Afinal, o DJ Marshmello não veio à Web Summit este ano e nem sequer tem um projeto para estar associado a um mundo virtual com a marca desportiva Adidas, chamado Adiverse.

A história começa na passada quarta-feira, 15 de novembro, quando um “executivo” chamado Aristide Feldholt, inscrito na Web Summit como diretor financeiro da Adicoin, uma criptomoeda ligada à Adidas, subiu a um dos palcos do evento para uma sessão sobre “democratização de riqueza através de um novo tipo de cripto”. A sessão seria ainda “a festa de lançamento da Adicoin”, com o DJ Marshmello. Ao longo das semanas que antecederam o evento, a presença do DJ, que atua sempre com o rosto coberto, foi ganhando destaque na lista de oradores.

Feldholt, o “executivo”, subiu ao palco com uma máscara facial da Adidas e anunciou a “mais importante inovação de toda a história comercial”: uma moeda virtual, uma “inovação de ponta”, que estava “em desenvolvimento há 99 anos”. Falou sobre a criação da Adidas, na Bavária, e até as ligações que a marca teve com o regime nazi. Os fundadores e Rudi Dassler juntaram-se ao partido de Adolf Hitler em 1933. Anos mais tarde, já durante a guerra, a empresa forneceu calçado ao exército alemão. O “executivo” continuou a mostrar como a Adidas tem feito “outsourcing” noutros países ao longo dos anos, até chegar à relação da marca com Kanye West, que terminou de forma atribulada devido a comentários anti-semitas do norte-americano.

Depois da contextualização, foi revelado o Adiverse, um mundo virtual onde os trabalhadores da empresa, “mesmo os mais pobres”, poderiam ter tudo. “Onde trabalhadores que não conseguem ter uma refeição por dia podem ter banquetes à noite.”

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Nas imagens, que estão disponíveis no YouTube, é possível ver “Marshmello” a entrar em palco para mostrar uma música, acompanhado por um grupo de dançarinos. “Tenho algo a dizer. Vou lançar a minha música (…) e vou ser franco. Sonho com um mundo melhor, mas é difícil festejar quando tanta gente está a sofrer.” Os dançarinos do grupo português LisbonBreakers, envergando fatos pretos com as três riscas brancas associadas à marca de origem alemã, começam a enrolar-se em cordas. Num gesto simbólico, as amarras vão sendo cortadas.

Mas, afinal, nem Aristide Feldholt tinha ligações à marca nem “Marshmello” era o verdadeiro DJ. A revelação só chegou mais tarde, já após o fim da cimeira de tecnologia e empreendedorismo, conforme escrevem a Men’s Health e a TSF.  Era uma ação do grupo ativista The Yes Men, que  na realidade são Andy Bichlbaum e Mike Bonanno, numa crítica às condições laborais de trabalhadores em fábricas da Adidas. “Não se trata de proteger os trabalhadores, mas de dar-lhes a oportunidade de viver com seres humanos”, terá dito o “executivo”, durante a conferência de imprensa que se seguiu à sessão.

“Do palco da maior ‘conferência de tecnologia do mundo, um ‘executivo da Adidas anunciou para uma multidão de pé que a Adidas estava a lançar um mundo virtual para trabalhadores da indústria têxtil que são mal pagos em muitas fábricas no estrangeiro, para que possam apreciar os prazeres que não conseguem ter na vida real”, escreveu o grupo no site onde revela a ação. Nos ecrãs, surgiam imagens “profundamente horríveis de um direto do AdiVerse”.

No site, há vários materiais: imagens e vídeos da conferência de imprensa e da sessão ou ainda um comunicado, que foi enviado à comunicação social, onde é referido um “chip quase imperceptível implantado subcutaneamente nos trabalhadores”. O chip permitiria à empresa aceder a dados do trabalhador em tempo real.

A revelação da farsa só foi feita esta sexta-feira, já após o fim da Web Summit. O grupo refere que “centenas de participantes aplaudiram entusiasticamente” e que, depois “jornalistas numa conferência de imprensa cheia não fizeram questões difíceis e um deles até disse que o esquema era “revolucionário”. “Ninguém expressou objeções reais.”

E, apesar das “descrições explícitas”, o grupo relata que a “audiência simplesmente aplaudiu e depois inundou ‘Marshmello’ com pedidos de autógrafos”.

