Para o Ministério Público (MP) não há dúvidas: a venda do Banco Internacional de Cabo Verde (BICV) a José Veiga é ilegal e o ex-empresário de futebol foi favorecido pelo Novo Banco.

A administração liderada por Stock da Cunha não terá respeitado a lei que enquadra as entidades financeiras sob resolução e os estatutos do Novo Banco ao vender o banco cabo-verdiano a uma entidade que não era uma instituição financeira, apurou o Observador junto de fontes judiciais.

Estas alegadas violações agravam as suspeitas de que José Veiga terá sido favorecido na operação do BICV.

O MP investiga a prática do crime de tráfico de influências, suspeitando que António Duarte (administrador do BICV) e Rui Guerra (administrador da subholding Novo Banco África que detém a participação no BICV) terão alegadamente transmitido informação privilegiada que permitiu a José Veiga ganhar o concurso aberto pelo Novo Banco, como noticiou o Expresso.

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Pelo meio, e antes de tentar comprar o BICV, José Veiga foi impedido de criar um banco novo em Cabo Verde pelo supervisor bancário local por alegada falta de idoneidade. E devido a um parecer do Banco de Portugal enviado para o seu congénere cabo-verdiano.

O Observador confrontou o Banco de Portugal e a administração do Novo Banco com estes factos processuais durante o dia de ontem. As entidades preferiram não responder, tendo o Banco de Portugal emitido esta manhã um comunicado onde declara a sua oposição ao contrato assinado pela administração de Stock da Cunha.

“O Banco de Portugal deliberou opor-se à concretização da venda, com base no conhecimento da existência de investigações relacionadas com a operação e tendo em vista a proteção reputacional do Novo Banco. A decisão do Banco de Portugal tem por base a comunicação formal remetida pelo Conselho de Administração do Novo Banco, por carta datada de 18 de janeiro de 2016, na qual submetia à autoridade de resolução a referida operação de venda”, lê-se no comunicado do supervisor bancário.

A instituição liderada por Carlos Costa faz questão de enfatizar no comunicado que o “Banco de Portugal, nomeadamente a equipa responsável pelo processo de alienação da participação do Fundo de Resolução no Novo Banco, não teve qualquer papel no processo de venda do BICV e tomou conhecimento do processo em causa no final do mês de dezembro de 2015, no âmbito dos contactos que são mantidos com o Novo Banco”. Com esta frase, o Banco de Portugal pretende proteger Sérgio Monteiro, contratado pelo Banco de Portugal para o Fundo de Resolução para operacionalizar a venda do Novo Banco, de qualquer responsabilidade neste processo.

Essa responsabilidade, no entendimento do Banco de Portugal, é da administração liderada por Stock da Cunha. “Este processo foi exclusivamente conduzido pelo Novo Banco, no quadro dos poderes de gestão do respetivo Conselho de Administração resultante da autorização genérica para a alienação de ativos dada pela autoridade de resolução, em outubro de 2014″, conclui o comunicado.

Também a administração do Novo Banco não respondeu às perguntas do Observador e emitiu um comunicado, conformando-se com o ‘chumbo’ do Banco de Portugal – cuja avaliação do negócio estava contratualmente prevista.

A administração de Stock da Cunha enfatiza que o Banco Internacional de Cabo Verde vale “0,2% dos activos do Novo Banco” e diz que o processo de venda “à semelhança dos restantes processos de desinvestimento, de uma forma ordenada, transparente e de acordo com um modelo competitivo e não discriminatório, naturalmente focado na defesa do interesse do Novo Banco”.

No âmbito do processo de venda “foram contactados”, segundo o comunicado, “quase duas dezenas de potenciais compradores, assinados acordos de confidencialidade e considerada a única proposta obtida, de uma forma diligente e para obter o máximo retorno para o Novo Banco”. Isto é, apenas a empresa de José Veiga apresentou uma proposta vinculativa.

A administração de Stock da Cunha vai continuar a tentar vender o BICV.

A venda ilegal do Novo Banco

Comecemos pela argumentação do MP sobre a venda ilegal. A contradição fundamental que a investigação procura responder no dossiê do BICV é simples:

José Veiga foi impedido de criar um banco em Cabo Verde, devido a um parecer do Banco de Portugal que atestou a sua falta de idoneidade. Mas consegue comprar ao Novo Banco o Banco Internacional de Cabo Verde. Não tem idoneidade para fundar um banco mas tem para comprar uma instituição financeira? Essa é a pergunta.

