Nas profundezas do Mar Báltico, 110 metros abaixo da superfície, um mistério irrompeu das espessas paredes de aço e cimento que transportam gás natural da Rússia para a Alemanha.
Um mistério e um desastre ambiental: uma das quatro roturas identificadas no Nord Stream a 26 de setembro, cuja origem ainda está por apurar — mas que, para os cientistas, não será natural nem fruto de um mero acidente — libertava 22.920 quilos de gás natural por hora em plumas que ascendiam até à superfície e subiam pela atmosfera. Seria o mesmo que queimar 286 toneladas de carvão a cada 60 minutos.
Ninguém sabe a verdadeira extensão das fugas identificadas nos restantes três pontos do gasoduto, distribuídos entre as zonas económicas exclusivas da Suécia e da Dinamarca. Mas calcula-se que, tendo em conta os dados anteriores à guerra na Ucrânia, haja 150 milhões a 500 milhões de metros cúbicos de gás natural no gasoduto. E que 50% a 100% dele venha a escapar até que todas as fugas estejam totalmente reparadas.
Suécia diz que fugas de gás no Nord Stream 1 pararam mas continuam no outro gasoduto
Impacto no ambiente poderia ser menor se metano fosse incendiado
Não há um consenso sobre estes números. Mas, preocupados com as consequências ambientais, investigadores em todo o mundo começaram a calcular desde cedo que quantidade de metano terá escapado dos braços do Nord Stream quando o gás natural borbulhou pelo Báltico acima. Segundo Francisco Ferreira, engenheiro do ambiente, professor na Universidade Nova de Lisboa e presidente da Associação Zero, 250 mil a 400 mil toneladas de metano podem ser libertadas do gasoduto até as tubagens esvaziarem.
A acreditar na estimativa alemã, que aponta para a fuga de 300 mil toneladas de metano, o potencial de aquecimento global a 100 anos deste incidente equivale à libertação de oito milhões de toneladas de dióxido de carbono, mas a 25 milhões de toneladas caso o potencial seja calculado a 20 anos.
“O metano retém muito mais calor que o dióxido de carbono, principalmente nos primeiros 20 anos”, explicou o ambientalista Observador. Aliás, por unidade de medida, o metano é 80 vezes mais poderoso que o dióxido de carbono. Embora desapareça mais depressa da atmosfera que o CO2, o impacto é maior e mais imediato.
É por isso que Francisco Ferreira acredita que, para evitar consequências ambientais maiores, teria sido mais seguro incendiar o gás natural em fuga, que é composto em 90% precisamente por metano. A combustão transformaria este composto químico em dióxido de carbono, o que não travaria os impactos para o aquecimento global, mas pelo menos colmatava-os. É uma proposta que também Mark Davis, diretor executivo da Capterio, empresa de Londres que rastreia chamas de gás da indústria, deixou à Scientific American.
Outros números estão a ser propostos por equipas de engenheiros em todo o mundo, limitados à escassa informação disponível neste momento. Andrew Baxter, engenheiro e diretor de transição energética do Fundo de Defesa Ambiental, chegou a uma “estimativa grosseira” e partilhou-a com a Scientific American: tendo em conta as dimensões do gasoduto e a temperatura da água, 115 mil toneladas de metano foram libertadas no Nord Stream 2, onde houve duas fugas, só no momento em que a pressão nas tubagens desceu a pique — de 105 bar (ou seja, 105 vezes a pressão atmosfera da Terra ao nível da água do mar) para apenas 7.
Fuga pode simbolizar metade das emissões anuais de Portugal
De acordo com o Programa Ambiental da Organização das Nações Unidas (ONU), a confirmarem-se estes números, as fugas de gás natural no complexo Nord Stream podem traduzir-se na maior libertação de metano desde que há registos. Maior ainda que a libertação de gás natural no Golfo do México em dezembro do ano passado, quando 100 toneladas de metano por hora escaparam de uma plataforma petrolífera em águas mexicanas ao longo de 17 dias.
No total, segundo uma estimativa efetuada na Universidade Politécnica de Valência e publicada na revista científica Environmental Science & Technology Letters, 40 mil toneladas de metano foram libertadas enquanto a fuga não foi reparada. Era 3% do consumo de metano no México e quase três vezes menos que Andrew Baxter estima que tenha escapado apenas no Nord Stream 2 nos momentos iniciais das roturas.
No caso do incidente na semana passada, no entanto, Kristoffer Böttzauw, diretor da Agência Dinamarquesa de Energia, estima que a fuga pode simbolizar 33% da emissão anual de gases com efeito de estufa produzida pela Dinamarca.
Representam também 3% das emissões anuais de dióxido de carbono da Alemanha e quase metade das emissões portuguesas. E tudo isto acontece numa altura em que os climatólogos estão a alertar para a necessidade urgente de reduzir consideravelmente as emissões de metano para a atmosfera. Em janeiro deste ano, um relatório da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) apontava que as concentrações de metano na atmosfera eram já o triplo dos níveis pré-industriais.
Incidente no Nord Stream é “uma pequena bolha no oceano”
Números desta magnitude não alteram significativamente o percurso das alterações climáticas porque uma emissão de metano equivalente a 25 milhões toneladas de dióxido de carbono simboliza menos de 0,1% da poluição global anual de carbono, aponta a Rede Europeia da Ação Climática. Mesmo tendo em conta a estimativa que diz que só uma das fugas libertou 115 mil toneladas de metano quando a pressão diminuiu nas tubagens, isso simboliza apenas 0,14% das emissões globais anuais de metano da indústria de petróleo e gás.
Dave Reay, diretor executivo do Instituto de Edimburgo para as Alterações Climáticas, descreveu o caso ao Politico como “uma pequena bolha no oceano em comparação com as enormes quantidades do chamado metano fugitivo que são emitidos todos os dias em todo o mundo devido a coisas como a estimulação hidráulica [extração de combustíveis líquidos e gasosos do subsolo], mineração de carvão e extração de petróleo”.
Embora essa concentração tenha estabilizado a partir do ano 2000, sete anos depois voltou a aumentar sem que os cientistas tenham encontrado até agora uma explicação para o fenómeno. As teorias mais consensuais, apontadas na Nature, estão relacionadas com a maior exploração de petróleo e gás natural, o aumento dos aterros, da exploração da agropecuária; e do crescimento da atividade microbiana em zonas húmidas.
As consequências ambientais imediatas para a vida marinha e para a atmosfera ainda não foram quantificadas. “Ainda ninguém conseguiu descobrir quantas toneladas de peixe ou de outras formas de vida morreram com estas explosões”, admitiu Francisco Ferreira.
Um quarto do Mar Báltico é “zona morta” sem oxigénio
Mas o Mar Báltico é já um dos corpos de água mais massacrados pela poluição de origem humana do mundo. Quase totalmente isolada de outras fontes de água — apenas tem ligação ao Mar do Norte — e rodeada por nove países (Dinamarca, Suécia, Finlândia, Rússia, Estónia, Letônia, Lituânia, Polônia e Alemanha), o Mar Báltico tem servido de destino para os fertilizantes escoados dos campos agrícolas.
A água, saturada de azoto e fósforo e progressivamente mais quente por causa do aquecimento global, torna-se favorável à proliferação excessiva de algas, que consomem tanto oxigénio que tornam impossível o desenvolvimento de outras formas de vida no mesmo habitat. É por isso que cerca de 70 mil quilómetros quadrados do fundo do Mar Báltico, um quarto da sua área total, correspondem a “zonas mortas” onde nada consegue sobreviver exceto a vida microbiana anaeróbica, que não depende de oxigénio para viver.