Um ano depois, processos em tribunal perseguem a Farfetch. Ainda a venda do primeiro unicórnio português à Coupang não estava concluída, já um grupo de investidores dava entrada no Tribunal Distrital dos Estados Unidos, em Nova Iorque, de uma ação contra a Farfetch Limited, com acusações de fraude. Os visados eram José Neves, fundador e ex-CEO da empresa, Elliot Jordan, ex-diretor financeiro, e Stephanie Phair, ex-presidente do grupo.
José Neves, o homem que sonhava ser astronauta e não conseguiu manter o unicórnio Farfetch a voar
Os meses passam e o processo anda com argumentos das partes para trás e para a frente no tribunal de Nova Iorque. Em setembro deste ano, a defesa de José Neves entregou uma moção de arquivamento da queixa dos investidores. E, em novembro, os investidores voltam a ripostar pedindo a rejeição dessa moção.
Nos processos, a que o Observador teve acesso, estão dezenas de páginas de argumentos e contra-argumentos, referências a “quebra-cabeças” e abordagens “lava-loiça”. E há novos processos na justiça a ser preparados, com a ajuda do Telegram.
Fernando Sulichin e Yuanzhe Fu são os dois investidores que dão a cara por tantos outros no processo que está em análise em Nova Iorque. A ação coletiva acusa os antigos administradores da empresa fundada pelo português José Neves mas com sede no Reino Unido (e que foi cotada nos Estados Unidos) de agir com intenção fraudulenta e de enganar propositadamente quem investiu dinheiro na empresa.
Como? Através, alegam, de declarações “materialmente falsas e enganosas” e “relatórios financeiros não confiáveis” — que pretendiam dar uma imagem “ilusória de sucesso” aos investidores, enquanto os administradores estariam supostamente cientes do declínio contínuo da empresa no mercado.
João Matos é um desses investidores. Em entrevista ao Observador explica que investiu pela primeira vez na empresa em 2022 e num ano acabou por perder 150 mil dólares — ou seja, 140 mil euros.
Diz que escolheu a Farfetch por causa da informação que a empresa passava ao mercado, que revelava, diz, um “otimismo brutal” e que fazia adivinhar que 2023 ia ser o seu melhor ano — quando na verdade foi o ano em que precisou de ser vendida para não declarar falência.
Os relatórios e contas da empresa em 2023 são apontados como prova disso. Nos documentos partilhados pelos investidores, pode ler-se, no relatório do terceiro trimestre daquele ano, que a “equipa da Farfetch atingiu o objetivo do final do ano de se aproximar do breakeven” — e meses antes, ao anunciar os resultados do segundo trimestre, a Farfetch escrevia que tinha “expectativas de forte crescimento”, com perspetiva de lucro e de gerar mais dinheiro do que estava a gastar nas operações e em investimento (free cash flow positivo).
Muitos membros do círculo próximo de José Neves já sabiam em agosto de 2023 que a empresa estava a falir quando lançaram resultados trimestrais maravilhosos e diziam que 2023 ia ser o melhor ano da empresa. Não tirei dinheiro nenhum porque acreditei neles, numa empresa cotada em bolsa e auditada. Não acreditei que fosse possível mentir ou enganar.”
Por isso, os investidores questionam: em poucos meses, o que pode ter corrido assim tão mal?
Ouça aqui o podcast “Onde Pára o Caso”, dedicado aos combates judiciais de José Neves.
“Quebra-cabeças” e “lava-loiças”. José Neves tentar arquivar processo (mas tem outro à espreita)
Como José Neves está a tentar arquivar as acusações em tribunal
Na moção de arquivamento, a defesa alega que a acusação não apresenta “nenhuma teoria viável de fraude relativa aos investimentos dos acionistas”. E que, desta forma, não é possível provar qualquer intenção da fraude de que estão a ser acusados.
