Numa varanda ventosa, com os pináculos de igrejas e edifícios públicos de Moscovo como cenário, um homem de bomber azul e camisa azadrezada assevera: “Estamos no jornalismo. Informar é o nosso dever”. Em tom firme, explica que as guerras no mundo, particularmente o conflito na Ucrânia, estão a redefinir a ordem mundial. “Isto não são mudanças pequenas, são desenvolvimentos que mudam a História. Vão definir as vidas dos nossos netos”, continua, indicando que a maior parte do mundo tem esta perceção porque consegue sentir o impacto nas suas vidas.
“Mas os cidadãos do mundo anglófono continuam como que inconscientes: pensam que nada mudou assim tanto. Mas se o pensam, é porque ninguém lhes diz a verdade”. E sentencia: “A comunicação social está corrompida e mente aos seus leitores e espectadores”.
Quem o diz é Tucker Carlson, ex-estrela da Fox News com mais de 30 anos nos meios de comunicação social. Por isso, e porque “a maioria dos americanos nunca ouviu a voz” de Vladimir Putin, Carlson anunciou no X que vai entrevistar o Presidente da Federação Russa em direto, sem cortes e para quem queira ver, sobre as causas e motivações da invasão da Ucrânia. O próprio explica que a entrevista surge da necessidade de contraditório às entrevistas ao Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que classifica como “sessões de bajulação” e “propaganda governamental” para amplificar a participação americana no conflito.
Why I'm interviewing Vladimir Putin. pic.twitter.com/hqvXUZqvHX
— Tucker Carlson (@TuckerCarlson) February 6, 2024
Assim, a audiência poderá finalmente “decidir por si”. “A liberdade de expressão é nossa por direito. Não estamos aqui por gostarmos de Vladimir Putin; estamos aqui porque amamos os Estados Unidos da América”, remata.
Mas quem é este homem, o primeiro ocidental a quem Putin dá uma entrevista desde Fevereiro de 2022? Polémico e polemista, gera ódios e paixões em igual medida tanto nos Estados Unidos como no mundo. A revista Time descreve um homem assente na “provocação” e a New Yorker classifica-o como “a voz mais influente da direita”. Rachel Maddow, da liberal MSNBC, afirmou que “ele sempre foi talentoso”; os fãs elogiam a postura “destemida” e “o compromisso com a verdade”.
“Devias considerar o jornalismo. Eles aceitam toda a gente.”
Tucker Carlson nasceu em São Francisco em 1969, filho de Richard Carlson e Lisa McNear. Os pais separaram-se em 1976: Tucker e o irmão mudaram-se com o pai para San Diego; a mãe, artista, partiu para Paris. “Dick” Carlson, como era conhecido, era jornalista. Casou-se em segundas núpcias com a herdeira de um magnata de comida congelada, o que garantiu a Tucker uma educação em St. George’s, um colégio interno em Rhode Island. Daí, foi para Trinity College, no Conneticut, de onde se licenciou em 1992.
Desse período, os colegas que com ele estudaram lembram um rapaz “seguro de si mesmo”, que gostava de debater e, sobretudo, de contrariar. Terminados os estudos — de que recorda sobretudo as festas e bebedeiras — candidatou-se para trabalhar na CIA, mas foi recusado. Aí, Carlson pai sugeriu: “Devias considerar o jornalismo. Eles aceitam toda a gente”. E Carlson filho assim fez.
Estreou-se como fact-checker para a Policy Review, uma publicação de pendor conservador. Em entrevista ao Columbia Journalism Review, uma publicação específica para o setor, Tucker confirma a prescrição do pai: “Acabei por trabalhar para a revista porque o nível estava assim tão baixo“.
Em 1995, juntou-se à The Weekly Standard, uma revista fundada por William Kristoll. Até aos primeiros anos do milénio, Carlson escreveu artigos, colunas, perfis e peças avulso para diversas publicações, incluindo a Esquire, a New Republic, The Atlantic e o Wall Street Journal. Embora tivesse participações pontuais como “conservador de serviço” em espaços de comentário e debate na televisão, é em 2000 que passa para o grande ecrã — e, com os holofotes da estação, para os da atenção mediática.
Na CNN, Tucker Carlson começou como co-anfitrião do The Spin Room, um breve programa de debate político que foi, contudo, cancelado em 2001. Foi no Crossfire, por isso, que Carlson pôde demonstrar o gosto pela peleja e, sobretudo, pelo contraditório. Os debates entre Carlson e os dois convidados de esquerda eram pautados pela crispação e uma postura cáustica. A uma atitude incontrita e indiferente na defensiva e de agressividade espirituosa na ofensiva, Carlson complementava o modo de estar de um fanfarrão inteligente, que cultivava, com um símbolo visível: o laço, hábito que adquiriu no colégio interno, e tornou a sua imagem de marca. Nisto, capitalizava a projeção da perceção pública das elites — republicanas ou democratas — que estudavam nos colégios e universidades privadas da costa Leste dos Estados Unidos.
O comediante Jon Stewart denunciou em direto, como convidado, que o Crossfire estava a “ferir a América” pela agressividade e polarização do discurso, que transformava discussões complexas num palco para guerrilha partidária. O presidente da CNN anunciou em janeiro de 2005 que o programa seria cancelado, apontando as críticas levantadas por Stewart como uma das justificações.
De dentro para fora, até estar fora de vez
Por esta altura, a voz conservadora de Carlson já tinha consideração por parte da opinião pública. Por isso, e sem laço a partir de 2006, retoma a atividade televisiva com um programa em nome próprio, Tucker, na MSNBC. Mas é na Fox News, para onde é convidado com crescente regularidade a partir de 2009, que cavalga a onda, para que o próprio contribuiu, de um discurso cada vez mais polarizado no debate político entre Democratas e Republicanos. O cenário ótimo para o estilo abrasivo de Carlson, que cria uma audiência junto das audiências conservadoras da estação.