“Precisamos mesmo de adultos na sala”, continua o comunicado do grupo de ativistas, numa citação de Bichlbaum. “Os ‘techies’ claramente não estão a prestar atenção. É como se milhares de pequenos Eichmanns [uma referência a um burocrata alemão que contribuiu para o Holocausto, mas que negou responsabilidades porque dizia só seguir ordens de superiores] ou algo do género, mas estão a seguir o dinheiro em vez de ordens.”

O grupo explica que os LisbonBreakers, o grupo de dançarinos que esteve na atuação, foi contratado sem saber que se tratava de uma farsa.

O verdadeiro Marshmello nunca esteve sequer em Portugal. Depois de revelada a ação do grupo Yes Men, o DJ manifestou-se na rede social X, antigo Twitter. “Quem quer que seja que a Web Summit marcou para atuar e dar entrevistas não era eu. Peço desculpa a quem tenha sido enganado por este impostor, a minha equipa legal já entrou em contacto com a Web Summit.”

À Men’s Health, o verdadeiro DJ Marhsmello disse que os seus “advogados entraram em contacto com a Web Summit para dizer que eu não iria participar e mesmo assim eles avançaram com um impostor”. A revista nota que, no dia em que o suposto “Marshmello” tinha de estar em Lisboa, o verdadeiro tinha uma atuação marcado em Las Vegas. Nas redes sociais do DJ, nem sequer foram feitas menções a uma passagem pela Web Summit.

Entretanto, o perfil de “Marshmello” foi retirado da aplicação da Web Summit. O do “executivo” ainda continua disponível. A sessão que estava disponível também desapareceu da agenda.

Esta é a segunda vez este ano em que o grupo faz uma ação contra a Adidas — a primeira foi feita durante a Semana da Moda de Berlim, quando enviaram um falso comunicado à imprensa sugerindo que o CEO, Bjørn Gulden, ia contratar Vay Ya Nak Phoan, um trabalhador e sindicalista de uma fábrica no Cambodja, para o cargo de co-CEO.

O Observador já contactou a organização da Web Summit, aguardando comentários.

Ao Fashion United, Stefan Pursche, diretor de relações públicas da marca, disse que a marca tem “garantido condições e salários justos aos trabalhadores, assim como um ambiente de trabalho seguro para os seus fornecedores.” “A Adidas tem garantindo condições de trabalho justas e seguras aos seus funcionários na cadeia de produção ao longo de mais de 25 anos, através de uma variedade de medidas.” A empresa transmitiu ainda que “o salário dos trabalhadores nas fábricas é de forma geral significativamente mais alto do que o respetivo salário mínimo” em cada um dos países.

Num email enviado ao Observador, a Adidas nega as afirmações feitas pelo grupo de ativistas. “Rejeitamos as alegações”, diz a empresa, acrescentando que tem o programa ‘Workplace Standards’ tem o compromisso de garantir que os fornecedores aumentam progressivamente a compensação aos trabalhadores e as condições de vida, através de um desenvolvimento contínuo de sistemas de compensação, benefícios, programas sociais e outros serviços.”

“Uma equipa de cerca de 50 especialistas em todo o mundo trabalha com os países fornecedores todos os dias para garantir que os nossos critérios de trabalho são aplicados e cumpridos.” A Adidas indica na mesma informação que fez “mais de 1.200 auditorias” a fábricas de fornecedores no ano passado e que, em caso de incumprimento dos critérios, tem “um mecanismo de sanções em vigor que pode até levar ao fim de uma relação comercial”.

Grupo Yes Men mostra-se “ofendido” por ausência de contacto da Web Summit e Adidas

O Observador perguntou ao grupo The Yes Men se o falso “Marshmello” tinha feito uma proposta à conferência para ser orador ou se tinha sido contactado pela organização. “Temos uma forma especial (bem, não tão especial) de fazer estas coisas”, diz o falso executivo “Aristide” num email enviado ao Observador, sem no entanto explicar de quem partiu o primeiro contacto.

“Mas a Web Summit claramente não tentou de forma alguma verificar qualquer identidade. Uma simples pesquisa na web teria mostrado que o Aristide não existia. O Marshmello teria sido ainda mais fácil.”

O grupo diz que ainda não foi contactado pela Web Summit ou pela Adidas, após a revelação da ação. “Não, não tentaram. Sentimo-nos ofendidos.”

(Atualizado às 16h com comentário do grupo The Yes Men)