“Vinhos naturais” ou, se quisermos, “vinhos nus”. Entre tantos temas possíveis este foi o escolhido para arrancar a primeira wine summit do género a nível mundial, que acontece em Cascais até à próxima sexta-feira. Eram 9h30 quando a jornalista Alice Feiring despertou a plateia de uma sala que se foi compondo aos poucos ao falar de um tema que, apesar de representar um nicho, é controverso.

“Em 2000 eu era como todos os outros que acreditavam naquela frase, ‘o que é que não é natural no vinho?'”, começa por dizer Alice no auditório do Centro de Congressos do Estoril, que acolhe a Must Fermenting Ideas. A autora de quatro livros e jornalista de renome — que chegou a ser considerada a “salvadora do mundo perante a normalização do vinho”, assegura a organização do evento — não é parca em palavras e, ao longo do discurso, vai deixando cair críticas para quem as quiser apanhar, ao falar da adulteração do vinho como um método para fazer dinheiro e que de novo não tem nada.

“A maior parte dos vinhos rosé no mercado não têm a cor natural”, diz Alice ao Observador, já finda a palestra. Serve o exemplo para explicar que através de aditivos é possível criar sabores, aromas e até texturas num vinho que, à partida, não nasce com as respetivas características. O dinheiro, diz, está por trás de tais alterações, até porque “muitas grandes empresas decidem o que os consumidores querem beber”. Há tecnologia para isso, garante, e em causa está o que Alice diz serem receitas mais fáceis de replicar.

Alice Feiring é uma autora e jornalista de renome, defensora assumida de “vinhos naturais”. (Foto: PPP/ Wine Summit)

Mas o que significa “natural”?

Mas o que é, então, vinho natural? Segundo Alice, é todo o vinho que provenha de uma agricultura orgânica, mesmo que não certificada, ao qual nada pode ser retirado e nada pode ser adicionado. Ou seja, nem todos os vinhos biodinâmicos ou orgânicos são “naturais”, mas alguns vinhos “naturais” podem efetivamente ser biodinâmicos e orgânicos. Confuso, não é?

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Rui Falcão, crítico de vinhos e um dos organizadores do evento, afiança que não há uma definição específica de vinho natural, até porque não existe qualquer certificação.

“O tema em si é controverso e tudo o que é controverso cria debate e emoção”, diz Falcão quando questionado sobre o motivo por que dois dos oradores do primeiro dia de palestras falaram sobre um mesmo tema. “Apesar de ser um nicho de mercado isto é algo que cria muito ruído porque nem todos compreendem o significado da palavra.” O crítico de vinhos explica que, quando o assunto é vinho natural, à tona vêm dois lados extremistas. Se por um lado há alguma postura evangélica e superioridade moral de quem defende os “vinhos naturais”, por outro, há quem se sinta ofendido pela escolha do nome. “Até parece que os outros são artificiais”, aponta Falcão.

A palavra “natural” — na aceção defendida por Alice Feiring — não significa automaticamente que os vinhos sejam bons. Mas porquê, então, trazer o tema para debate? “É uma chamada de atenção, sobretudo tendo em conta que os países do novo mundo olham para o vinho como um produto que se quer standardizar e industrializar. Querem uma coisa igual todos os anos e a natureza não é igual todos os anos”, afiança Rui Falcão.

Alice não consegue descrever a que sabe o vinho natural, apenas atira que “sabe a vinho”. “A maior parte das pessoas que o prova diz ‘uau! Não sabia que o vinho tinha este sabor’“, conta-nos. Para a jornalista, que cita um produtor seu conhecido, nos vinhos ditos convencionais o primeiro gole é o melhor, enquanto nos naturais o melhor é mesmo o último. “O vinho natural está sempre em evolução, cada gole é diferente e isso é excitante.”

O tema em causa está longe de ser consensual. Foi precisamente por isso que Alice quase ia perdendo a carreira que já construiu. “Quando comecei a escrever sobre isto quase assassinei a minha carreira porque as pessoas não queriam que eu escrevesse sobre vinhos naturais”, conta, num registo um pouco mais hesitante. “Fiquei conhecida por isso e as pessoas já não queriam o meu nome no jornal porque isso significava muitos problemas.” Alice diz ser a pessoa que há mais tempo escreve sobre o tema. Mas não é a única.

Jamie Goode é outro dos nomes associados ao movimento dos “vinhos naturais”. O homem que começou por ser um cientista acabou por se render ao universo de Baco e é hoje também um reconhecido jornalista de vinhos. Goode, que falou já no painel da tarde, é menos radical do que Alice. É ele quem começa por garantir que os vinhos modernos acabaram por melhorar a experiência de beber vinho. Mas se por um lado o vinho está melhor “em alguns sentidos”, por outro, a indústria abriu uma brecha que acabou por ser colmatada com os “vinhos naturais”. Um movimento que Goode apelida de “retro”.