A tese da ilegalidade do contrato foi explicitada aquando dos interrogatórios de José Veiga e Paulo Santana Lopes e sustenta-se na interpretação do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF) que estipula o seguinte:

As propostas de aquisição dos direitos e obrigações da instituição de crédito objeto de resolução só podem ser apresentadas por instituições de crédito autorizadas a desenvolver a atividade em causa ou por entidades que tenham requerido ao Banco de Portugal a autorização para o exercício dessa atividade, ficando a decisão a que se refere o n.º 1 condicionada à decisão relativa a pedido de autorização”

Também o Estatuto do Novo Banco terá sido violado, segundo o Ministério Público:

O Novo Banco tem por objeto a administração dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos pelo BES para o Novo Banco, e o desenvolvimento das atividades transferidas, tendo em vista as finalidades enunciadas no art. 145 do RGICSF, e com o objetivo de permitir uma posterior alienação dos referidos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão para outra ou outras instituições de crédito”, lê-se no artigo 3 dos Estatutos do Novo Banco.

O problema para o MP é que o Norwich Group, assim se chama a empresa liderada por José Veiga que apresentou a proposta de compra do Banco Internacional de Cabo Verde (BICV), não é uma instituição de crédito ou uma sociedade financeira. Pior: a empresa de Veiga, registada no Canadá, é uma empresa sem funcionários, sem sede social e até sem qualquer atividade comercial aparente. Na prática, a Norwich Group apenas tem existência num centro de escritórios virtual que apenas serve como uma caixa de correio.

É este o contexto que leva o MP a considerar nos autos do caso José Veiga que existe uma “ausência de substância de credibilidade” por parte da proposta que foi aceite pela administração do Novo Banco – e agora chumbada pelo Banco de Portugal.

Ausência de credibilidade essa que sai reforçada, na ótica do MP, com a informação de que José Veiga deve cerca de 8,9 milhões de euros ao Fisco, consta por isso na lista oficial de devedores ao Fisco e não apresenta há pelo menos cinco anos declaração de rendimentos obtidos em Portugal, nem possui registado em seu nome qualquer património imobiliário.

De acordo com o MP, Veiga terá transferido cerca de 420 mil euros para o Banco Carregosa de modo a fazer o pagamento da dívida fiscal que o coloca na lista de devedores. Aparentemente, tal intenção não passará disso mesmo visto que o ex-empresário de futebol já terá interposto uma ação no Tribunal Administrativo de Lisboa para anular a dívida fiscal.

Recorde-se que a proposta do Norwich Group, no valor de 13.750.000 euros, foi aceite, o contrato assinado a 31 de dezembro de 2015 e a primeira tranche do negócio (cerca de 10 milhões de euros) até já tinha sido depositada na conta do Novo Banco a partir precisamente de uma transferência do BICV. O negócio só seria concretizado, contudo, se fossem cumpridas duas condições:

  • O Banco Central de Cabo Verde teria de autorizar o negócio – sendo essa uma questão sine qua non para a concretização da operação, tal com o contrato de compra e venda estipula de forma explícita;
  • O Banco de Portugal e/ou a Comissão Europeia podiam opor-se à operaçao – como foi confirmado esta manhã pelo banco central nacional.

O caso do BIL e a falta de idoneidade de Veiga

É claro para o MP e para a Polícia Judiciária (PJ) que José Veiga e Paulo Santana Lopes queriam adquirir uma posição de controle num banco em Cabo Verde desde o início de 2015 – esse é um objectivo de extrema importância para os arguidos.

O objectivo, segundo as autoridades, passava por ter um instrumento de apoio aos investimentos que as suas empresas detinha em diferentes países africanos, mas também para alegadamente ocultar a origem dos capitais obtidos de forma alegadamente ilícita na República do Congo e integrá-los legalmente na economia. Dito de outra forma: para alegadamente executar operações de branqueamento de capitais em larga escala.

