“O Campeonato do Mundo vai-se jogar na Rússia e no Qatar. E isso é um facto.” Quem o disse foi Walter De Gregorio, o porta-voz da FIFA, mas disse-o há muito tempo, e entretanto houve sete altos responsáveis da organismo detidos em Zurique, o próprio presidente, Joshep Blatter, no cargo desde 1998, se demitiu, e o FBI e a Procuradoria-Geral suíça procuram o rasto (com a ajuda de Chuck Blazer, ex-quadro da FIFA e ex-presidente da Concacaf) aos 150 milhões de dólares que Blatter e seus apaniguados terão recebido em subornos, um pouco por todo o mundo, e ao longo de décadas.

Quer a Rússia, quer o Qatar — as suspeitas de que os dois países teriam pago pela vitória das suas candidaturas não vêm de hoje —, garantem que nada pagaram à FIFA, e que as edições de 2018 e 2022 do Mundial vão mesmo avançar como previsto. Alexesy Sorokin, CEO da organização russa, citado pela CNN, mostrou-se surpreendido com tais suspeitas. “Nem entendemos qual a origem desta discussão. Nós vamos organizar o Campeonato do Mundo de maior sucesso na história do futebol. Foi uma atribuição limpa, sem transgressões às normas da FIFA. O que mais quer que acrescente?”

A verdade é que o Mundial de 2018 dificilmente sairá de território russo. E não sairá porque a Rússia (com Vladimir Putin) é, mais do que um potência económica, uma potência política. Um exemplo da influência russa no desporto internacional é o facto de os Jogos Olímpicos de Inverno, em 2014, na cidade de Sochi, se terem mesmo realizado, apesar das ameaças de muitos países em não participar, isto por altura da anexação russa da Crimeira, no Leste da Ucrânia.

Apesar de tudo, na Câmara dos Comuns, o secretário de Estado dos Desportos no Reino Unido, John Whittingdale, veio assumir que “se a FIFA se chegar à frente e nos pedir que organizemos o Mundial de 2018, nós vamos considerar organizá-lo.” A candidatura britânica foi uma das derrotadas quando se soube da eleição russa, em dezembro de 2010, juntamente com a Bélgica e a Holanda, Portugal e Espanha, todos com candidaturas conjuntas.

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O Observador tentou, sem sucesso, contactar a Secretaria de Estado do Desporto e Juventude para saber da intenção de Portugal em se voltar a candidatar ao Mundial de 2018 (em conjunto com a Espanha), caso a organização russa caia. Portugal iria contribuir com dois estádios, o da Luz (que acolheria uma meia-final) e o do Dragão, no Porto, sendo que os restantes estádios seriam no país vizinho.

Também o Qatar, bem recentemente, e depois de se saber da detenção dos altos quadros da FIFA e da demissão de Sepp Blatter, reagiu em comunicado, dizendo que “os recentes acontecimentos na FIFA não vão ter impacto na nossa preparação para o Mundial de 2022″. Ao contrário da Rússia, não só o prazo que nos separa do mundial qatari é bem maior, como o país não é tão influente politicamente — ainda que o seu impacto na economia mundial, por via de ser um dos maiores exportadores de petróleo da actualidade, seja igualmente importante –, e o Mundial pode mesmo ser-lhe retirado.

A Austrália (que foi um dos derrotados em dezembro de 2010, tal como o Japão, a Coreia do Sul e os Estados Unidos) sabe-o, e fez saber, garantiu a CNN esta sexta-feira, que está na corrida.

Por outro lado, as constantes críticas à precariedade dos operários que estão a construir as infraestruturas para o Mundial, também não contribuem para a boa imagem do país no estrangeiro — e a recente detenção de uma equipa de reportagem da BBC, acaba por demonstrar o quanto o país ainda pode ter dificuldade em lidar com as liberdades democráticas das sociedades abertas.

Outro facto que pode ter peso sobre a decisão de retirar o Mundial do Qatar não resulta só dos alegados subornos, até porque a investigação do FBI não acusou formalmente a organização qatari de nada, mas resulta das condições climatérias. O próprio Joseph Blatter, antes de se demitir, concordou que realizar um Mundial entre junho e junho no Qatar “é sobrehumano”, e propôs, em tempos, que este se realizasse no inverno, durante 28 dias, sendo a final a 18 de dezembro de 2022, a data em que se comemora o Dia Nacional do Qatar.

