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“Não sei o que dizer.” Na manhã deste sábado, Yaniv Roznai estava quase sem palavras. “50 anos depois da Guerra do Yom Kippur, Israel volta a ser apanhada de surpresa e atacada.”
Na véspera, este professor de Direito Constitucional em Tel Aviv tinha falado com o Observador sobre o legado do 50.º aniversário da guerra que representou um “trauma” para os israelitas, quando Síria e Egipto lideraram uma ofensiva repentina que apanhou o país desprevenido, cujo aniversário se assinalou esta sexta-feira. Nesse dia, Yaniv era um homem falador e bem disposto. Na manhã seguinte, só conseguia dizer que “as histórias são aterradoras” e repetia uma frase, escrita pelo Whatsapp: “Israel está em guerra outra vez.”
A escala da “Operação Tempestade Al-Aqsa”, iniciada pelo Hamas contra Israel a partir da Faixa de Gaza durante a madrugada, é um ataque sem precedentes, que evoca imagens das guerras passadas com Estados árabes, nunca vividas pelas novas gerações israelitas.
Ao longo das primeiras horas, depois de militantes do Hamas terem cortado o arame farpado em vários pontos da fronteira e entrado em vários cidades do sul de Israel, os relatos que iam chegando dos civis eram aterradores. “O meu marido está a segurar a porta do abrigo anti-bombas. Agora estão a disparar balas contra as janelas do abrigo. E os meus três filhos estão comigo”, contava uma mulher ao Canal 12 israelita, a partir do kibbutz de Nahal Oz, ao largo da Faixa de Gaza.
Horas mais tarde, ambos os lados confirmariam que o Hamas fez vários reféns israelitas — e que pretende vir a usá-los como “moeda de troca” por presos palestinianos.
Desde então, e em pouco mais de 12 horas, mais de 250 israelitas morreram. A retaliação do lado israelita não tardou e os bombardeamentos a Gaza que se seguiram provocaram pelo menos 230 mortes de palestinianos. Há mais de dois mil feridos de ambos os lados, muitos deles graves.
O ataque é histórico, já que representa o maior falhanço do serviço de informações de Israel desde a Guerra do Yom Kippur. Para já, com a informação disponível, os analistas especulam: Bethan McKernan, correspondente do The Guardian em Jerusalém, pensa que este pode assentar no facto de Israel ter calculado que o Hamas não tinha intenção de partir para um conflito aberto depois de ter conseguido um acordo há apenas dois anos que permite a milhares de habitantes de Gaza trabalharem em Israel e que representa um “salva-vidas económico” para a população empobrecida da região.
“Mas as Brigadas Qassam, a ala militar do Hamas, e a Jihad Islâmica Palestiniana — uma fação mais pequena e radical que também é ativa em Gaza — tinham outros planos”, escreve a jornalista.
Certo é que o Hamas avançou para uma operação em larga escala com o principal objetivo de apanhar os israelitas desprevenidos e de produzir uma humilhação semelhante à da Guerra do Yom Kippur. Isso mesmo escrevia esta tarde o Tehran Times, jornal próximo do regime iraniano que apoia o Hamas: “Foi o maior ataque ao regime sionista em 50 anos. Está a assombrar os invasores da Guerra do Yom Kippur de 1973.” O título gabava a “resistência palestiniana” por ter “humilhado Israel”.
Mas há uma diferença entre 1973 e 2023. Agora, Israel está abalada por uma crise interna e tenta concluir um processo histórico de normalização de relações com vários países árabes. Tudo fatores que podem mudar radicalmente depois deste dia 7 de outubro.
Há exatamente 50 anos, Israel era invadida de surpresa. Como a Guerra do Yom Kippur marcou uma geração
A comparação faz sentido, já que a Guerra do Yom Kippur representou o maior abalo coletivo para o Estado Israel dos últimos 50 anos. Era início da tarde daquele feriado do Yom Kippur — o dia mais solene do calendário judaico, dia de recolhimento para expiação e reconciliação com Deus — quando as sirenes interromperam o silêncio nas ruas praticamente desertas em toda a Israel. A 6 de outubro de 1973, o exército da Síria atravessou os montes Golã, ao mesmo tempo que as forças armadas do Egipto atravessavam o Canal do Suez em direção à Península do Sinai, apanhando os israelitas de surpresa. O objetivo era o de reconquistar os territórios tomados por Israel seis anos antes, durante a Guerra dos Seis Dias.
Durante as quase três semanas seguintes, desenrolou-se uma outra guerra que se revelaria traumática para os israelitas. É certo que Israel acabou por ser o vencedor do conflito (apoiado pelos EUA, por oposição a uma União Soviética que armava os Estados árabes), mas o impacto do ataque surpresa teve um efeito tremendo na psique nacional, como tinha explicado esta sexta-feira ao Observador o professor Roznai: “A Guerra dos Seis Dias tinha criado um efeito de grande euforia no país, as pessoas sentiam que éramos invencíveis. E isso tudo colapsou ali.”