A primeira opção passou por criar um banco de raiz – que tinha a designação de Banco Internacional Africano (BIL). O projecto contou com o apoio do Banco Carregosa (que foi alvo de buscas judiciais na semana passada) numa fase inicial mas o Banco de Portugal não terá autorizado a participação daquele banco de investimento no projecto de Veiga. Isso mesmo foi transmitido por Pedro Malheiro Duarte, presidente da Comissão Executiva do Banco Carregosa, a José Veiga.

Assim, Veiga e Santana Lopes concentraram-se em fazer com que o Norwich Group conseguisse sozinho as necessárias autorizações do Banco Central de Cabo Verde para a constituição do BIL mas tal nunca aconteceu. Porquê?

Porque o supervisor bancário de Cabo Verde recebeu um parecer negativo do Banco de Portugal sobre José Veiga por complicações com a justiça e dívidas ao fisco. Isso mesmo terá sido transmitido por Paulo Santana Lopes por Mário Sanches, chefe de gabinete do primeiro-ministro de Cabo Verde. Sanchez também transmitiu ao seu interlocutor que a recusa do Banco de Portugal em autorizara o Carregosa a participar na operação também era relevante. Paulo conseguiu essa reunião depois de identificar-se como irmão de Pedro Santana Lopes, ex-primeiro-ministro de Portugal.

De acordo com a investigação do MP e da Polícia Judiciária, terá sido nesta altura que António Duarte, o administrador do BICV que está em permanência naquele país africano, terá tido conhecimento do chumbo de Veiga no Banco Central de Cabo Verde por falta de idoneidade.

José Veiga terá contactado António Duarte e pedido a sua ajuda, nomeadamente tentando recorrer aos seus contactos junto do supervisor bancário. O mesmo terá feito Pedro Malheiro Duarte, líder do Banco Carregosa – apesar do afastamento determinado pelo Banco de Portugal.

Contudo, todos os contactos foram infrutíferos: José Veiga chumbou mesmo no crivo do Departamento de Supervisão Jurídica do Banco Central de Cabo Verde por falta de idoneidade. E devido a um parecer do Banco de Portugal.

O interesse pelo Banco Internacional de Cabo Verde

Assim, a dupla Veiga e Santana Lopes deslocou a sua atenção para a aquisição do ex-BES de Cabo Verde, atual Banco Internacional de Cabo Verde (BICV). Mais uma vez, foi António Duarte o interlocutor de José Veiga, tendo este último manifestado o seu interesse em adquirir a ex-filial da família Espírito Santo em Cabo Verde no final de setembro de 2015.

Paulo Santana Lopes, por seu lado, terá tido o papel importante de contactar com Gonçalo Sousa (diretor do departamento de desenvolvimento de negócio do Novo Banco) e Rui Guerra, administrador do Novo Banco África (subholding do grupo que detém a participação no BICV).

Segundo a investigação do MP e da PJ, não existem indícios de que António Duarte tenha transmitido o chumbo de José Veiga em Cabo Verde por razões de idoneidade à administração do Novo Banco.

Veiga fez a proposta, ganhou o concurso e assinou o contrato de compra e venda no dia 31 de dezembro de 2015. Quatro dias depois, ordenou a transferência de cerca de 10 milhões de euros de uma das suas diversas contas bancárias no BICV para o Novo Banco. Problema resolvido?

Na perspetiva do MP e da PJ, não.

E é aqui que regressa novamente a “ausência de substância de credibilidade” do Norwich Group.

Segundo o MP, a autoridades de supervisão de Cabo Verde terão levantado obstáculos à compra do BICV por parte da empresa de José Veiga. O que terá feito com quem Veiga tenha tentado criar uma nova empresa no Luxemburgo, que se chamaria Groupe Norwich Finance. Esta sociedade foi criada a 11 de janeiro de 2016 – pouco dias antes de Veiga ser detido pela PJ.

As autoridades de Cabo Verde preparavam-se para rejeitar igualmente o negócio mas não tinham pressa – porque o contrato estipulava o dia 26 de abril como data final para um parecer dos supervisores. Mas com o ‘chumbo’ do negócio por parte do Banco de Portugal, a análise das entidades cabo-verdianas acaba não ser necessária.

O Observador contactou igualmente os administradores Rui Guerra e António Duarte através do Departamento de Comunicação do Novo Banco mas não obteve qualquer resposta até a este momento às perguntas endereçadas por escrito.