Os investidores citam 80 informações divulgadas pela Farfetch Limited — durante quase dois anos — que os terão levado a investir milhões de euros na empresa, com base no que dizem ser pressupostos errados, mas os argumentos são rejeitados pela defesa de José Neves, que não encontra qualquer “teoria viável de fraude” relativa ao investimento dos acionistas.
Aliás, de acordo com a defesa, as dezenas de informações referidas lançam uma “caça ao tesouro” por via de “citações em grandes blocos”, muitas das quais com “vários parágrafos”, o que leva os advogados a considerar que “estes argumentos de quebra-cabeças” são razão que chegue para “rejeitar as acusações”. Mas não ficam por aí. “A abordagem de lava-loiça dos requerentes mostra que não podem identificar uma declaração específica que acreditem ser falsa e enganadora” (a ‘abordagem de lava-loiça’ ou na tradução à letra ‘tudo menos o lava-loiça’ refere-se à expressão inglesa ‘everything but the kitchen sink’, que pretende significar que incluem tudo — um ditado similar em português seria ‘tudo e mais um par de botas’).
Enquanto rejeita os argumentos dos investidores, a defesa insiste que a Farfetch fez “divulgações detalhadas sobre o crescimento dos negócios e os riscos que estava a enfrentar”. Tudo o resto, insiste a defesa de Neves, Jordan e Phair, são “casos clássicos de exagero corporativo” ou “expressões de otimismo e outros exageros que não são suficientes” para alegar fraude.
As projeções dos resultados eram acompanhados por uma linguagem que procurava advertir os investidores, asseguram os advogados, e que incluía os riscos da natureza imprevisível da indústria e das condições macroeconómicas — o elencar dos riscos é obrigatório nas empresas cotadas.
Investidores organizam-se no Telegram. E ameaçam com novo processo judicial, desta vez no Reino Unido
É no Telegram, num grupo chamado “Farfetch Investors”, que se reúnem investidores, colaboradores e ex-colaboradores (mas também jornalistas) da empresa com ADN português. São perto de 700 membros, grande parte das quais pessoas que “foram apanhadas de surpresa” pela queda da Farfetch.
O grupo tem um coordenador: João Matos. O investidor português perdeu 150 mil dólares (140 mil euros) em 2022, no ano em que nasceu a sua primeira filha. Ao Observador, critica o negócio “sem precedentes”, que aconteceu “de forma opaca e de um dia para o outro” — a venda da Farfetch à Coupang.
A história de João Matos não é única. O grupo de Telegram foi criado precisamente em dezembro de 2023, quando começaram a circular as primeiras notícias da venda da Farfetch. Todos, colaboradores e investidores, foram apanhados de surpresa. Um investidor particular perdeu seis milhões de euros, por exemplo. E uma colaboradora que recebia ações da empresa como prémios acabaria, com a queda a pique da Farfetch, a contrair uma dívida para conseguir pagar os 27 mil euros de impostos que devia ao fisco.
São estes os investidores (e não só) que estão por detrás da ação que deu entrada nos tribunais em Nova Iorque em dezembro de 2023. Mas a justiça norte-americana não é a única via.
A informação trocada no grupo do Telegram tem um objetivo: fazer avançar uma ação na justiça britânica, além do processo que continua em curso nos Estados Unidos. Os investidores querem “abrir o caso no Reino Unido para aumentar as hipóteses de recuperar alguma coisa”.
O primeiro desafio já foi cumprido. Encontrar um escritório de advogados que aceite representá-los, uma dificuldade que não tiveram nos Estados Unidos. “Não há custos associados nos Estados Unidos, os advogados ganham uma parte do processo em tribunal”, mas, no Reino Unido, os advogados recebem honorários, o pagamento é feito independentemente do sucesso do caso em tribunal.
“O que nós conseguimos foi um acordo com um escritório de advogados” que não vai cobrar ao grupo de investidores antes de receberem apoios de outros grupos de investidores que investem em casos judiciais e que acreditam que têm uma boa hipótese para ganhar. “Já conseguimos os advogados, estamos neste momento a construir o caso. O grupo não tem custos inerentes e já temos bastante interesse de investidores.”