Pouco depois da eleição de Donald Trump, em 2016, Carlson é convidado para ter o seu próprio programa, Tucker Carlson Tonight, em horário nobre de segunda a sexta-feira. O programa, além da exposição pelo anfitrião, incluía entrevistas e conversas um-a-um com diversos convidados. No ar, Carlson várias vezes considerava ou defendia notícias falsas e/ou teorias da conspiração.
Como Donald Trump, há dois elementos à partida contraditórios na base do seu sucesso. Por um lado, a fama, o sucesso, e a fortuna, que naturalmente atrai atenção; por outro, a vigorosa denúncia das “elites”, um “eles” que inclui políticos, imprensa, empresas e empresários, artistas e administração pública — em suma, o “establishment”, o sistema —, que vai do “declínio” e a degeneração à perversão e atitudes “anti-americanas” e “anti-naturais”. A crítica estende-se para lá dos Estados Unidos, e inclui as elites económicas e financeiras — o Fórum Económico Mundial é um alvo habitual — e qualquer personagem ou instituição que associem ao “grande consenso liberal”.
Para gáudio dos seus espectadores, Carlson esteve envolto em múltiplas controvérsias nos mais quentes debates das “guerras culturais”: as alterações climáticas e a transição energética, a imigração e o muro proposto por Trump, o racismo e o movimento Black Lives Matter, assuntos relacionados com a comunidade LGBT e ainda a pandemia de Covid-19, criticando as autoridades de saúde e a vacinação e promovendo tratamentos alternativos. E, fundamentalmente, os acontecimentos no Capitólio a 6 de janeiro, depois da derrota da segunda candidatura presidencial de Trump.
Foi precisamente a discussão sobre a suposta fraude eleitoral e a alegada manipulação de resultados nas eleições de 2020 que conduziram à sua saída da Fox News. A Dominion Voting Systems, responsável por urnas de voto eletrónico, processou a estação por difamação, alegando que vários pivôs e comentadores da estação difundiram informações que sabiam ser falsas sobre suposta interferência nos dispositivos para assegurar a eleição de Joe Biden para a Casa Branca. Em abril de 2023, a estação conseguiu evitar o julgamento através de um acordo no valor superior a 700 milhões de euros; mas, em maio, terminou os vínculos contratuais com Carlson.
Quando saiu, a Fox News era o canal de notícias por cabo mais visto, e o programa tinha uma média de 3 milhões espectadores diários, além do melhor rating entre audiências dos 25 aos 54 anos. Contudo, embora as razões para o despedimento não fossem inicialmente públicas, o New York Times avançou mais tarde que a saída do apresentador se deveu ao acumular de polémicas e mal-estar dentro da estação, devido, entre outras coisas, a mensagens violentas — defendeu que um membro dos Antifa fosse espancado até à morte —, de cariz racista, e à divergência entre o que dizia no ar e nos bastidores. Sobre Trump, por exemplo, mensagens reveladas por ocasião do diferendo legal com a Dominion exposeram o que Carlson pensava do ex-presidente: “Odeio-o”.
Orgulhosamente só?
A 6 de junho do mesmo ano, Carlson começou a lançar o programa “Carlson no X”, anunciando que iria publicar vídeos, com declarações, entrevistas e reportagens da sua autoria naquela rede social. A Fox News intimou-o a terminar o programa, embora sem sucesso. Desde então, o programa inclui entrevistas ao Presidente argentino, Javier Milei, e ao primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán. Em agosto, entrevistou Donald Trump, depois de este se recusar a participar num debate para as primárias republicanas na Fox News. A entrevista, transmitida em paralelo ao debate, reuniu mais de 74 milhões de visualizações, indica a Reuters.
Ep. 19 Debate Night with Donald J Trump pic.twitter.com/ayPfII48CO
— Tucker Carlson (@TuckerCarlson) August 24, 2023
Elon Musk, dono do X, destacou que a “praça pública digital é para todos” e convidou outros comentadores televisivos a lançarem os seus próprios programas na plataforma.
A 11 de dezembro, lançou a Tucker Carlson Network (TCN). Esta plataforma permite aceder a conteúdos produzidos pelo ex-apresentador, e inclui um serviço de subscrição que compreende documentários, reportagens e behind-the-scenes. Os conteúdos gratuitos vão continuar a ser disponibilizados no X — incluindo a entrevista ao Presidente russo.
Quando a revista Time escolheu Zelensky como “Personalidade do Ano”, em 2022, Carlson afirmou que o Presidente ucraniano não tinha qualquer interesse na liberdade e na democracia; a que acrescentou a acusação de ser um “perigoso autoritário” que se estava a aproveitar do apoio americano para erigir um estado policial na Ucrânia. “Zelensky está bem mais próximo de Lenine do que de [George] Washington. É um ditador”, declarou.
Tony Diver, editor do britânico Telegraph para os Estados Unidos, escreveu naquele jornal que a concessão da entrevista “pode bem refletir mais duramente sobre as suas [de Carlson] credenciais de repórter do que ele acredita”. Chrisitane Amanpour, reputada jornalista da CNN, reagiu no X ao anúncio da entrevista a Putin. “Tucker acha mesmo que nós, jornalistas, não estamos todos os dias a tentar entrevistar o Presidente Putin, de que começou a sua invasão da Ucrânia? É absurdo”, aponta.
Does Tucker really think we journalists haven't been trying to interview President Putin every day since his full scale invasion of Ukraine? It's absurd — we'll continue to ask for an interview, just as we have for years now. https://t.co/pW8F2zbq1i
— Christiane Amanpour (@amanpour) February 6, 2024