Foi uma audição marcada por silêncios e acusações. O ex-secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales compareceu na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao caso das gémeas tratadas com o medicamento Zolgensma e, invocando o direito ao silêncio (devido à sua condição de arguido num processo judicial que investiga o alegado favorecimento às duas crianças), não respondeu à maioria das perguntas colocadas pelos deputados.
Ainda assim, deixou críticas às conclusões do relatório da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS), defendeu que não houve “acesso preferencial” das crianças ao medicamento e lançou dúvidas sobre a desmarcação das consultas no Hospital Lusíadas — onde também dava consultas a médica neuropediatra Teresa Moreno (do Hospital de Santa Maria) e que acabaria por acompanhar as gémeas no SNS.
Logo no final da intervenção inicial, Lacerda Sales deixou um alerta aos deputados da comissão de inquérito: não iria responder a qualquer pergunta, devido ao seu estatuto de arguido. “O meu estatuto de arguido confere-me o direito de me manter em silêncio para não me autoincriminar. Estou proibido de fazer qualquer declaração sobre factos. Vou manter-se em silêncio em todas as questões“, disse Lacerda Sales.
Lacerda Sales de “consciência tranquila”. A função de um governante “é ajudar as pessoas”
Depois de uma breve discussão, os partidos decidiram avançar para a fase das perguntas e Lacerda Sales acabou por responder aos deputados, mas quase nunca a questões diretamente relacionadas com os factos do caso das gémeas. Uma das exceções foi uma pergunta sobre os contactos feitos por Lacerda Sales com membros do governo e com o Presidente da República. O ex-secretário de Estado negou negou ter alguma vez falado com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (nem com o ex-primeiro-ministro, António Costa, ou com a ex-ministra da Saúde, Marta Temido), sobre o caso das gémeas.
O também médico ortopedista disse estar “de consciência tranquila” acerca da sua intervenção neste caso. “A minha conduta não é suscetível de merecer qualquer tipo de censura“, sublinhou, acrescentando não “estar disponível para servir de bode expiatório num processo político e mediático”.
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Lacerda Sales deixou várias acusações à IGAS, por causa das conclusões da inspeção que aquela entidade realizou ao caso das gémeas. “A IGAS apresenta conclusões, mas sem justificação plausível, fundamentadas em meros indícios e suposições”, e do qual constam várias “contradições”, diz o ex-secretário de Estado da saúde. Para o também médico, o relatório é baseado em notícias da comunicação social. Para Lacerda Sales, o documento — que concluiu que foi a secretária de Lacerda Sales a marcar a consulta — “é uma tentativa de corresponder à pressão mediática da comunicação social, que hoje se propõe a tudo menos ao prosseguimento da sua função — a busca e apuramento da verdade”.
O também médico ortopedista sublinhou que as duas “crianças receberam o tratamento de acordo com indicação exclusivamente clínica” e que “ninguém passou à frente de ninguém, pois nem sequer havia lista de espera”.
O ex-secretário de Estado António Lacerda Sales admitiu que o governo encaminhou “centenas” de pedidos para os hospitais, vindos de cidadãos que pediam ajuda ao Ministério da Saúde. Questionado pela deputada da Iniciativa Liberal Joana Cordeiro sobre se os encaminhamentos para as várias entidades poderiam ser entendidos como pressões da tutela para que os processos prosseguissem, Lacerda Sales respondeu dizendo que a função dos governantes é “ajudar as pessoas”.
“Um governante está lá para quê? É para ajudar as pessoas”, vincou o ex-secretário de Estado, reforçando a ideia de que não houve “acesso preferencial” das gémeas ao medicamento para a Atrofia Muscular Espinhal.
“É um orgulho que o meu país tenha tratado 36 crianças com este medicamento inovador”, realçou Lacerda Sales, questionando o que teria acontecido se as gémeas luso-brasileiras não fossem tratadas.
“E se o Estado, através do SNS, tivesse negado, omitido ou protelado o tratamento? Qual seria o sentimento em torno dessa polémica? Provavelmente estaríamos aqui a apurar responsabilidades dessa omissão.” Dando a entender estar de consciência tranquila quanto à sua atuação no caso, Lacerda Sales citou um excerto de um poema de Fernando Pessoa. “Eu sigo o meu destino, rego as minhas rosas e o resto são as sombras das árvores.”
Questionado sobre a falta de esclarecimentos, Lacerda Sales referiu que as dúvidas que deixou no início da audição são “um bom caminho” para os deputados poderem continuar o seu trabalho nas audições seguintes.
Recorde-se que, na sua intervenção inicial, Lacerda Sales questionou a razão pela qual foi desmarcada a consulta no Hospital dos Lusíadas, que estava marcada para o dia 6 de dezembro de 2019. “A 22 novembro de 2019, a consulta do Hospital dos Lusíadas foi desmarcada. Coincidência ou não? Quem desmarcou a consulta? Por que se esgotou esta via de acesso quando não havia ainda consulta marcada num hospital EPE? [do SNS]”, questionou Lacerda Sales, acrescentando que “o relatório da IGAS deixa por explicar o motivo pelo qual foi desmarcada a consulta do dia 6 de dezembro de 2019 e que permitiria também a referenciação das meninas e o acesso à primeira consulta no SNS”.
Lacerda Sales já tinha dito que a médica neuropediatra Teresa Moreno (que, à época, dava consultas naquele hospital privado e no hospital de Santa Maria) é “a chave” do caso.
“Assim, a situação das crianças era conhecida por várias entidades e médicos à data da primeira consulta agendada. Considerando as várias vias de acesso, como é que esta situação não foi reportada ou referenciada?”, questionou o também médico ortopedista.
Ex-governante diz que já assumiu “responsabilidade política”
Já na parte final da audição e questionado sobre o deputado do CDS João Almeida sobre a responsabilidade política no caso, Lacerda Sales disse que já a assumiu. Sobre o que considera ser a “responsabilidade técnica”, voltou a remeter-se ao silêncio.
Questionado sobre o louvor concedido à ex-secretária pessoal Carla Silva (a funcionária que disse à IGAS ter sido instruída a enviar o email a marcar a consulta), Lacerda Sales mostrou-se arrependido. “Se soubesse desta matéria não voltava a proferir este despacho”, vincou, salientando que só concedeu o louvor, à época, por não ter conhecimento da atuação da subordinada no caso das gémeas.