Jamie Goode começou por ser cientista mas rendeu-se ao mundo dos vinhos. (Foto: PPP/ Wine Summit)

Goode salienta várias vezes durante a palestra a “elegância dos vinhos naturais” e argumenta que “não há valor no vinho se ele não conseguir exprimir o lugar de onde vem”. Dito isto, é o primeiro a assinalar os seus problemas, que passam pela falta de definição e pelo facto de existir demasiada ênfase no processo: “Acho que devíamos estar a olhar para os resultados. É por isso que prefiro o termo ‘vinho autêntico'”. A isso acrescenta-se aquilo que por vezes pode ser considerado um “movimento ideológico”. Há uma falha, assegura, quando a separar os “vinhos naturais” dos vinhos “industriais e aborrecidos”. E ao contrário do que Alice Feiring disse na sua intervenção, a ausência de uma maior concentração de sulfitos não evita as ressacas, garante Goode.

De uma coisa o jornalista não tem dúvida, quando questionado sobre se os “vinhos naturais” são uma moda passageira ou algo que vá ficar: “O vinho natural é uma correção necessária tendo em conta o rumo que o vinho tomou.”

Há vinho natural em Portugal?

“Os vinhos naturais são uma realidade em Portugal como em qualquer outro país. É uma moda que está a crescer”, garante Rui Falcão, que refere que há vários produtores que o produzem, muito embora os seus vinhos não levem no rótulo a palavra “natural”. “É uma produção e consumo de nicho.”

Rodolfo Tristão, sommelier de profissão, é de uma opinião ligeiramente diferente, ao falar de “tendência” em vez de “moda” e relaciona a eventual procura de “vinhos naturais” com uma maior consciencialização do que é bom e natural, algo que vai à boleia do conceito slow food. Sendo este um tema — repita-se — controverso, Tristão faz questão de salientar que há quem seja fundamentalista, sobretudo nos países nórdicos, e repete uma ideia já antes dada ao Observador:

A tendência agora [em Portugal] é para fazer vinhos apostados na qualidade e no facto de serem amigos do ambiente. Quanto mais natural, melhor. E, sim, a tendência no mercado atual é para colocar a menor quantidade de sulfitos possível: à medida que os anos vão passando, os produtores vão colocando menos sulfitos”

Porque é que o vinho dá dores de cabeça?

E onde é que se bebe o dito vinho natural? Surpreendentemente, ou talvez não, Alice Feiring é a primeira a responder, sugerindo num repente três sítios em Lisboa onde é possível provar esses vinhos: no restaurante Leopold, na Sagrada Família e no Café Tati. Quando a conversa é o mundo, Alice aponta para os Estados Unidos da América, para a cidade de Copenhaga, capital da Dinamarca, e ainda Barcelona ou Madrid, em Espanha. “Alguns países onde grandes empresas de vinho dominam o mercado, e que têm muita influência, têm maiores dificuldades em trazer o vinho para os restaurantes”, assegura a jornalista. “Itália já teve esse problema. Agora já não.”

Nem de propósito, nos próximos dias 30 de junho e 1 de julho Os Goliardos, que existem no mercado vínico há cerca de 12 anos, vão organizar a feira Vinhos ao Vivo, que já vai na sua oitava edição. A equipa em questão, que já foi responsável por um wine bar e que hoje está à frente de uma garrafeira online, entre outros serviços, aposta em vinhos de terroir nacionais e europeus — entre as referências que vão estar presentes na feira há os ditos “vinhos naturais”.

Vem aí uma Web Summit de vinhos. E é um Must

Este não foi, porém, o único tema do dia. Ao palco subiram ainda nomes como Natalia Velikova, professora na TexasTech University e investigadora na área do enoturismo, marketing de vinho e comportamento do consumidor, para falar de quais os melhores modelos de enoturismo, mas também Paul Symington, da família produtora com o mesmo nome, para debater o futuro dos vinhos fortificados.

A Must Fermenting Ideas, uma espécie de Web Summit para o mundo dos vinhos, continua nos dias 8 e 9 de junho, ocupando o Centro de Congresso do Estoril. Do seu painel fazem parte figuras de renome internacional no mundo dos vinhos. A Wine Summit Cascais, como também é conhecida, tem organização portuguesa: Paulo Salvador, jornalista e editor executivo da TVI, e Rui Falcão, um dos críticos de vinhos mais conceituados no país são os promotores do evento.