Isto obrigaria a virar do avesso todo o calendário da maioria dos países do hemisfério norte, que chegam ao Natal com as épocas futebolísticas já a meio.

É possível retirar o Mundial ao país organizador?

A verdade é que a retirada da organização do Campeonato do Mundo de 2022 ao Qatar não seria um caso único no futebol. Já aconteceu por duas vezes, uma entre os homens, uma entre as mulheres, se bem que por razões profundamente distintas. O caso masculino veio até abrir um precedente novo entre os organizadores, que não se voltou a repetir na história — só por uma vez um país acolheu, num tão curto período de tempo, e por duas ocasiões, a maior prova de selecções do mundo.

O México, que organizou o Mundial em 1970, voltou a fazê-lo em 1986, uma edição de má memória para Portugal, que foi último no Grupo F, e viu “Os Infantes” (o epíteto da delegação de Portugal) rebelarem-se no célebre Caso Saltillo. Mas a prova só retornou ao México uma vez que a Colômbia, que foi o país escolhido pela FIFA, desistiu da organização em 1982 por uma questão de peso. Ou da falta de Pesos.

Célebre foi o bate-boca do presidente do país, Belisario Betancur, recém empossado no cargo, e o então líder da FIFA, o brasileiro João Havelange. No dia 25 de outubro de 1982, ao cabo de dois meses a viver no Palácio de Nariño, Betancur largou a bomba: “Não se cumpriu com a regra de ouro em que o Mundial deve servir à Colômbia e não a Colômbia à multinacional FIFA. Por essa razão, o Mundial de 1986 não ocorrerá no nosso país. Não há tempo para atender às extravagâncias da FIFA e seus sócios”.

A resposta de Havelange veio logo de seguida. “A FIFA não culpa se a Colômbia, apesar de ter tido 12 anos para se preparar, diz que não consegue organizar um Campeonato do Mundo. Acredito que Betancur deveria ficar triste com a situação e assumir a responsabilidade, em vez de fazer críticas à FIFA. Tenho a certeza que vários países vão querer organizar o Mundial”. Quis o México, o Brasil, os Estados Unidos e o Canadá, organizaram-no os mexicanos, e ganhou-o a Argentina do Pibe de Oro Maradona.

Mas também o Mundial feminino de 2003, na China, foi retirado do país e mudado para território norte-americano, não por razões financeiras, mas de saúde pública. É que a China vivia sob a ameaça de uma epidemia respiratória (SARS), e as 16 selecções participantes tiveram de viajar para os Estados Unidos, onde decorreu a prova. Organizá-la-iam os chineses em 2007.

O impacto da retirada do Mundial na petroeconomia do Qatar

À Business Insider, Jean-Michel Saliba, economista do Bank of America Merrill Lynch, abordou o impacto que a não realização do Mundial terá na economia do Qatar.

Em 2010, quando o país soube que era o escolhido para organizar a prova, previa-se que o investimento total rondasse os 65 mil milhões de dólares, dos quais três mil milhões (ver quadro) eram destinados à construção ou renovação de dez estádios. Hoje, são somente oito, mas os valores de investimento em infraestruturas, rodoviárias ou de habitação, em redes de transportes públicas ou na organização da Taça das Confederações (o balão de ensaio do Mundial) em 2021, mantêm-se.

Segundo analisa Saliba, a construção de estádios e hotéis, por exemplo, rondará os 16 mil milhões de dólares, o que “não ultrapassará 1,5% do Produto Interno Bruto” do Qatar. O problema não é o impacto do investimento presente na economia, mas o impacto futuro do não investimento causado pela decisão de retirar o Mundial do país.

“Isto será um enorme rombo na intenção do Qatar em passar de uma nação petrolífera do Golfo, para uma nação com o impacto global dos vizinhos Emirados Árabes Unidos. Os transportes, as acessibilidades, os portos, e até uma cidade criada de raiz para o Mundial, fazem todos parte dessa visão. O torneio representaria um ímpeto tremendo para a economia não-petrolífera”, explica.