação — mas também não é costume que haja dois cardeais eleitores na mesma diocese. Por isso, ainda há dúvidas sobre quando Rui Valério será criado cardeal: Manuel Clemente tem 75 anos e mantém o direito de voto num conclave até aos 80, pelo que Valério poderá ter de esperar cinco anos pela criação cardinalícia.

Uma boa parte do período de Manuel Clemente como patriarca de Lisboa ficou marcado justamente pelos trabalhos de preparação da JMJ, depois de em 2019 ter sido conhecida a vitória da candidatura portuguesa. Clemente também se viu no olho do furacão mediático durante o pico da crise dos abusos de menores, depois de várias notícias terem dado conta de dúvidas no modo como, no passado, como bispo auxiliar de Lisboa, tinha gerido alguns casos de abuso.

Porém, Clemente foi também um dos grandes impulsionadores do combate aos abusos na Igreja num tempo mais recente. Foi ele quem, como presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, representou Portugal na cimeira que o Papa Francisco organizou em fevereiro de 2019 para discutir a crise dos abusos na Igreja global — e foi ele o primeiro a anunciar a criação de uma comissão diocesana de proteção de menores, logo em abril de 2019, ainda antes de o Papa determinar a sua obrigatoriedade.

O bispo intelectual que nunca esqueceu os bairros sociais. Quem é Rui Valério, o novo patriarca de Lisboa?

A crise dos abusos, que continua a ser um tema quente no contexto da Igreja Católica em Portugal, será um dos grandes desafios para Rui Valério — que, como bispo das Forças Armadas, a única diocese onde não houve casos, não foi ainda colocado à prova neste assunto. Na primeira mensagem que dirigiu aos diocesanos de Lisboa após a nomeação, elencou o combate aos abusos como prioridade.

Nascido em 1964 em Ourém, Rui Valério pertence à Congregação dos Missionários Monfortinos, tendo sido o primeiro padre monfortino português a chegar a bispo. Antes disso, estudou Filosofia e Teologia em Roma, tornando-se um intelectual de reconhecida qualidade.

Durante três décadas de padre, Rui Valério assumiu funções de pároco em Castro Verde (Beja) e Póvoa de Santo Adrião (Lisboa), paróquias entregues à sua congregação, e também de capelão do Hospital da Marinha e da Escola Naval.

Durante o seu período como pároco na Póvoa de Santo Adrião, na periferia de Lisboa, é lembrado pelo seu forte trabalho pastoral junto dos bairros sociais mais pobres, como pode ler neste perfil traçado pelo Observador. Depois de ter sido elevado a bispo, continuou sempre a partilhar com os colegas padres monfortinos um apartamento na Póvoa de Santo Adrião, sendo apontada a sua simplicidade na vida quotidiana — que contrasta com o fausto habitualmente associado aos patriarcas de Lisboa.

Atualizado às 14h05 com as declarações de Rui Valério aos jornalistas à saída da Sé de Lisboa