E se António José Seguro tivesse aceite o acordo de salvação nacional, proposto por Cavaco Silva há exatamente um ano? A pergunta tem corrido as bancadas da maioria e gabinetes do Governo, sobretudo depois da derrota das europeias e do início da crise política do PS. A resposta, invariavelmente, é esta: por esta altura o país já teria tido legislativas antecipadas. E Seguro seria o provável primeiro-ministro.

Um ano depois, Cavaco raramente se referiu ao processo, mas fê-lo há três semanas, lamentando que “à última hora e de forma inexplicável” os partidos não tivessem alcançado um acordo. E sublinhou uma mensagem: “Já uma vez escrevi e afirmei que é difícil mudar as atitudes dos partidos. Há uma história atrás de cada um deles, parecem existirem interesses particulares que se sobrepõem aos interesses nacionais”.

As palavras não foram escolhidas ao acaso. Em Belém, vingou uma tese sobre porque falhou o acordo. E sobre quem é responsável por isso. Ao caso, Mário Soares e Manuel Alegre, os homens que mais pressionaram Seguro para que nada assinasse com um Governo de quem já reclamavam a demissão. Há um dia, durante o processo negocial, em que Cavaco Silva deixa cair esta suspeita. Estava o PR nas ilhas Selvagens, combinou umas palavras com os jornalistas e disparou: “Existem adversários do acordo do compromisso de salvação nacional” que “tudo farão para que ele não se concretize e que não irão olhar a meios para que não se concretize”.

Durante as conversas a três, o Presidente ia anotando os problemas. Um deles era que o PS se recusava sempre a pôr num papel os pontos em que se conseguia acordo. Houve vários, mas o documento de base do PS deixava claro que não existiria acordo enquanto ele não estivesse todo fechado. E não estava.

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Mesmo assim, as negociações prosseguiram, lentamente. Até aos dias finais. Na Presidência recorda-se que havia quatro, cinco pontos, por fechar. Eram difíceis, mas o Presidente achava passíveis de acordo — desde que Passos e Seguro estivessem dispostos a fazer uma afirmação de liderança. Até que, precisamente com o evoluir das conversas, Soares e Alegre vieram a público dizer não só que não aceitariam um acordo, como que já o tinham dito a Seguro. Foi nos dias antes da ida de Cavaco às Selvagens. Dias antes do não final.

À distância do tempo, Cavaco tem voltado à necessidade de consensos. Agora apontando-os para outubro, tempo do orçamento. Mas todos têm os olhos postos, antes disso, na disputa pela liderança do PS.

um flashback para um momento histórico

Foi no dia 10 de julho de 2013, dias depois da crise política aberta pela demissão de Paulo Portas, que o Presidente da República fez uma comunicação ao país às 20h: sem querer dar posse ao novo elenco ministerial, Cavaco defendeu um entendimento “de médio prazo” entre PSD, PS e CDS. Para chamar o PS às negociações, propôs eleições antecipadas a partir de junho de 2014 (agora mesmo). Mas pôs outras condições em cima da mesa: o apoio dos três partidos à conclusão do memorando (e respetivas medidas) e ao Governo saído das eleições.

No dia seguinte, Seguro ia a Belém para uma primeira conversa com Cavaco Silva, mostrando disponibilidade para conversar. E assim começou tudo: a primeira reunião com os representantes “do diálogo interpartidário”, como ficou conhecido, reuniriam-se no dia 14. Seguiram-se várias conversas entre as delegações do PSD (Jorge Moreira da Silva, Miguel Poiares Maduro e Carlos Moedas), do PS (Alberto Martins, Eurico Brilhante Dias e Óscar Gaspar) e do CDS-PP (Pedro Mota Soares e Miguel Morais Leitão). Com uma nunace: um representante do Presidente da República, David Justino, assessor da Presidência da República. Cavaco queria ter um registo de todas as conversas — até hoje secreto. Para pressionar e tirar as suas conclusões.

Durante quatro dias as reuniões sucederam-se, foram oito, ora no Rato (sede do PS), ora na Lapa (sede do PSD), ora no Caldas (sede do CDS).

E o que estiveram a várias delegações a discutir? A data das eleições legislativas antecipadas, a descida do IVA (pretendida pelo PS), os cortes de 4,7 milhões de euros (acordados pelo Governo com a troika na 7ª avaliação), aumento do salário mínimo, cortes nas pensões, despedimentos na função pública.

Mas há duas pessoas muito nervosas ao longo destes dias: Mário Soares e Manuel Alegre. Por esta altura, os históricos do PS já tinham feito as pazes – zangaram-se nas presidenciais de 2011 em que Alegre avança sabendo que Soares era candidato e voltam a ser amigos depois de Soares ter estado hospitalizado no início de 2013.

Segundo conta um soarista, mal Cavaco faz a comunicação ao país, os dois conversam e têm a mesma reação: o PS não pode dar qualquer tipo de apoio ao atual Governo. Assistem, pois, com preocupação às reuniões que se repetem, ao clima de aparente diálogo, aos sinais de que um acordo pode estar iminente. Pegam no telefone e pressionam Seguro.

Soares nem sequer o esconde. Dia 18, uma quinta-feira, declara ao Público: “Tenho a certeza que não vai haver acordo entre o PS e a direita do Governo porque isso ia criar uma cisão no PS e só iria beneficiar o PCP”. Diz que o secretário-geral lhe deu garantias de que não haverá acordo nenhum.

Nas Ilhas Selvagens, onde se deslocou em visita oficial, o Presidente da República faz um apelo à “responsabilidade” dos partidos considerando que o acordo de salvação nacional “é a solução que melhor serve o país”. Mas ao mesmo tempo diz não ter “nenhuma garantia” de que “no final haverá acordo”, numa declaração que parece antecipar o que àquela hora já se previa: não ia haver fumo branco.

Nesse dia, a delegação do PS interrompe as conversas para ter uma reunião com o líder, António José Seguro. Volta à mesa de negociações, mas sem avançar.

No dia seguinte, sexta-feira, só há uma reunião rápida. Seguro dá por terminadas as conversas. Vai a Belém dizer isso ao Presidente e às 20h faz uma declaração ao país. “O PSD e o CDS inviabilizaram um compromisso de salvação nacional. Este processo demonstrou que estamos perante duas visões distintas e alternativas para o nosso país: manter a direção para que aqueles que, como o PSD e o CDS, entendem que está tudo bem ou dar um novo rumo a Portugal para aqueles que, como nós, consideram que portugueses não aguentam mais sacrifícios e que esta política não está a dar os resultados pretendidos”, declara.

O PS publica na sua página da internet as propostas que apresentou e até o cronograma das reuniões dos últimos dias, em “prol da transparência, do combate à especulação no espaço público e por respeito aos portugueses”. Uma hora depois, durante uma nova reunião da comissão política, que convoca para o efeito, diz que não troca “as ideias e propostas para Portugal por eleições”.

Gorado o acordo, o Presidente da República acabou por dar posse ao Governo remodelado, como Passos e Portas queriam. Mas Cavaco nunca parou de apelar aos consensos.