“Nos primeiros dias, muita gente pensava, sobretudo nas regiões mais a norte do país, que podíamos perder a guerra”, acrescenta. “E tornou-se numa batalha pela sobrevivência do próprio Estado. ‘Se perdermos isto, podemos perder Israel’, pensava-se.”
Apesar de não ter sido esse o resultado final, o conflito acabou por ter um impacto político tremendo e contribuiu para a demissão do governo da primeira-ministra Golda Meir, meio ano depois. A queda de Meir abriria caminho para a subida ao poder de Yitzhak Rabin e o fim do domínio da política israelita por parte dos trabalhistas, com o Likud — que tinha sido fundado semanas antes do início da Guerra do Yom Kippur — a conseguir vencer as eleições de 1977.
O impacto humano também foi tremendo. Mais de 2.500 soldados morreram na guerra — um valor que, se fizermos a comparação de forma proporcional ao tamanho da população de Israel e Estados Unidos, equivale a três vezes o número de mortes de soldados norte-americanos ao longo de toda a guerra do Vietname. Mais de sete mil soldados e civis ficaram feridos. Toda uma geração foi afetada, lembra Yaniv Roznai, que dá o exemplo do seu pai e do seu sogro: “Perderam muitos amigos nesta guerra. E, dos que ainda estão vivos, muitos têm stress pós-traumático. O efeito em largos setores da sociedade foi profundo.”
As consequências imediatas: uma crise interna ultrapassada e um processo de paz com a Arábia Saudita congelado?
Nos últimos meses, o pai de Roznai e vários dos seus camaradas da Guerra do Yom Kippur tinham criado uma rotina: todos os sábados, o antigo pára-quedista vestia uma t-shirt que diz “Sobrevivente da Quinta Chinesa”, uma referência à batalha em que participou na Península do Sinai e que ficou assim conhecida por ter acontecido perto de uma estação agrícola com esse nome. Depois, saía à rua com os colegas veteranos para participar nos protestos contra a reforma judicial proposta pelo governo de Benjamin Netanyahu, apoiado por vários partidos ultra-ortodoxos e de extrema-direita.
Os veteranos da Guerra do Yom Kippur são parte dos milhares de manifestantes que têm enchido as ruas de cidades como Haifa em Tel Aviv desde janeiro. Os últimos nove meses em Israel têm sido de profunda convulsão interna, com a polémica reforma judicial a dividir o país ao meio e a lançar o país numa crise que o Presidente, Isaac Herzog, classificou de “emergência nacional”.
Na véspera deste sábado, o constitucionalista Roznai previa que só uma coisa poderia neste momento unir os israelitas: “Se surgisse uma ameaça externa, tenho a certeza que o país se unia, porque a grande prioridade é assegurar a existência deste país”, tinha vaticinado ao Observador.
Menos de 24 horas depois, sem qualquer sinal prévio, foi exatamente isso que aconteceu. Os militares contra a reforma judicial, que tinham ameaçado não se apresentar ao serviço se esta avançasse, declararam não só que agora não o farão, como vão até suspender os protestos.
E, perante o maior ataque ao país dos últimos 50 anos, Benjamin Netanyahu convidou os principais partidos da oposição para formar um governo de emergência nacional. Apesar de as negociações ainda estarem a decorrer, o impacto da “Operação Tempestade Al-Aqsa” é tal que o mais provável é que este se venha mesmo a formar, pondo um fim — ou, pelo menos, um hiato — à extrema polarização política em Israel.
Mas essa não é a única transformação profunda que pode já estar a decorrer. Nos últimos anos, Israel atravessa um período de intensa normalização de relações por todo o Médio Oriente. Depois de assinar acordos de paz com antigos inimigos como o Egipto e a Jordânia, em 2020 assinou os Acordos de Abrãao, que normalizaram relações diplomáticas com os Emirados Árabes Unidos, o Sudão e Marrocos.
Agora, Netanyahu estava de olho na Arábia Saudita, com quem esperava fazer a paz de vez. Na última Assembleia-Geral das Nações Unidas, em setembro, o primeiro-ministro israelita disse acreditar que estava “à beira” de um acordo “histórico” com os sauditas que iria “encorajar outros Estados árabes a normalizarem a sua relação com Israel”.
Agora, tendo em conta o historial de apoio à causa palestiniana por parte de Riade, não é claro se este processo continuará a avançar ou se ficará congelado. Avi Melamed, ex-membro dos serviços de informação israelitas, disse mesmo ao El País que considera que este processo foi uma das principais razões pelas quais o Hamas decidiu lançar agora este ataque: “O Hamas enviou uma mensagem: ‘Haja ou não normalização das relações com Israel, somos nós quem define o destino deste conflito e somos nós quem pode liderar a luta contra Israel.”
