Título: A Sociedade dos Sonhadores Involuntários
Autor: José Eduardo Agualusa
Editora: Quetzal, 2017
Páginas: 277
Preço: 17,7€

Quanto mais suja a chã política, mais cresce a tentação: os escritores pegam no seu maço de papel, pousam-no no lodaçal e apeanham-se na obra para opinar sobre política. Os livros fazem de púlpito a martelo e, prova-o a experiência, ressentem-se do mergulho na lama: da monumental produção neorrealista foram-se distribuindo as páginas quase como folhetos de propaganda política, a ponto de não sobrar para a memória mais do que uma ou duas linhas; às correntes engajadas de Paris, foi a corrente do Sena que as arrastou para o esquecimento; a verdadeira história da loucura iraniana de Foucault, os pretensiosos movimentos de intelectuais da nossa política, tudo envelheceu mal – ou má política, ou má literatura.

Não tivesse Agualusa má memória e talvez evitasse cair na mesma esparrela. A escrita passa e até faz passar o tempo, as personagens são vulgares mas não são estereotipadas e o enredo não tem rasgo mas também não tem buracos. Podia ser um livro sólido, coisa já de si assinalável quando a falta de engenharia romanesca alui tanta argamassa literária ao primeiro embate da leitura. Sem grandes voos, podia manter-se na linha equatorial do razoável, caso não baixasse até à política angolana.

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Ora, Agualusa trata a política à maneira dos indignados poéticos: diagnóstico simplista – os que estão no poder são malvados – e solução ingénua – se formos corajosos reconstruimos um bom governo. Como se concordar sobre o mal de quem governa significasse acordo sobre o modo de bem governar, como se a coragem fundisse teses e doutrinas, como se a liberdade ou a justiça significassem o mesmo em cada cabeça. Agualusa exarou uma espécie de romance de protesto – até plasmou a história de Luaty Beirão, retocada apenas com uma mudança de género nos protagonistas – em que se faz vista grossa a todas as dificuldades. O conflito dá-se entre maus e bons, interesseiros e idealistas, e a própria vitória do povo sobre os opressores, para gaseificar ainda mais a já etérea atmosfera, é motivada por um sonho comum a toda a população.

A política é resolvida por um sonho, os conhecimentos amorosos dão-se primeiro num plano onírico, as amizades tecem-se à volta de estranhos sonhadores, no misto de alegórico e fantástico tão ao gosto da literatura africana, e, com tanto sonho à roda do livro, parece-nos natural que até o velho Homero acabasse por adormecer.

Até damos o braço a torcer a tanto tempo passado nos de Morfeu: embora o lêssemos com pouca simpatia, não nos pareceria mal que Agualusa se ativesse à relação entre os estranhos sonhadores. Seria um romance de fantasia dobrado sobre si próprio, com personagens que teriam como traço mais assinalável uma característica inexistente, curiosidades arqueológicas da imaginação, sem mais interesse humano do que o facto de alguém as ter pensado. Com mais ou menos importância, seria uma hipótese legítima.

Embora o lêssemos com igual simpatia, também não estaria mal que Agualusa explorasse o papel metafórico do sonho. Para os criptógrafos amadores catarem as cifras ocultas, entretidos com as subtilezas exageradas, haveria na relação entre o sonho e a política pasto para muito banquete.

Agora, Agualusa tenteia entre as duas hipóteses de uma forma que a ambas descredibiliza. Distende o espaço dos sonhadores invulgares, entretém-nos em relações de fantasia espúria e recupera-os como temíveis agitadores. Por um lado, parece que quer acentuar a dimensão irreal dos sonhadores; por outro, quer fazer deles o clímax da sua exortação política. Matiza o empenho com a fantasia, de tal modo que o empenho é estéril e a fantasia entra em caminhos que lhe estão vedados. Os planos prejudicam-se um ao outro, mais ainda do que sozinhos se prejudicariam uma análise política superficial ou um imaginário fantástico um tanto oco.

Há ressurreições a mais até para um Cristão, acrescenta pouco a uma tradição onírica que tem o peso literário que os sonhos não têm e como arma de arremesso política não nos parece que faça grande mossa: o livro até pode ser sólido, sim, mas não significa que tenha algum peso.