Os primeiros sinais apontam para uma posição ambígua por parte da Arábia Saudita. Num primeiro comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita disse estar a acompanhar os desenvolvimentos com atenção e pediu “um travão imediato à escalada” e a proteção de civis. Sublinhou, no entanto, que já tinha avisado para as possíveis “consequências” da continuação da ocupação, dos direitos retirados a palestinianos, bem como “das provocações sistemáticas contra os seus locais sagrados”.
Horas depois, o governo do Egipto anunciou que estava em conversações com a Jordânia e a Arábia Saudita para tentar encontrar uma solução para o conflito — num sinal de que os atores da região, com exceção do Irão, ainda esperam poder manter algum grau de convivência com Israel.
Na sexta-feira, quando instado a comentar o 50.º aniversário da Guerra do Yom Kippur pelo Observador, o antigo embaixador israelita nos EUA Michael Cohen tinha destacado as “transformações de peso” provocadas por esse conflito: “A guerra de 1973 deitou por terra o mito da nossa invencibilidade. E trouxe à tona as divisões entre judeus com origens de leste e judeus com origens ocidentais. Levou à queda do Partido Trabalhista e à ascensão do Likud. Fez crescer o movimento religioso e o apoio aos colonatos na Judeia. E com ela nasceram os movimentos pró-paz.”
Desta vez, é impossível prever que transformações se avizinham — mas não há dúvidas de que elas virão.
Guerra será sangrenta. Ocupação total da Faixa de Gaza pode avançar e contágio na região é possível
Uma consequência é já praticamente certa: a de que uma nova guerra ligada ao conflito israelo-palestiniano está em curso e adivinha-se sangrenta.
“O que aconteceu hoje é nunca visto em Israel. Vamos vingar este dia negro de forma grandiosa”, afirmou o primeiro-ministro israelita na noite deste sábado, numa comunicação ao país, onde preparou os israelitas para um conflito onde “o preço a pagar vai ser insuportável”.
“Esta guerra vai demorar e vai ser dura”, avisou também. E disse aos residentes de Gaza que abandonem a região, porque esta será atacada “com toda a nossa força”.
O aviso de Netanyahu indicia que Israel pode estar a preparar um ataque em larga escala à Faixa de Gaza e não é de excluir a possibilidade de uma ocupação total do pequeno território, algo que até aqui tem sido rejeitado por Netanyahu. “Mas o impacto psicológico disto para Israel é semelhante ao do 11 de setembro, por isso o cálculo sobre o custo [de uma invasão] pode agora ser diferente”, avisou ao New York Times Nate Sachs, diretor do Centro para a Política do Médio Oriente do Instituto Brookings.
Com 40 quilómetros de extensão, é possível atravessar Gaza de carro em menos de uma hora. É também uma zona densamente povoada (cerca de seis mil pessoas por quilómetro quadrado) e a maioria dos habitantes não têm autorização legal para sair do território, nem para Israel, nem para o Egipto.
Antecipa-se, por isso, um número de mortes extremamente elevado. Durante a Operação Margem Protetora, em 2014, a última grande incursão militar de Israel na Faixa de Gaza, mais de dois mil palestinianos e 70 israelitas morreram. Desta vez, com Israel a poder elevar a parada e o Hamas aparentemente mais preparado, antecipa-se uma guerra muito mais sangrenta.
A tudo isto junta-se ainda o risco de uma nova guerra contaminar o resto da região e o conflito militar se alastrar. O grupo islâmico Hezbollah, que controla o sul do Líbano, pode decidir apoiar o Hamas e abrir uma segunda frente no norte de Israel, como fez no passado, em 2006.
Ambos os grupos são apoiados pelo Irão e esse apoio pode ir muito para lá do suporte político. Em 2021, por exemplo, o Telegraph noticiava que unidades de elite iranianas terão ajudado o Hamas a desenvolver a sua tecnologia de mísseis. O sucesso desta nova operação militar do Hamas pode indiciar que o Irão terá reforçado esse apoio. O correspondente veterano da BBC no Médio Oriente, Jeremy Bowen, escrevia mesmo este sábado que “a complexidade da operação do Hamas mostra que está a ser planeada há meses”.
O risco de alastramento é ainda mais real se tivermos em conta que um dos responsáveis do bureau político do Hamas, Hussam Badran, fez uma declaração na noite de sábado avisando que a operação ainda estava numa fase inicial e instando os países árabes a posicionarem-se ao seu lado em vez de servirem como mediadores.
Para já, o único que respondeu à chamada foi o Irão. A operação, declarou o Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, é “uma reação natural ao espírito de guerra e políticas provocatórias dos sionistas”.
No final do comunicado, Teerão deixava ainda um apelo: “Pedimos aos outros países islâmicos que apoiem os direitos do povo palestiniano.”